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Recepção Musical 1

Uma vontade de Zeca: canções revolucionárias para o século XXI

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Uma vontade de Zeca: canções revolucionárias para o século XXI

[1] por Luís Carlos S. Branco

Tornou-se lendária a solidariedade de José Afonso. Quando viveu em Setúbal, ele, que vivia com pouco, estava sempre disposto a ajudar quem o procurava. A sua casa, dizem, estava sempre com as portas abertas, não trancadas. Às vezes, aparecia lá alguém para levar um livro ou para comer uma fatia de pão e matar a sede. Ainda no tempo da ditadura, era abordado amiúde para dar uns concertos, em pequenas associações, que não primavam pelas condições ideais para um espetáculo de música. Ele nunca recusava. Por vezes, nesses pequenos recitais, havia pides a pairar, a meter o olho (geralmente um par, como o Dupont e Dupond do Tintin). O público dessa zona, Montijo e arredores, sob o olhar atento dos vigias, pedia-lhe, em coro, para ele cantar as cantigas proibidas, ao que ele acedia sem grandes pruridos. Estas e outras estórias já fazem parte daquilo que, em certa medida, ele se tornou: um mito. E é difícil averiguar a sua veracidade, quando são passadas, assim, de boca em boca. Seja como for, elas refletem aquilo sobre o qual não há dúvidas. A postura humanista, atenta, solidária pela qual ele sempre pugnou. Era um homem bondoso, desapegado de bens materiais. 

O psiquiatra Manuel Louzã Henriques, seu colega de Coimbra e outras andanças, contou-me outros aspetos interessantes acerca do percurso algo sinuoso do cantautor. Falou-me do seu imenso jeito para o futebol (“Era um jogador danado; podia ter sido um profissional”), da sua falta de habilidade com as mãos (“Típico de um certo género de pessoas criativas; cabeça um bocado na lua e inabilidade para as coisas práticas da vida”). E era “um escritor de primeira água, talentosíssimo, podia perfeitamente ter seguido por aí e teria deixado certamente uma obra fantástica, tal como fez na música”. Em relação à questão coimbrã, o ínclito médico dizia: “Aí já não é tanto como dizem… ele não foi o único a aborrecer-se com a tradição do fado de Coimbra; havia antecedentes de monta: o Edmundo Bettencourt, por exemplo, e gente a abrir caminhos paralelos, como o Adriano… era uma coisa um bocado geracional. O Zeca foi, isso sim, a parte mais visível desse movimento de renovação da canção coimbrã. Quando saiu a “A balada de Outono”, aquilo foi um estrondo, mas havia uma série de pequenas explosões para trás e ao lado”.

José Afonso deixou um lastro e uma obra imensa, de uma grande riqueza lírica e estética. No seu espantoso cancioneiro, encontramos também condensada uma certa ideia de Portugal. Um Portugal livre, afastado dos quatrocentos anos de censura. Sim, a censura entrou no nosso país com a Inquisição, em 1536, mas depois continuou com a real mesa censória, e também no tempo da 1.ª República, e teve, claro, o seu triste zénite no estado novo. E seria bom não cairmos na tentação de pensar que, no regime democrático, ela desapareceu por completo, pois isso é falso. Relembremos a proibição dos programas de Herman José, na televisão do estado, ou das canções dos Xutos, interditas em várias rádios (uma delas, relativamente recente, em que se falava de um certo “engenheiro” que levava o país para muito maus lençóis) ou o despedimento do insigne radialista António Sérgio, depois de ter ganho um importante prémio, o que também constitui uma forma de censura. 

Tantas eras longe do livre pensamento, e a expulsar muitos dos melhores de nós para o exílio ou para a fogueira, deixa marcas identitárias e culturais indeléveis que ainda hoje se fazem sentir. Somos um país pouco habituado a pensar sobre si próprio e sobre os seus fantasmas. Temos preferido mandar as coisas para debaixo do tapete, o que é mau, pois elas não desaparecem. O colonialismo e o racismo estão aí, em carne viva, para no-lo lembrarem. 

Houve sempre, no entanto, uma forma quiçá mais perniciosa de censura, mais velada, insidiosa: o silenciamento. Muitas figuras, a quem devemos muito, sofreram-no na pele. Uma delas foi o Capitão Salgueiro Maia. Enquanto outros camaradas de armas progrediram na carreira, ele não. Tiraram-lhe a voz e qualquer espécie de protagonismo. Outra, numa grande parte do Pós 25 de Abril, foi José Afonso. Durante muito tempo, não interessava ouvir o que ele tinha para dizer, pois certamente não abonaria em favor dos vários poderes da época.

No final de 2021, finalmente, lançou-se a sua obra musical nas plataformas digitais e, em simultâneo, houve também a reedição, esmerada e cuidada, de alguns dos seus títulos emblemáticos (Cantares do Andarilho, de 1968; Contos Velhos Rumos Novos, de 1969; e Traz Outro Amigo Também, de 1970), em suporte físico (CD e vinil). Por sua vez, o ministério da cultura iniciou o processo de classificação da sua obra fonográfica.

Em 2 de agosto de 2021, a propósito dos 92 anos do seu nascimento, foi exibido na RTP1 (e em prime time, o que é de salientar) um novo documentário sobre ele, da autoria de Nuno Galopim e Miguel Pimenta, intitulado José Afonso: Traz Outro Amigo Também. O seu ponto de partida é louvável e constitui uma mais valia em relação a outros trabalhos sobre o cantor. Quis-se dar voz ao próprio José Afonso e devolver-lhe algo muito importante: o poder da palavra. E, por isso, é um extraordinário trabalho. Houve certamente um duro escavar nos arquivos da RTP e da rádio, recolhendo as entrevistas e os depoimentos, que o cantor foi concedendo ao longo do tempo. Isso permite-nos seguir a sua evolução e perscrutar a sua mundivisão. Muito atento, antecipou muito daquilo que hoje constitui, por exemplo, o pensamento pós-colonial e a questão da igualdade de género (“Mulher na democracia não é biombo de sala”). Nessas e noutras questões similares, estava nitidamente à frente do seu tempo. Este trabalho documental demonstra bem isso.

O contacto próximo e duro com o autoritarismo – recorde-se o seu tio, que era um ferranho adepto do antigo regime, e o seu pai, juiz – e o ter vivido em muitos sítios díspares do mapa português de então, desde Angola e Moçambique até as montanhas nortenhas e ao calor mediterrânico algarvio, despertaram nele um profundo sentido da dignidade e igualdade de todos os homens e mulheres e uma recusa liminar por qualquer pusilânime forma imposta de poder. 

Salazar, em relação a ele, foi aquilo que sempre também foi noutras questões: um chico esperto. Prendeu-o por pouco tempo (cerca de um mês), mas não lhe perdoou a ousadia de cantar a liberdade. Deu-lhe cabo da carreira de Professor, queimando-o em todos os concursos aos quais ele concorreu. No início, permitiu-lhe apenas, a ele que era da área de Letras, dar aulas de Ciências da Natureza. Passado muito pouco tempo, nem isso lhe foi permitido; foi completamente impedido de dar aulas em Portugal. Então, o cantor viu-se a braços com uma situação económica muito precária. Teve de dar explicações para poder sobreviver. Não interessava às eminências pardas da ditadura um Professor que incentivasse o sentido crítico dos seus alunos. Entretanto, algumas figuras do regime democrático, porventura, não fizeram muito melhor figura em relação a ele. No documentário já referido, para além do gosto de ouvir José Afonso nas suas próprias palavras, ressalta à vista um doloroso hiato, pois há uma série de anos, da década de 80, dos quais parece não ter havido qualquer registo mediático. O documentário dá, assim, um inusitado salto temporal. A última corajosa entrevista dada por ele, onde, para caraterizar os políticos de então, remeteu para a sua canção “Os Eunucos”, ficou na gaveta durante anos. 

Também há pouco tempo, saiu uma outra muito interessante obra, que contempla a carreira toda de José Afonso. Chama-se: As Cantigas do Zeca: Uma Vontade de Música, e é da autoria de Octávio Fonseca. É um trabalho de fundo, que se dedica a analisar a obra do cantor, disco a disco, num tom chão, coloquial, mas com conteúdos ricos e massa cinzenta. Além disso, no final, temos ao dispor uma útil recolha bibliográfica, com várias adendas pertinentes ao texto principal. O arranjo gráfico, com papel de qualidade, e as excelentes ilustrações, da autoria de Pedro Sousa Pereira, complementam-no muito bem. 

Apesar de ser, como digo, um digníssimo trabalho pioneiro, de inquestionável valor, bem escrito e bem pensado, tem uma caraterística que é comum à grande maioria dos indefetíveis admiradores de José Afonso e que deve ser assinalada. Por vezes, falta-lhe um pouco mais de sentido crítico. Nem todos os discos dele, nem todas as canções são geniais. Há que fazer distinções, categorizar, assinalar os pontos fortes e os pontos menos conseguidos.

Em relação ao trabalho de José Afonso há dois lados da barricada. Uns vêem-no como um “comuna” (embora advogasse princípios políticos próximos do marxismo, nunca fez parte do PCP; como ele próprio dizia “eu sou o meu próprio comité central”). Para esses, tudo o que ele fez é horrível, inenarrável, meramente propagandístico. Os outros pecam pelo defeito oposto. Para eles, tudo nele é imaculado, sem passos em falso nem percalços. Ora, creio que, a ele que sempre teve um sentido crítico agudo, preferiria, certamente, outro tipo de abordagem à sua obra.

Chico Buarque, num documentário, agora, disponível na Netflix, recorda a preocupação que teve quando, em plena ditadura brasileira, fez canções de protesto. Por um lado, foi um imperativo de consciência fazê-lo. Por outro, tinha a perfeita noção de que a maioria dessas canções não sobreviveriam ao teste do tempo. Ele afirma que, após a queda da ditadura, elas “ficaram sem chão”. Por sua vez, Bob Dylan, ainda em plena década de 60, afastou-se da canção de protesto, aparecendo com uma guitarra elétrica nas mãos, renegando o passado recente. Nas entrevistas, dizia que não era um cantor de protesto, que tinha havido um engano. E é preciso refletir neste género de questões.

José Afonso, apesar do seu perfecionismo e do rigor que colocava no seu trabalho, não se precaveu como eles. E, se calhar, colocou, muitas vezes, as questões políticas à frente da sua própria obra e carreira musical. Porventura, tê-lo-á feito por solidária generosidade e humanismo, mas, seja como for, isso foi um erro. Como resultado, temos, por um lado, um notabilíssimo acervo de canções que, devido ao uso de metáforas e alegorias de teor fantástico-surrealista, usadas para ludibriar os censores, se libertaram do peso do tempo, não ficando demasiado presas às circunstâncias históricas em que foram criadas. Entre elas: “O avô cavernoso”, “Os Vampiros”, claro, “Era um redondo vocábulo” e até mesmo “A morte saiu à rua”, ou a gritantemente atual “Os meninos nazis”. Por outro lado, outras perderam uma grande parte da sua pertinência pela sua excessiva colagem ao seu tempo histórico e ideológico. É uma pena que canções com a qualidade superlativa de “Cantar Alentejano” ou “Alípio de Freitas” tenham, de certo modo, ficado reféns do contexto particular em que foram criadas.

O facto de o cantor ter sido sempre tão avesso à música anglo-saxónica também merece comentário.  Referia-se a ela como “música imperialista”, o que me parece uma posição um pouco retrógrada. Sobretudo, se a ligarmos com o tempo, no imediato Pós 25 de Abril, em que as forças políticas, então vigentes, não queriam guitarras elétricas em Portugal por causa do seu “imperialismo”. Quem as importasse, pagava impostos do outro mundo por serem consideradas artigos de luxo (e foi neste panorama adverso que vingaram muitos dos artistas do Boom do Rock Português).

Já agora, diga-se que os princípios de dramatização e encenação musical, preconizados por José Mário Branco, se devem também, em menor ou maior grau, à influência dos Beatles de Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band. Esse disco, em que princípios estéticos similares aos que Zé Mário apregoava foram postos em prática, foi editado em 1967; portanto, quatro anos antes de Cantigas do Maio, dado a lume em 1971. Além disso, outros cantautores, como Sérgio Godinho ou Jorge Palma, sempre assumiram influências musicais advindas do estrangeiro e a sua obra não é menos portuguesa por causa disso. A obra de José Afonso, sobretudo na sua reta final, sempre com algumas grandes canções, mas um bocadinho repetitiva, com os discos a repisarem os mesmos terrenos estéticos, teria ganho se tivesse dialogado artisticamente com os ares frescos que sopravam. A dado momento, ainda se ouvem ecos do jazz, mas de modo esparso.

Tudo isto, evidentemente, não obsta a que a obra do Zeca, no seu conjunto, seja intemporal. E que o seu legado permaneça vivo. Como dei conta, continuam-se a fazer trabalhos de investigação e estudo interessantes e sérios sobre ele. Músicos das novas gerações têm-no como referência (ouça-se, por exemplo, “Prescrever”, de Agir). E, independentemente das opiniões políticas veiculadas nos seus trabalhos – todas antes da Queda do Muro, a que o cantor não teve oportunidade de assistir –, para lá de um talento melódico raro e de uma marca visionária fusionista, há nos seus álbuns uma ideia de Portugal, muito atual. É um Portugal livre, solidário, preocupado com o bem-estar de todos, aquele que habitamos na sua obra.  É um sítio onde as pessoas honestas e corajosas estão em maioria. Já que não podemos morar lá, que, pelo menos, façamos visitas regulares. Para saber quem somos, para onde vamos, e, sobretudo, para onde não queremos ir. Não é um sítio utópico. Para muitos de nós, é um país real a que chegaremos, mais cedo ou mais tarde.

[1] lcrsb@campus.ua.pt

o autor segue o AO de 1990

Investigador e docente no Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, escritor e dramaturgo. Tem em curso a tese de doutoramento Filmar a Mente: David Lynch à Luz dos Estudos da Consciência de António Damásio e Amit Goswami. No mestrado, em Estudos Portugueses, escreveu a dissertação António Antes de Variações: O Percurso Inicial do Cantor.



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Allen Halloween: retrospetiva de um percurso singular

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Allen Halloween: retrospetiva de um percurso singular

[1] por João Mineiro

Corria o ano de 2006 quando Allen Pires Sanhá apresentou o seu alter-ego ao mundo. Allen Halloween estreava-se com um álbum independente, saído diretamente das ruas de Odivelas e ninguém ficou indiferente à abordagem lírica e à sonoridade de Projeto Mary Witch. Um trabalho que condensava o percurso de mais de uma década de rap de rua, entre improvisos e maquetes que circulavam de mão em mão nas periferias da Grande Lisboa.

Sem que ninguém o previsse, iniciava-se aí o trilho de uma obra única e realmente distintiva na história do hip hop e da música portuguesa. Nessa altura, eu fazia parte de uma geração adolescente que arriscava as suas parcas poupanças em álbuns desconhecidos, a que tínhamos acesso em circuitos de distribuição independente, bastando-nos a confiança no selo de quem os editava ou distribuía em pequenas lojas ou no on-line. Projeto Mary Witch foi um desses álbuns que comprei sem poder antecipar que conteúdo escondia aquela capa sinistra, ilustrada com uma grande abóbora com um charro no canto da boca. Quando recebi o disco em casa, lembro-me de o pôr a tocar e de estranhar cada tema. Era uma voz suja e sombria, crua e mórbida.

Nunca tinha ouvido nada assim, mas por algum motivo não conseguia deixar de ouvir o álbum em modo repeat, tentando desvendar o significado de cada letra. “Raportagem”, “Ciclo da vida”, “Fly nigga fly”, “Várias vidas” ou “Dia de um dread de 16 anos” apresentavam-nos cruamente e sem filtros a vida quotidiana dos subúrbios da Grande Lisboa. Para mim, que vivia na Covilhã, aqueles relatos rimados mostravam-me um Portugal de que nunca tinha ouvido falar. A esse primeiro álbum sucederam-se Árvore Kriminal (2011) e Híbrido (2015), dois trabalhos originais, com uma qualidade técnica melhorada, mas que não perdiam a essência de um rap de ligações profundas à vida de Allen e dos seus. Músicas como “O convite”, “Drunfos”, “Debaixo da ponte”, “Bandido velho”, “Marmita boy”, “O Rei da Ala” ou “Zé Maluco”, tornaram-se em pouco tempo hinos cantados de início ao fim nos palcos mais variados e pelas pessoas mais improváveis. Quando no final de 2019 Halloween decidiu colocar um fim na sua carreira, fê-lo com estrondo, apresentando os dois objetos que haveriam de concluir esse seu ciclo artístico: o álbum Unplegueto (2019) e o livro “Livre Arbítrio” (Lua Elétrica, 2019), no qual foram reunidas as suas letras, que são também parte da sua biografia.

Treze anos não é muito tempo, mas no caso de Halloween foi o suficiente para deixar uma obra e um nome gravados na história da música portuguesa. O significado social e político da sua afirmação foi de grande importância. As suas músicas espelhavam, sem rodeios, a vida nos subúrbios da Grande Lisboa. Os subúrbios da gente que não costumamos ver nem ouvir em nenhum canal mediático, mas que, todas as madrugadas, limpa as redações antes da chegada dos jornalistas. O rap de Halloween era um rap de reportagem crua – ou de “raportagem”, como ele o designou numa das suas músicas. A sua voz era o megafone para o relato direto da vida de uma parte da sociedade portuguesa que não é noticiada pela precariedade habitacional ou as condições de isolamento e segregação em que vive. Halloween consegui derrubar os muros de uma Lisboa invisível aos olhos do privilégio branco. Ao fazê-lo homenageou aqueles que antes tinham começado esse caminho, ao mesmo tempo que abriu portas a tantos outros/as que lhe seguiram as pisadas.

De alguma forma podemos dizer que a música de Halloween foi uma espécie de “milagre sociológico”. Sob que condições um “jovem africano de um bairro social” poderia fazer ouvir a sua voz perante um país que remete a sua existência para a invisibilidade, a indiferença ou a violência? A música, e o seu potencial de circulação livre, foi a fórmula que lhe permitiu romper o isolamento do gueto e falar para fora. O rap foi o veículo da verdade que as suas músicas espelhavam. Talvez por isso, a sua escrita fosse uma decorrência da vida, e não o produto do marketing de carreira que sempre rejeitou. Musicalmente Halloween foi um artista amplo. A sua filiação ao rap underground e, do meu ponto de vista, profundamente político, conjugava-se com uma musicalidade suja no bom e profícuo sentido da palavra. Nem trap, nem boom bap, o seu rap tinha um rasgo grunge, experimental, tocando ao mesmo tempo em tonalidades acústicas que lhe assentavam igualmente na perfeição.

A sua música trocava o perfecionismo digital dos grandes estúdios, dos melhores produtores e dos mais notáveis agenciamentos, por uma bricolage home made, onde o rapper produzia exatamente à medida das suas necessidades artísticas e interiores. Talvez tenha sido a singularidade da sua música que o levava a ter fãs nos mais variados lugares: do rap underground ao heavy mental, do hardcore ao “hipsterismo urbano”. A diversidade do seu público fazia-o cruzar palcos realmente distintos: da festa de bairro mais improvisada, organizada pela associação local, a um palco com a dimensão de um Primavera Sounds.

No entanto, era sempre o mesmo Halloween que se apresentava, quer musicalmente, quer cenicamente. Como ele dizia: “O nosso circo é sempre igual, seja no Coliseu ou na escola preparatória”. Coerente até ao fim, apresentava-se com os seus rappers e companheiros de bairro, com quem cresceu pessoal e musicamente, nunca se dando a colaborações de conveniência comercial. 2019 foi o ano em que Halloween fechou o seu ciclo artístico. A sua voz ressoou bairro a bairro e impôs-se às massas, sem nunca ceder aos princípios pelos quais rimava. Mostrou-nos, sem soberba, mas com ousadia, como a música pode ser mais que um objeto mercantil sedento de responder aos mais variados apetites comerciais. A música em que se empenhava vinha de outro lugar, bem mais fundo e bem mais fecundo. Devemos-lhe esse exemplo e essa coerência, tão raros nos dias que correm.

[1] João Mineiro é Sociólogo, Investigador e doutorando (ISCTE). É coleccionador e entusiasta do RAP e da cultura hip-hop.

Fotografia de capa do autor, primeiro disco do rapper Allen Halloween.

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Há sempre qualquer coisa que está para acontecer... ZMB maior que a música

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Há sempre qualquer coisa que está para acontecer... ZMB maior que a música


[1] por Soraia Simões de Andrade

José Mário Branco (JMB) teve a sua primeira infância numa aldeia de pescadores, perto do Porto, que «hoje é uma cidade grande, que é Leça da Palmeira», dizia-me num dos nossos primeiros encontros em sua casa, parte do seu conteúdo ficou disponível uns meses mais tarde na Mural Sonoro1.

Entre 2011 e 2013, JMB não cedia praticamente entrevistas, foi por intermédio de amigos em comum que a consegui fazer em sua casa. Sem que esperasse revelou-se o início de uma amizade/consideração mútuos: trocas frequentes de emails, sugestões de leituras, entre outros.

«Agora toda a gente quer falar comigo, olha os jornalistas é porque lá vem a Troika e fiz uma cantiga chamada FMI, não tenho nada para dizer, muitos deles nem nunca ouviram o FMI», «(...) já não vou para cima de um palco cantar com um lírio e um canivete (...) fiz aquelas canções porque estava a viver aquilo (...) o FMI é uma catarse», este seu desconforto em 2012, que se foi dissipando nos últimos anos da sua existência, ficou-me gravado até hoje.

Lembro que no nosso primeiro encontro falámos de teatro, da Comuna, da Manuela de Freitas (sua companheira, que mais tarde convidei para um outro debate sob o tema literaturas para fado2), dos filhos e dos netos, da neta cabo-verdiana ainda pequena, mostrou fotografias, mostrei-lhe também de um dos meus sobrinhos, cabo-verdiano, a viver em Santiago, do entusiasmo que o filme Mudar de Vida (parto longo, veio à luz após um crowdfunding) lhe estava a originar, «tens de ver isto!», aconselhava-me.

Foram essas longas horas, registadas na memória até à sua partida hoje, que me ajudaram a perceber o homem que tinha na minha frente, e que já admirava.

Desde 2012 que fomos trocando várias mensagens: sobre música e sobre política, esteve presente no ciclo de debates que organizei no Museu Nacional da Música3, enviava-me artigos que achava que poderiam ser interessantes para eu ler, sobre Alan Lomax, sobre o Benelux nos anos sessenta e setenta, sobre música dodecafónica e música concreta, muitas ideias acerca daquele que tinha como seu mestre, Luís Monteiro, crucial na sua aprendizagem da etnomusicologia. Um dia liguei-lhe a dizer que ia ao Porto conhecer Luís Monteiro, o seu professor, que ele ainda era vivo, ficou emocionado. Fizemos um texto de homenagem a Luís Monteiro, de quem ele entretanto tinha perdido o rasto até à minha ida ao norte, escrito a vários mãos: as do José Mário, da Ana Deus (vizinha do Luís Monteiro, que proporcionou esta minha visita), do Jorge Constante Pereira.

A última vez que falei presencialmente com JMB no Galeto, Avenidas Novas, um encontro imprevisto há cerca de um ano, perguntou-me: «tens tido notícias do Luís Monteiro? Está velho, tenho de o visitar». Não sei se o chegou a fazer. Mas, lembro que ficou radioso desde o momento em que soube que o “seu mestre” ainda era vivo e lhe pudemos prestar a homenagem numas breves linhas4 publicadas na Mural Sonoro.

©®fotografias arquivos de familiares de JMB: cedidas por António Miguel Branco Rodrigues para projectos da Mural Sonoro relacionados com a vida e obra de José Mário Branco/JMB.

©®fotografias arquivos de familiares de JMB: cedidas por António Miguel Branco Rodrigues para projectos da Mural Sonoro relacionados com a vida e obra de José Mário Branco/JMB.


O JMB era um defensor da liberdade. Julgo que a sua força crescia quanto maior era o interesse pelos assuntos e pelas pessoas. Sinto-me uma privilegiada por o ter conhecido e privado consigo.

O pai de JMB era um amante de música, tinha feito o curso do seminário e ensinava-o, a ele e aos dois irmãos, a cantar a vozes. Fazia os baixos e eles as outras três vozes.

JMB estudou piano em Leça da Palmeira e tinha uma paixão grande pelo violino. Como os pais, professores primários, não tinham possibilidades, foram os padrinhos, pessoas abastadas da cidade do Porto, que lhe compraram o violino e lhe pagaram aulas no Conservatório. O professor, um francês, primeiro violino da Sinfónica do Porto, liderava também o Quarteto de Cordas, mas deu-lhe cabo da paixão pelo violino em poucos meses.

JMB ia aos sábados de manhã, quando não havia liceu, ao Conservatório ter aulas particulares de violino e «a única coisa que ele me ensinava era a pegar no violino e no arco com proibição de produzir qualquer som, e eu ficava ali uma hora de pé numa sala, com o professor à minha frente, a puxar-me pelo cotovelo e a corrigir-me os dedos no arco, pousar o arco nas cordas, mas proibido de tocar, primeiro ano era só para aprender a pegar no violino e isso matou definitivamente a paixão que eu tinha pelo violino, foi um assassinato».

Depois destes percalços, a música ficou de lado e iniciou uma paixão grande pela poesia, que é retomada quando abre a Escola Parnaso no Porto, já JMB tinha dezasseis anos. Foi aí, com Jorge Constante Pereira, Ricardo Sousa Lima, Nina Constante Pereira, na altura namorada de JMB, que o seu envolvimento político e cultural se intensificaram, estas tertúlias intersectavam vários mundos e olhares: da literatura à música popular. O seu contacto com as músicas contemporâneas, a música dodecafónica, a música concrecta, a música electrónica, e com a etnomusicologia, através de Luís Monteiro, traduzir-se-iam em sessões apaixonantes que o vieram mais tarde a moldar como músico e compositor.

Quando chegou a fase em que ia ser defrontado com a Guerra Colonial, havia já uma politização através do exemplo de amigos mais velhos que andavam na universidade, dentro do movimento estudantil universitário, JMB ficou ligado ao primeiro grupo que no Porto tentou formar associações de estudantes nos liceus, de nome Pró Associação. Se nas universidades, do Porto, Coimbra e Lisboa, as associações de estudantes eram toleradas no liceal eram mesmo proibidas.

JMB fazia parte de um grupo de jovens, rapazes e raparigas, por um lado muito sensibilizados para a resistência à ditadura, resistência à censura, por outro lado para uma ligação também desse grupo à poesia e à música no estilo da tertúlia, no contacto com poetas mais velhos, muitos deles/as neo-realistas do Porto, como Brigitte Gonçalves, António Rebordão Navarro, Eugénio de Andrade ou António Reis, que depois se tornou cineasta.

JMB e o grupo de jovens a que pertencia escreviam poemas, participavam no suplemento juvenil do Diário de Lisboa que era orientado por dois escritores, um casal de esquerda, aí publicavam poemas, desenhos, como os de Manuela Bacelar, hoje uma pintora reconhecida, recensões críticas. Este suplemento acabou a ser proibido pela censura e passou a ser publicado no jornal República.

Através de familiares e das dinâmicas intrínsecas à movimentação deste grupo de jovens havia relações com a Academia de Amadores de Música e o seu coro, dirigido por Fernando Lopes-Graça, com o próprio Lopes-Graça.

Um dos elementos deste grupo de jovens era Margarida Losa, filha de Ilse e de Arménio Losa, JMB assistiu à chegada, em casa de Ilse Losa, de Lopes-Graça com o primeiro disco prova de fábrica da Antologia de Trás-Os-Montes, recolhas de Giacometti seleccionadas por ele. «E o gesto do Graça de colocar o disco prova no toca-discos e da gente ouvir aquilo com as lágrimas nos olhos e pensarmos: como é que é possível nós termos estes tesouros no nosso país e ninguém os conhecer?».

Nas férias da Páscoa, JMB e os/as companheiros/as iam em grupo percorrer as terras do Alto Minho a pé ou, numa segunda fase, iam para o Alentejo, do Porto para o Alentejo, para a aldeia de Peroguarda, no meio do triângulo Beja-Ferreira-Cuba, para os ouvir cantar e falar. Os primeiros a ir foram presos pela PIDE. Era estranho um grupo de jovens no meio dos alentejanos, de repente: «a fazer o quê, para quê?», mas «a gente ia só para os ouvir cantar e falar».

Em 1961, JMB tinha dezanove anos. Estava, como muitos dos outros companheiros, ligado ao Partido Comunista, porque «era a única organização onde a gente podia fazer qualquer coisa a sério correndo todos os riscos inerentes, que no meu caso por exemplo levou à prisão pela PIDE em 1962, não é? A discussão sobre ir ou não ir participar na guerra colonial».

Uma época marcada pelo Concílio Vaticano II, pela Revolução Cubana, pela Guerra na Argélia, assuntos que faziam parte das discussões nestas tertúlias.

Como militante do partido comunista português JMB recebeu a directiva de ir para a guerra, «porque era a linha do partido na altura, achando que era na frente de guerra que o militante comunista poderia fazer o seu trabalho».

Nem JMB nem os restantes acreditavam, ou nada ou muito pouco, que isso fosse possível de acordo com os muitos relatos que vinham dos franceses, da Guerra da Argélia, onde a posição do Partido Comunista francês foi a mesma.

Foram, aliás, as discussões com integrantes do movimento estudantil francês, que ajudaram à sua própria posição, que culminou na recusa em participar na Guerra Colonial.

©®fotografias arquivos de familiares de JMB: cedidas por António Miguel Branco Rodrigues para projectos da Mural Sonoro relacionados com a vida e obra de José Mário Branco/JMB.

©®fotografias arquivos de familiares de JMB: cedidas por António Miguel Branco Rodrigues para projectos da Mural Sonoro relacionados com a vida e obra de José Mário Branco/JMB.

Depois de ter estado preso pela PIDE em 1962, poucos dias antes de receber o postal de mobilização para a tropa em 1963, JMB aproveitou os dias que lhe restavam de validade de um antigo passaporte para fugir do país. Foram treze anos de vida em Paris. Regressou a trinta de Abril de 1974, cinco dias depois do 25 de Abril, no mesmo avião onde vinham, entre outros, Álvaro Cunhal e Luís Cília.

 

Vou andando por terras de França

pela viela da esperança

sempre de mudança

tirando o meu salário

 

Enquanto o fidalgo enche a pança

o Zé Povinho não descansa

Há sempre uma França

Brasil do operário

 

Não foi por vontade nem por gosto

que deixei a minha terra

Entre a uva e o mosto

fica sempre tudo neste pé

 

Vamos indo por terras de França

nossa miragem de abastança

sempre de mudança

roendo a nossa grade

 

Quando vai o gado prà matança

ao cabo da boa-esperança

Bolas prà bonança

e viva a tempestade

Não foi por vontade nem por gosto …

 

Vamos indo por terras de França

com a pobreza na lembrança

sempre de mudança

com olhos espantados

Canta o galo e a governança

a tesourinha e a finança

e os cães de faiança

ladrando a finados

Não foi por vontade nem por gosto …

Vamos indo por terras de França

trocando a sorte pela chança

sempre de mudança

suando o pé de meia

Com a alocação e a segurança

com sindicato e com vacança

Há sempre uma França

Numa folha de peia

Não foi por vontade nem por gosto…

No início dos anos setenta Paris era a segunda cidade de Portugal, «só em França, imagina, éramos oitenta mil desertores e refractários para um país de nove/dez milhões de habitantes».

Foi em França que, além de procurar a sobrevivência (chegou a trabalhar numa fábrica de mármores) participou activamente em lutas políticas, em núcleos políticos, cujos objectivos eram ao mesmo tempo a discussão sobre o que fazer em relação a Portugal: luta armada ou não luta armada contra a ditadura portuguesa, «tomar partido pela China ou partido pela União Soviética, e a questão da divulgação e da denúncia da ditadura portuguesa e da guerra colonial pela europa fora».

A emigração portuguesa em França, como na Suíça, na Alemanha, nos países escandinavos ou no Benelux, que até aí fora uma emigração quase exclusivamente da pobreza, como ficou retratado no filme Le Saut de Christian Challonge cuja música é da autoria de Luís Cília (também entrevistado na Mural Sonoro), ou seja uma emigração económica, mudou, com a ida de dezenas de milhares de jovens universitários contra a guerra.

Estes jovens, segundo JMB, começaram a aderir às associações de migrantes em Paris, que até aí serviam só para o rancho folclórico ou para a missa, contribuindo para uma politização de uma boa parte das mesmas.

JMB, Luís Cília e Tino Flores que também viviam em Paris, ou Sérgio Godinho, que começou a viver em Paris a partir de 1967, que interpretavam canções ora que denunciavam a situação em Portugal ora que rasgavam as fronteiras para a comunidade, começaram a dar concertos pela Europa do norte sobretudo, sempre a cantar para associações. O disco de JMB A Ronda do Soldadinho foi um resultado disso mesmo, por ser um disco feito propositadamente na ilegalidade, financiado com pré-compras do movimento associativo.

 

 Um e dois e três

Era uma vez

Um soldadinho

De chumbo não era

Como era

O soldadinho

 

Um menino lindo

Que nasceu

Num roseiral

O menino lindo

Não nasceu

P'ra fazer mal

 

Menino cresceu

Já foi à escola

De sacola

 

Um e dois e três

Já sabe ler

Sabe contar

 

Menino cresceu

Já aprendeu

A trabalhar

Vai gado guardar

Já vai lavrar

E semear

 

Um e dois e três

Era uma vez

Um soldadinho

De chumbo não era

Como era

O soldadinho

 

Como JMB não tinha dinheiro para produzir o fonograma e a canção tinha-se entretanto tornado muito popular dentro da emigração portuguesa, mas também no seio da esquerda francesa, inquiriu: «há este disco para fazer, era importante fazer este disco, vocês acham? E eles disseram ‘achamos’, e eu disse ‘então, quantos exemplares é que querem comprar’? E confiam-me o dinheiro antes de ver os discos ou não’?». Recebeu o dinheiro de compras antecipadas de exemplares do disco e foi com esse dinheiro que o fonograma foi produzido, com uma tiragem reduzida. O seu percurso em França, a paulatina fragmentação das estruturas políticas de extrema-esquerda a partir de 1965, e o facto de um primo da sua mulher se ter esquecido de uma viola no apartamento por onde passou em Paris fizeram com que passasse a ter uma ligação a esse instrumento que anteriormente nem conhecia e com ele começasse a compor muito do repertório deste período. O piano, a flauta de bísel, o acordeão de teclado eram os instrumentos que sabia, até à data, tocar.

Encordoou a viola deixada no apartamento, faltavam-lhe cordas, e de ouvido começou a aprender a acompanhar-se a cantar canções, foi aí que colocou pela primeira vez a hipótese de se poder exprimir através deste meio, o da música, e deste instrumento.

JMB foi ao longo da sua trajectória bastante crítico relativamente a terminologias como «movimento dos baladeiros» ou «canção de intervenção», considerava-as pejorativas e redutoras. Isto porque já gostava de outras tipologias de canções como a canção poética francesa, canções brasileiras, canções anglo-saxónicas. Ambas, porque, em boa medida, estiveram associadas sobretudo «a uma grande pobreza musical das canções. Eram aquelas pessoas que se faziam acompanhar de uma viola, sabiam dois ou três acordes, que faziam tudo igual e muitas das vezes contra a própria mensagem da poesia. Exclude disto completamente o Zeca Afonso, porque o Zeca Afonso era um caso absolutamente à parte, e que continua a ser, de grande riqueza poética e musical e sobretudo interpretativa, mas o que veio na esteira do Zeca foi esse ''movimento dos baladeiros'' que até leva depois o Raul Solnado a fazer um sketch a ridicularizá-los, não é? Mas, há excepções. A ‘Pedra Filosofal’ do Manuel Freire é uma cantiga que foi uma viragem histórica pelas circunstâncias em que foi conhecida e que tem, digamos, qualidade poética e musical».

Seria, no entanto, por via da forte influência francesa, de uma música engagée, adjectivo aplicado às canções poéticas francesas do pós-guerra, que JMB começou por se fazer ouvir, mas nas canções ‘’comprometidas com realidades sociais” que lhe foram primeiramente referenciais estiveram também nesta fase canções brasileiras como as de Dorival Caymmi, ou aquelas que existiram fruto de um ressurgimento da canção política italiana, um país onde houve guerra e houve bastante resistência, e do contexto anglo-saxónico.

Depois de Abril de 1974, quando regressou a Portugal, fundou o Grupo de Acção Cultural Vozes na Luta (GAC), com o qual ainda gravaria uma primeira série de singles e Eps, depois reunidos no LP A Cantiga é uma Arma, JMB participaria no disco posterior Pois Canté!, o melhor disco, quanto a mim, do GAC.

Em Paris no ano anterior ao 25 de Abril já estava em gestação um grupo cuja ideia era fazer «música proibida, música ilegal, música de resistência, música subterrânea. Eu tinha tido uma cooperativa em que participei com amigos franceses chamada Organum já mais experiências de auto-edição de coisas marginais, completamente marginais, e que eram financiadas fora do sistema», o GAC esteve portanto muitos anos antes do seu surgimento em gestação.

O Grupo de Acção Cultural, como começou por se definir primeiramente, acabou dividido mais ou menos em função das diferenças políticas que havia na esquerda portuguesa. Uns do PCP, outros LUAR. No primeiro GAC, definido como de extrema-esquerda maoísta, estiveram JMB, Fausto, Tino Flores, na altura os jovens que vieram do Coro da Juventude Musical e do Instituto Gregoriano, alguns mais tarde integrariam o grupo Gaiteiros de Lisboa, como Rui Vaz, Carlos Guerreiro ou Pedro Casaes. Para JMB foram especialmente pessoas como Luís Pedro Faro que vieram a dar uma maior solidez artística aquele grupo de ''pós-baladeiros''.

Ser SolidárioMargem de Certa ManeiraA Noite e o emblemático FMI, a entrada para a Comuna em 1977/78, para fazer A Mãe que também daria origem a um LP, as cisões da Comuna no fim de Janeiro de 1979, que levaram José Mário Branco e Manuela de Freitas a formarem um novo grupo de nome Teatro do Mundo, onde produziu uma série de canções que surtiriam no projecto «Ser Solidário», curiosamente recusado por todas as editoras, «foi recusado por todas as editoras, na maioria dos casos por eu querer incluir o FMI, ficaram todos assustados, o Tozé Brito por exemplo respondeu-me por escrito que já lá tinham um Sérgio Godinho na Polygram e que era a mesma coisa. Mas, foi recusado por todas as editoras. Valentim de Carvalho, Polygram, a que depois se chamou Sony, todas», firmaram JMB como um autor de referência não só sob o ponto de vista musical como cultural e social.

O grupo Teatro do Mundo levou à cena o concerto «Ser Solidário», uma vez mais JMB convidou o público a pré-financiar a existência do disco. Foi assim que o disco foi feito. A etiqueta comercial (Edisom) é efectivamente posterior, editora de Zé da Ponte e de Guilherme Inês que aceitaram editá-lo fazendo ao lado um maxi-single do «FMI», já com tudo pago e gravado. Em 1980 e 1981 os concertos estavam esgotados.

É inegável que JMB conseguiu uma almofada de público «para este tipo de canções, que está muito a cavalo entre esse fenómeno de que tu falas digamos que da marginalidade de certos cantores, e depois o outro fenómeno que é uma coisa muito forte que ficou do PREC, que é: a identificação política, não é?», mas JMB foi muito mais do que este período da canção, foi/é/será para mim inquestionavelmente um homem com uma cultura musical abrangente, o melhor arranjador de Música Popular, um compositor de ‘’novos fados’’ singular, como o provam, entre outros, os trabalhos discográficos com a sua mão, os seus ouvidos, a sua sensibilidade para Camané. Deixou-nos um dos autores mais interessantes dos séculos vinte e vinte e um, no seu percurso cabem todos os textos e homenagens.

Obrigada Zé Mário!

Notas:

Dossier 303: José Mário Branco, a voz da inquietação

1 História oral Mural Sonoro, entrevista a José Mário Branco: www.muralsonoro.com.

2 Novas literaturas para Fado com José Luís Gordo e Manuela de Freitas, Muralha Alfama, ciclo Conversas à volta da Guitarra portuguesa, org: Soraia Simões de Andrade: www.muralsonoro.com.

3  «Música e Sociedade», Museu Nacional da Música, org Soraia Simões de Andrade: www.muralsonoro.com.

4 Por falar em Luís Monteiro: www.muralsonoro.com.

©®fotografias arquivos de familiares de JMB: cedidas por António Miguel Branco Rodrigues para projectos da Mural Sonoro relacionados com a vida e obra de José Mário Branco/JMB.






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Fêmea, Uma história ilustrada das mulheres, Editora Santillana

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Fêmea, Uma história ilustrada das mulheres, Editora Santillana

[1] por Ana Biscaia e Inês Brasão

Fêmea, uma História Ilustrada das Mulheres, é um livro feito de 36 pequenas histórias ilustradas.

A sua organização não foi regida pelos princípios da cronologia ou da exaustividade, mas da possibilidade de suscitar o questionamento e o debate em torno de cada um dos fragmentos.

É, neste sentido, uma obra em aberto, uma vez que deixa ao leitor o aprofundamento das histórias que forem do seu interesse. Fêmea.. deixa a janela aberta a muitas perguntas e é feita de perguntas, também, suscitando um exercício de relação entre o passado e o presente, o adquirido e por adquirir, a redutora visão do binarismo de género, o poder, o corpo e a construção da intimidade, e, sobretudo, um exercício que não se conforma em deixar invisíveis as mulheres com que nos cruzamos nas ruas.

Não partimos de uma linha de tempo formal e academicamente constituída. Este foi um projeto criado em forma de árvore (a mulher), a partir de onde crescem três ramos dedicados aos Artefactos, Manifestos e Territórios.

Uma particularidade que não pode ser escamoteada é o facto de este livro ter tido como fundamento o equilíbrio entre a narrativa visual e a narrativa escrita, sem qualquer vislumbre de sobrepeso de uma sobre a outra. Fêmea.. associa a potência da imagem à palavra, e iguala a letra ao risco.

Nesse diálogo, imagem e palavra convocam reflexões sem guião pré-definido, na esperança de que se queiram abrir portas e partir espelhos ali refletidos. Trata-se de 36 sínteses históricas que gostávamos pudessem vir a contribuir, também, para uma educação sobre as questões de género, essencial nos dias que correm.

Fêmea é, também, um livro que subtendeu uma da vontade de falar de desejo na história das mulheres. Sabemos que a história oficial fez das mulheres sujeitos sem história. Fez das mulheres sujeitos sem desejo de falar, de se exprimir, de ter prazer, de se associar a partidos ou a causas. Fez delas profissionais de desejo, material de desejo, mas não sujeito de desejo. Fez da mulher um sujeito sem direito ao desejo de não fazer nada.

Assim, este livro assume que uma das melhores formas de se entender esta História é ver em cada um dos temas um movimento contrário ou adjuvante da identificação da mulher enquanto sujeito de desejo. Não apenas de um desejo físico, mas de um desejo ligado à ação de ter voz.

No capítulo dos Artefactos, elegemos 12 objetos que marcam transformações na relação da mulher com o seu corpo, o seu esforço ou a sua identidade, sempre em curso. A meia de seda, a pílula, o baú da noiva, a revista, a bicicleta, a máquina de lavar a louça ou o diário, entre outros, são usados como categorias que desencadeiam discussões. Falamos de objetos cujo valor simbólico tentámos que fosse transcultural.

A sua chegada ao contacto com o corpo feminino terá sido concretizada em diferentes temporalidades, e para propósitos diferentes, mas persistem como uma espécie de diques no curso de um rio. De algum modo terão causado um sobressalto, ainda que seja controverso, algumas vezes, o quanto a sua invenção e difusão terá representado sobretudo um projeto emancipatório ou, por outro lado, um projeto que reproduz as condições de desigualdade na relação com o mundo.

No capítulo dos manifestos, são representados 12 contextos singulares que introduziram disrupções no manto da história dos papéis. Não são, muitas das vezes, histórias felizes. Ali figuram mulheres que, a partir das adversidades que enfrentaram, incendiaram o horizonte de focos de tensão e luz.

Lutaram contra estereótipos sobre o significado do seu lugar. Levantaram o dedo, riram-se e insurgiram-se, entraram nos bares e pegaram no microfone, escolheram amantes e tiraram as fitas cor-de-rosa, falaram sobre si falando sobre outras mulheres, disseram o que queriam usando todas as conjugações. Mas, na verdade, são contextos que assinalam sobressaltos no chão das sociedades, tão persistentemente obstinadas em repetir-se a si mesmas.

A inquisitorial caça às bruxas, a escravatura, a entrada da mulher na ciência, enquanto artista, ou a possibilidade de discursar sobre o sexo e os imaginários eróticos, os manifestos de repúdio sobre a objetificação do corpo encontram-se aqui refletidos.

Terminamos com uma abordagem aos territórios que são essencialmente definidos a partir da ideia de trabalho. À escolha dos 12 trabalhos para esta História ilustrada das mulheres presidiu, em primeiro lugar, a vontade de denunciar a construção do trabalho enquanto revelação de género.

Desde sempre os trabalhos foram distribuídos sob o princípio da separação, e também da hierarquização. Como escreveu Alexandra Kollontai, o processo de divisão sexual de uma sociedade foi sempre o ponto central do seu processo cultural e político.

Ora, o controlo da economia sexual feminina marcou a relação das mulheres com o mundo, reservando a sua libido para a domesticidade e a reprodução. Os trabalhos destinados às primeiras incorporaram-lhes gestos, esforços e feridas determinadas, gerando uma espécie de crosta de reconhecimento da sua existência.

Às mulheres induziram os trabalhos reprodutivos, afastando-as dos produtivos e criativos. Neste ramo falaremos das mulheres no território das fábricas, da da domesticidade, da justiça, do ensino, da costura, da dança, do atletismo ou do shopping.

Não adianta esconder o quanto a palavra Fêmea, que dá nome ao título, se tornou anátema nos nossos dias. Neste livro, a palavra é exatamente a renúncia daquilo que a limita e que legitimou as maiores violências.

É a possibilidade de usar a palavra livremente depois de terem condenado tantas mulheres a serem pouco mais que a biologia do seu sexo. Usamo-la para a subverter, desdobrar, multiplicar e poder ansiar a pretensão de neste livro poderem estar contidas histórias que afetaram, de uma maneira ou outra, todas as mulheres do mundo. Julgámos que nela cabia um mundo inteiro que se transforma, macula, mantém, sobrevive e reivindica.

Fêmea é o rastilho que potencia o múltiplo feminino.

O livro é composto de uma última parte que dá voz a testemunhos de vida narrados na primeira pessoa. As últimas páginas de Fêmea dedicam-se à narrativa de um conjunto de histórias de vida de um conjunto de mulheres do presente que se recontam, olhando para si e para as mulheres e homens à sua volta.

[1] Ilustração: Ana Biscaia, textos: Inês Brasão. Fotografia de Ana Biscaia: Ali Matay.

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Raposa (Reynard) de Leonor Noivo, por Soraia Simões de Andrade

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Raposa (Reynard) de Leonor Noivo, por Soraia Simões de Andrade

[1] por Soraia Simões de Andrade



Raposa, é a mais recente média-metragem de Leonor Noivo, uma das fundadoras da produtora Terratreme, protagonizada por Patrícia Guerreiro. 

Trata-se de uma obra, com co-argumentação de ambas, que cruza ficção com realidade. 

Este filme documental relata-nos a relação de amizade de duas mulheres, uma realizadora e uma actriz, Marta (interpretada por Patrícia Guerreiro) atravessada por um distúrbio de comportamento alimentar comum: uma anorexia nervosa. Mas, até que ponto estão dispostas a dar de si, das suas histórias pessoais, à personagem criada?

O quotidiano de quem vive com um distúrbio de comportamento alimentar, posso testemunhá-lo (estive internada dos vinte e quatro aos vinte e nove anos com vinte e oito quilos na Psiquiatria Mulheres dos Hospitais da Universidade de Coimbra), no caso uma anorexia/ortorexia nervosa(s), passa, como o filme nos demonstra, por um conjunto de rituais, recusas de encontrar a vontade de sair dos mesmos, medições e contagens: de passos, de comida, de relações e de frustrações, como diz a actriz a um dado momento tudo é contável num corpo em luta e a única amiga, esguia, capaz de se camuflar? A Raposa. 

Esta média-metragem é tão perturbadora como clarividente, fiel ao sentimento de uma grande parte das angústias de quem convive ou conviveu com um distúrbio semelhante. É sobretudo bem escrita. O argumento, apesar das sombras constantes e da tristeza quase latente, é desassombrado e corajoso. 

Marta descreve-nos como essa constante busca de uma essência, um qualquer nirvana possível do corpo atingir, o qual concentra memórias e hábitos dos quais já não se consegue livrar, é uma procura de um corpo em combate: «como se estivesse sempre a representar e quando surge algo inesperado que não consigo controlar há um descontrolo da personagem», diz a um determinado momento.

A relação com o corpo é aqui apresentada e representada como uma relação de poder: autorizar o corpo a ter prazer, punir o corpo, maltratá-lo. A dado momento percebe-se que é o único modo de sentir controlo sobre algo, já que não se consegue controlar mais nada, que se controle o que se consegue, o nosso corpo, porque isso será certamente, como fica afirmado ao longo da narrativa, uma forma de segurança e poder. Quiçá porque é difícil ter/aprender de/a lidar com o exterior, apesar de ser aquilo que mais se quer: «lidar com o mundo» que nos rodeia, afirma.

Os quadros, filmados em ambiente rural, em casa da actriz, na Serra da Gardunha intensificam o monólogo: existencialista, poético, desconcertante. 

Uma nota positiva ainda para a relação equilibrada entre os silêncios e as falas.

O filme pode ser também encarado como um contributo para derrubar uma ideia bastante desenquadrada propalada por alguns meios de informação, que associaram ao longo dos anos este distúrbio ao universo da estética. Uma narrativa comum, deveras inscrita, porém frívola, ignorante, pouco corresponde  à realidade vivida por quem carrega o fardo de (con)viver todos os dias com algo tantas vezes terminante.

Raposa (Reynard) já recebeu a menção especial do júri, presidido pela artista visual Sharon Lockhart, no Prémio Georges de Beauregard International, assim como uma menção especial no prémio Marselha Esperança, atribuído por um júri de estagiários da École de la Deuxième Chance.

Aguarda-se ainda para este ano a estreia nas salas portuguesas.

[1] Opinião para Esquerda.Net



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