Amélia Muge com Samora Machel, 1975, Maputo

fotografia de António Quadros, também conhecido sob os pseudónimos João Pedro Grabato Dias, Mutimati Barnabé João, Frey Ioannes Garabatus, que usamos ao longo do texto.

O passado por pouco que nele pensemos é coisa infinitamente mais estável que o presente

Marguerite Yourcenar 


Arrastando tempestades

Que nos fustigam as carnes

Desfazendo com uivados

O que foi a nossa imagem

Resto de nós, quase aragem…

Amélia Muge

Mas, eu assim o quis!

F. Nietzsche


Breve resumo

Amélia Muge (n.1952) é uma artista polifacetada. Intérprete, compositora, poeta, ilustradora. É também historiadora de formação, e talvez isso explique algumas das suas opções estéticas, como se verá. Sujeito de um contexto social e de um universo artístico especiais – como o são todos, dirão, e tendemos a concordar – marcados por descontinuidades com modelos de produção musical e de recepção precedentes, com continuísmos de índole ideológica e sociocultural. Imprime, numa primeira fase, uma linguagem nitidamente engajada ideologicamente e, numa fase sucedânea, dinâmicas entre palavras. Na sua criação convivem símbolos da ancestralidade africana e da Grécia Antiga – diferentes recursos expressivos que abrangem uma duplicidade de sinais e mitologemas –, suportada por lendas, contos, poemas, narrativas, fábulas. É na edição discográfica de uma compositora que vai metamorfoseando o seu repertório musical a seguir à independência do país onde nasceu, Moçambique, que esta investigação se centra. A sua música está marcada pela persistência de uma história da trifurcação para onde converge a história das ideias, a literatura, e a filosofia. Os textos que musica abrangem realidade ficcionada e ficção realista. São invenções mitológicas, não no sentido em que a artista se envolve e deixa “intoxicar” pelas épocas em que compõe, mas pela radiografia dos vários tempos de criação como dos meios que a possibilitam e, por isso, nos fornecem um diagnóstico.

Uma das breves e mais claras explicações para a ficção é nos dada pelo ensaísta e crítico James Wood (n.1965) quando afirma que o ficcionista é o que nos diz a verdade ocultando pormenores íntimos, tapa-os para a verdade conseguir dizer e, assim, toda a artista seria uma mentira que diz a verdade. Ou, de outro modo, se Mundus Est Fabula, se o mundo é uma ficção como nos lembra esse partido imaginário que dá pelo nome Tiqqun na sua famosa Theórie du Bloom, pois Bloom é todo aquele ou aquela incapaz de se separar do imediato que [n]os detém, todos somos errantes que demonstram, através das suas práticas artísticas, esse nada absolutamente real à luz do qual tudo o que existe se torna fantasmagórico. Se Bloom vive dentro de Bloom, mesmo diante da mais robusta das renúncias, à volta está um mundo de coisas e nenhuma nos pertence por completo.

O repertório seleccionado de Amélia é per se uma micro-história da sua intuição e do seu autodidactismo face às mudanças pessoais indissociáveis do contexto histórico. Nele, esboça uma metafísica da canção literária onde os mundos de autores clássicos e os dos seus contemporâneos coincidem; estamos diante formas sonoras e linguísticas que irrompem a tensão entre forças dionisíacas e apolíneas. Isto é, entre uma força que concentra formas musicais inefáveis e um enlevo de harmonizações que, não raras vezes, a própria autora preenche com noções e teorias para a música que faz. Há momentos em que não sabemos onde inicia um discurso artístico e termina um discurso investigativo. A autora foi tendo muitas coisas para dizer, ora de modo não declarativo ora declarativo, acerca das suas criações. O mais das vezes, o que nos apresenta são formulações que vai retirando de geografias e tempos distantes dos presencialmente vividos mas que se complementam criando ambientes pluri-sinestésicos de grande nobreza fonética e afectiva preparando os ouvidos para sonidos fora das convenções histórico-antropologizantes comuns sobre “repertórios femininos em contexto colonial e decolonial”. Apesar de tudo, por meio da força volitiva e intuitiva, é-nos possível situar a afirmação dos registos musicais, poéticos e polemísticos da artista entre 1975 e o início do novo milénio, nos quadros culturais moçambicano e português; é também previsível que haja momentos no seu percurso em que não queira estar presa a nenhuma época; cada tempo não é unicamente o tempo de um pentagrama, por muito tocada que seja uma cifra ela é um objecto inacabado, a menos que definhe precocemente ou a matem antes de poder fazer o seu caminho até aos ouvintes.

A compositora acolhe e abandona reiteradamente sinais extemporâneos, retorna às valorações de feminino, masculino, portuguesa e moçambicana, música popular e literatura, baixa e alta cultura, procurando outros desígnios ou subvertendo discretamente os vigentes. Ao sair do concreto para o abstracto, do local para o universal, numa tentativa de superação das limitações das geografia e história locais; recolhendo, misturando, reinterpretando, abandonando directrizes e expectativas das indústrias musicais para si, vai reagir artisticamente e criticamente, em várias fases da sua discografia, às subjectividades das narrativas culturais que dominam a academia e o jornalismo musical sob uma aura pretensamente crítica, mimetizadora de um registo universitário e onde conflui, por vezes, o registo de crónica de costumes descentrado do objecto e centrado naquele ou naquela que assina o texto. 

Há uma firmeza e um estoicismo que movimentam todo o processo artístico, uma transmudação de axiomas, a recorrência de epânodos e o retorno às ancestralidades culturais. Com a  ideia de transmutação de todos os valores salvaguardada, Friedrich Nietzsche (1844 – 1900) resgata e adapta a si a noção de Eterno Retorno que está na génese do projecto de transmutação dos valores [Umwerthung aller Werthe]. Ela aparece pela primeira vez nos escritos de 1886 como subtítulo de um dos cadernos para uma obra que Nietzsche tem como objectivo escrever e intitulará de A Vontade de Poder [Der Wille zur Macht]. A transmutação de todos os valores abre, de par em par, janelas a diversas experiências estéticas uma vez arrancadas as peias éticas tradicionalistas menos atreitas a desvios, mudanças e rupturas. Nietzsche é o filósofo da intuição, não demonstra ser um bibliógrafo ou um profundo conhecedor da história filosófica; mas vai colando a si elementos de transitoriedade da cultura moderna por meio da revivificação da tragédia antiga de que a música de Wagner é um exemplo. Algo relativamente comum na elite cultural alemã é a menção à Grécia pré-cristã e à tragédia como reabilitadoras da cultura e da arte, não sendo por isso ex nihilo este seu interesse.

A afeição pelo trágico, o inescapável, o mito como fábula e narrativa ancestral preservada pela tradição, tem um lugar surpreendente na música. Não queremos com isto descurar o papel da obra do autor prussiano-germânico, como ela é capaz de desencadear uma irreprimível febre da experimentação, de sondagem e exploração do inconsciente, diferente da prosseguida por Sigmund Freud (1856 – 1939). Se para o pai da psicanálise, os instintos humanos são impulsionados pela satisfação do prazer, sexual ou alimentar, e pela agressão, levando o sujeito a reprimir os seus instintos de modo a não prejudicar o colectivo – donde, para o psicanalista,  os instintos  auto-boicotados são um sintoma daquilo que a sociedade não aceita –, para Nietzsche o inconsciente não é uma força opressora que precisamos conter, mas, antes, uma parte necessária e saudável da vida tal como o é a consciência, uma fonte de experiências indizíveis que enriquece a nossa experiência. Ao contrário de Freud, que enfatiza as repressão e sublimação, o inconsciente nietzscheano não é uma zona de repressão, conflitual, mas uma dimensão vital da existência que não devemos punir moralmente. Porém, o que aqui nos importa reforçar, é que se Nietzsche recria figurações de conceitos a partir de pedaços da história e da sociedade que possam corresponder às suas percepções por instinto – de Dionísio ao Eterno Retorno e à Vontade de Poder – para os ir eliminando de modo continuado, Amélia Muge é uma compositora da intuição e da mescla: ideias e lugares presentes no vasto legado fonográfico sugerem um ademane símile ao encontrado em  textos do músico, poeta, filólogo-filósofo alemão. E que se é Nietzsche quem urde a ideia da filosofia como uma espécie de medicina da cultura, compomos com a artista uma diagnose de cerca de três décadas de composições literário-musicais entre dois momentos da história Moçambique-Portugal com  boa parte do seu repertório lírico, composicional, discursivo, em pano de fundo.

    Ao iniciarmos esta dissertação de doutoramento apercebemo-nos do risco, novos rumos estão a ser delineados; combinamos teorizações ainda não exploradas na história da música popular a partir de uma compositora com uma profícua produção desde os anos sessenta. Devido à nossa longa experiência de abordagem à música feita em Portugal, e à caminhada musical de Muge particularmente, sem pausas desde 1975, à paixão por música e ao interesse longínquo por textos inabituais musicados, achámos uma brecha para sondar outras vias críticas do universo composicional a partir de uma mulher musical na diáspora. É que o diálogo com compositoras mostra-nos mais do que uma soma de sucedidos relativamente fácil de cartografar sobre os discos; seria uma incúria não retirar da penumbra o vislumbrado na multiplicidade das suas experiências com a música, os textos, a palavra dita, escrita, cantada; e os contingentes da "vida cultural".

Entre conjunturas nacionais e internacionais há uma vertente histórico-filosófica que realçamos e debatemos nesta reflexão crítica. Contamos, para isto, com registos sonoros, fílmicos, e uma bibliografia plural de enquadramento teórico com preeminência da História das Ideias e da Filosofia.


palavras-chave: Vontade de Poder; Utopia feminista; Canção literária; Eterno Retorno, Dor, Nostalgia, Ressentimento

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