O passado por pouco que nele pensemos é coisa infinitamente mais estável que o presente…
Marguerite Yourcenar
Arrastando tempestades
Que nos fustigam as carnes
Desfazendo com uivados
O que foi a nossa imagem
Resto de nós, quase aragem…
Amélia Muge
Mas, eu assim o quis!
F. Nietzsche
Breve resumo
Amélia Muge (n.1952) é uma artista polifacetada. Intérprete, compositora, poeta, ilustradora. É também historiadora de formação, e talvez isso explique algumas das suas opções estéticas, como se verá. Sujeito de um contexto social e de um universo artístico especiais – como o são todos, dirão, e tendemos a concordar – marcados por descontinuidades com modelos de produção musical e de recepção precedentes, com continuísmos de índole ideológica e sociocultural. Imprime, numa primeira fase, uma linguagem nitidamente engajada ideologicamente e, numa fase sucedânea, dinâmicas entre palavras. Na sua criação convivem símbolos da ancestralidade africana e da Grécia Antiga – diferentes recursos expressivos que abrangem uma duplicidade de sinais e mitologemas –, suportada por lendas, contos, poemas, narrativas, fábulas. É na edição discográfica de uma compositora que vai metamorfoseando o seu repertório musical a seguir à independência do país onde nasceu, Moçambique, que esta investigação se centra. A sua música está marcada pela persistência de uma história da trifurcação para onde converge a história das ideias, a literatura, e a filosofia. Os textos que musica abrangem realidade ficcionada e ficção realista. São invenções mitológicas, não no sentido em que a artista se envolve e deixa “intoxicar” pelas épocas em que compõe, mas pela radiografia dos vários tempos de criação como dos meios que a possibilitam e, por isso, nos fornecem um diagnóstico.
Uma das breves e mais claras explicações para a ficção é nos dada pelo ensaísta e crítico James Wood (n.1965) quando afirma que o ficcionista é o que nos diz a verdade ocultando pormenores íntimos, tapa-os para a verdade conseguir dizer e, assim, toda a artista seria uma mentira que diz a verdade. Ou, de outro modo, se Mundus Est Fabula, se o mundo é uma ficção como nos lembra esse partido imaginário que dá pelo nome Tiqqun na sua famosa Theórie du Bloom, pois Bloom é todo aquele ou aquela incapaz de se separar do imediato que [n]os detém, todos somos errantes que demonstram, através das suas práticas artísticas, esse nada absolutamente real à luz do qual tudo o que existe se torna fantasmagórico. Se Bloom vive dentro de Bloom, mesmo diante da mais robusta das renúncias, à volta está um mundo de coisas e nenhuma nos pertence por completo.
O repertório seleccionado de Amélia é per se uma micro-história da sua intuição e do seu autodidactismo face às mudanças pessoais indissociáveis do contexto histórico. Nele, esboça uma metafísica da canção literária onde os mundos de autores clássicos e os dos seus contemporâneos coincidem; estamos diante formas sonoras e linguísticas que irrompem a tensão entre forças dionisíacas e apolíneas. Isto é, entre uma força que concentra formas musicais inefáveis e um enlevo de harmonizações que, não raras vezes, a própria autora preenche com noções e teorias para a música que faz. Há momentos em que não sabemos onde inicia um discurso artístico e termina um discurso investigativo. A autora foi tendo muitas coisas para dizer, ora de modo não declarativo ora declarativo, acerca das suas criações. O mais das vezes, o que nos apresenta são formulações que vai retirando de geografias e tempos distantes dos presencialmente vividos mas que se complementam criando ambientes pluri-sinestésicos de grande nobreza fonética e afectiva preparando os ouvidos para sonidos fora das convenções histórico-antropologizantes comuns sobre “repertórios femininos em contexto colonial e decolonial”. Apesar de tudo, por meio da força volitiva e intuitiva, é-nos possível situar a afirmação dos registos musicais, poéticos e polemísticos da artista entre 1975 e o início do novo milénio, nos quadros culturais moçambicano e português; é também previsível que haja momentos no seu percurso em que não queira estar presa a nenhuma época; cada tempo não é unicamente o tempo de um pentagrama, por muito tocada que seja uma cifra ela é um objecto inacabado, a menos que definhe precocemente ou a matem antes de poder fazer o seu caminho até aos ouvintes.
A compositora acolhe e abandona reiteradamente sinais extemporâneos, retorna às valorações de feminino, masculino, portuguesa e moçambicana, música popular e literatura, baixa e alta cultura, procurando outros desígnios ou subvertendo discretamente os vigentes. Ao sair do concreto para o abstracto, do local para o universal, numa tentativa de superação das limitações das geografia e história locais; recolhendo, misturando, reinterpretando, abandonando directrizes e expectativas das indústrias musicais para si, vai reagir artisticamente e criticamente, em várias fases da sua discografia, às subjectividades das narrativas culturais que dominam a academia e o jornalismo musical sob uma aura pretensamente crítica, mimetizadora de um registo universitário e onde conflui, por vezes, o registo de crónica de costumes descentrado do objecto e centrado naquele ou naquela que assina o texto.
Há uma firmeza e um estoicismo que movimentam todo o processo artístico, uma transmudação de axiomas, a recorrência de epânodos e o retorno às ancestralidades culturais. Com a ideia de transmutação de todos os valores salvaguardada, Friedrich Nietzsche (1844 – 1900) resgata e adapta a si a noção de Eterno Retorno que está na génese do projecto de transmutação dos valores [Umwerthung aller Werthe]. Ela aparece pela primeira vez nos escritos de 1886 como subtítulo de um dos cadernos para uma obra que Nietzsche tem como objectivo escrever e intitulará de A Vontade de Poder [Der Wille zur Macht]. A transmutação de todos os valores abre, de par em par, janelas a diversas experiências estéticas uma vez arrancadas as peias éticas tradicionalistas menos atreitas a desvios, mudanças e rupturas. Nietzsche é o filósofo da intuição, não demonstra ser um bibliógrafo ou um profundo conhecedor da história filosófica; mas vai colando a si elementos de transitoriedade da cultura moderna por meio da revivificação da tragédia antiga de que a música de Wagner é um exemplo. Algo relativamente comum na elite cultural alemã é a menção à Grécia pré-cristã e à tragédia como reabilitadoras da cultura e da arte, não sendo por isso ex nihilo este seu interesse.
A afeição pelo trágico, o inescapável, o mito como fábula e narrativa ancestral preservada pela tradição, tem um lugar surpreendente na música. Não queremos com isto descurar o papel da obra do autor prussiano-germânico, como ela é capaz de desencadear uma irreprimível febre da experimentação, de sondagem e exploração do inconsciente, diferente da prosseguida por Sigmund Freud (1856 – 1939). Se para o pai da psicanálise, os instintos humanos são impulsionados pela satisfação do prazer, sexual ou alimentar, e pela agressão, levando o sujeito a reprimir os seus instintos de modo a não prejudicar o colectivo – donde, para o psicanalista, os instintos auto-boicotados são um sintoma daquilo que a sociedade não aceita –, para Nietzsche o inconsciente não é uma força opressora que precisamos conter, mas, antes, uma parte necessária e saudável da vida tal como o é a consciência, uma fonte de experiências indizíveis que enriquece a nossa experiência. Ao contrário de Freud, que enfatiza as repressão e sublimação, o inconsciente nietzscheano não é uma zona de repressão, conflitual, mas uma dimensão vital da existência que não devemos punir moralmente. Porém, o que aqui nos importa reforçar, é que se Nietzsche recria figurações de conceitos a partir de pedaços da história e da sociedade que possam corresponder às suas percepções por instinto – de Dionísio ao Eterno Retorno e à Vontade de Poder – para os ir eliminando de modo continuado, Amélia Muge é uma compositora da intuição e da mescla: ideias e lugares presentes no vasto legado fonográfico sugerem um ademane símile ao encontrado em textos do músico, poeta, filólogo-filósofo alemão. E que se é Nietzsche quem urde a ideia da filosofia como uma espécie de medicina da cultura, compomos com a artista uma diagnose de cerca de três décadas de composições literário-musicais entre dois momentos da história Moçambique-Portugal com boa parte do seu repertório lírico, composicional, discursivo, em pano de fundo.
Ao iniciarmos esta dissertação de doutoramento apercebemo-nos do risco, novos rumos estão a ser delineados; combinamos teorizações ainda não exploradas na história da música popular a partir de uma compositora com uma profícua produção desde os anos sessenta. Devido à nossa longa experiência de abordagem à música feita em Portugal, e à caminhada musical de Muge particularmente, sem pausas desde 1975, à paixão por música e ao interesse longínquo por textos inabituais musicados, achámos uma brecha para sondar outras vias críticas do universo composicional a partir de uma mulher musical na diáspora. É que o diálogo com compositoras mostra-nos mais do que uma soma de sucedidos relativamente fácil de cartografar sobre os discos; seria uma incúria não retirar da penumbra o vislumbrado na multiplicidade das suas experiências com a música, os textos, a palavra dita, escrita, cantada; e os contingentes da "vida cultural".
Entre conjunturas nacionais e internacionais há uma vertente histórico-filosófica que realçamos e debatemos nesta reflexão crítica. Contamos, para isto, com registos sonoros, fílmicos, e uma bibliografia plural de enquadramento teórico com preeminência da História das Ideias e da Filosofia.
palavras-chave: Vontade de Poder; Utopia feminista; Canção literária; Eterno Retorno, Dor, Nostalgia, Ressentimento