[1] por Daniel Reifferscheid

Isto da memória histórica é tramado. “Eles tinham passado por uma guerra, tinham passado por pobreza enorme e agora queriam era calma”, foi a lembrança da minha mãe sobre a reacção da geração dos meus avós ao activismo político que caracterizou a sua geração na Alemanha e que, entre imensas outras demandas, exigia mais honestidade sobre a época do terceiro Reich e sobre aqueles que tinham conseguido transitar de um sistema para outro. É difícil para um povo digerir um período de totalitarismo, em parte porque, quer seja imposto por dentro ou até por fora, todos sabem que nenhum regime pode sobreviver se não houver algum tipo de apoio popular, mesmo que parcial. Daí a piada-cliché francesa de que, por alguma razão, toda gente teve um avô na resistência, e ninguém descende de colaboradores do modelo Pétain. Curiosamente, o mesmo sucede na Coreia do Sul; todos descendem de corajosos resistentes à ocupação japonesa. Mais fácil assim, não é?

Bojina Panayotova, a realizadora do documentário Je Vois Rouge (conhecido no espaço anglo-saxónico pelo trocadilho igualmente delicioso I See Red People) começa o filme com algumas certezas: a sua avó pertenceu ao partido único do regime comunista na Bulgária; o avô também, e o pai também. Este último, no entanto, é um artista que se mudou para França logo após a queda do regime e que pode ser visto em footage antiga a gabar a liberdade de ter saído desse mundo repressivo. Está portanto construída a narrativa: não se podem afirmar como guerrilheiros corajosos a mandar tropas do regime pelos ares, pois não, mas isso também quase ninguém pode. Era gente liberal, civilizada, que conviveu com o regime apenas até ao ponto estritamente necessário, gente que nunca se sentiu bem com a situação em que estava e que saíu logo que se deu a possibilidade. 

Panayotova, infelizmente, não se consegue contentar com isso. Porque é que a família não conhecia ninguém que tivesse sofrido durante o regime? Porquê tantas ligações à nomenklatura, o serviço secreto búlgaro? Estas dúvidas surgem na cineasta ao mesmo tempo que o próprio país atravessa uma crise de identidade semelhante: a nova geração, ciente de que muitos dos intervenientes do antigo regime continuam no poder, exige finalmente um ajuste de contas, um exorcismo das maldições que continuam a pairar sobre a Bulgária. A footage desses protestos toma muitas vezes contornos tão agressivos que acabam por atordoar a realizadora e o espectador. “‘Lixo vermelho’” reflecte Panayotova, falando de um dos slogans mais presentes nas manifestações “continuo sem conseguir dizê-lo”. Em parte porque reconhece a família nessa apelidação, e é a sede de entender o que aconteceu realmente que a leva a vasculhar mais a fundo nos documentos do passado.

Na Bulgária, qualquer cidadão pode consultar os arquivos da polícia secreta para descobrir se existe uma pasta sobre si mesmo: esta, por sua vez, pode revelar que o mesmo foi vigiado pelo estado ou, pelo contrário, que serviu como agente do mesmo. Mas Panayotova não pode investigar o historial da sua família sem o consentimento dos pais, e é aqui que encontramos o conflicto principal de Je Vois Rouge: a jovem que quer entender o que se passou contra os pais, um casal de aspecto simpático, vagamente boémio, de classe média e meia idade, cheio de medos e reservas acerca dessa abordagem.

Em termos formais, isto implica muito trabalho em cima do joelho: filmagens feitas à socapa, longos vídeos de conversas por Skype. A banda sonora, composta por sintetizadores, adiciona algo de fantasmagórico à produção. A isso, a realizador adiciona muita footage propagandística do regime, bem como algumas animações propositadamente foleiras. Fãs do kitsch de Leste terão muito que apreciar em Je Vois Rouge, e o toque cómico ajuda a digerir uma narrativa bastante pesada. 

À medida que a sua investigação prossegue, a relação de Panayotova com os seus pais degenera: os testemunhos do pai, em especial, tornam-se cada vez mais defensivos, e o mesmo chega a acusar a filha de “paranóia pós-comunista”. Curiosamente, o ponto de comparação que ele encontra para a sua atitude - e para a atitude da sua geração - é o fanatismo do próprio regime  comunista. 

A forma impiedosa como a realizadora procura a verdade contra os desejos dos pais torna-se frequentemente constrangedora, e as acusações de fanatismo lançadas não deixam de ter algum cerne de verdade - a própria o admite, e mostra uma tentativa de filmar sem o consentimento da mãe que claramente infringe contra a ética documentarista. O único ponto de comparação é o instrutor de condução de Panayotova, que, apesar de considerar desde o início que a família deve ter colaborado com a nomenklatura, opta por uma abordagem filosoficamente relaxada sobre a questão.

Nada disto faz com que fiquemos completamente do lado dos pais: em primeiro lugar porque, tratando-se de uma narrativa que é também um mistério, queremos saber aonde é que a coisa vai dar. Mas para além dessa curiosidade, há uma questão de princípio: podemos olhar para o futuro sem entendermos o nosso passado? É legítimo evitar verdades históricas para não ferir sentimentos? No nível pessoal, somos tentados a pensar que sim; a nível estrutural, entendemos que isso só prolonga os males do passado. E o estrutural é composto pelo pessoal. 

No fim - e sem entrar em demasiados spoilers - as descobertas de Je Vois Rouge não levam a uma conclusão simples. Voltando ao binómio resistente/colaborador que mencionei no início do texto, a verdade é que na maior parte das vezes a maioria das pessoas está algures no meio. Há uma imensa ambiguidade nos níveis de colaboração a que um cidadão possa recorrer, e para além disso a escolha nem sequer é inteiramente dele - a dissimulação deliberada e o aparato burocrático dum regime totalitário tornam as coisas muito menos claras. Je Vois Rouge é um documentário fascinante e, em termos pessoais, corajoso - anuncia-se um talento excitante.

[1] Daniel Reifferscheid tem um programa de bandas sonoras, You Know The Score, na Rádio Quântica e é autor do podcast Prestes A Ver (sobre cinema português), para além de contribuir para o podcast oficial da Talking Pictures TV (em inglês). Nasceu na Alemanha, vive em Londres, mas é principalmente português. 



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