“Entrega-me a bandeira!”
Nunca podemos escolher o tempo histórico em que nascemos ou aquele em que temos de viver. É um facto. Não sendo historiador, encontro, no entanto, legítimos pensamentos assentes nas experiências que fui tendo ao longo do meu crescimento e formação como pessoa. Acredito que todos eles – os pensamentos e as experiências – carregam muito do que fomos assistindo e sentindo, mais ou menos diretamente. Os documentos existentes (outra possibilidade deste “meu” tempo) ilustram e amplificam-me a força de estar vivo.
A luta pelos direitos humanos, pela afirmação da criança e da mulher, pela igualdade entre géneros e liberdades sexuais, pela livre expressão, a revolução cultural, a luta pela sobrevivência interior... todas estes movimentos fazem do meu tempo um enorme caldeirão fervente ao qual não se consegue nem se devia ficar indiferente.
Em todo o caso, cada um olha para tudo isto com um sentido próprio e determinado nas suas convicções e na sua ética. Eu questiono-me vezes sem conta, sempre que estas questões me surgem pela frente – por ocasião de uma data, de um acaso, de um projeto –, duas dimensões fundamentais:
O que moveu estas mulheres, estes homens, estes movimentos para tamanha influência futura? A força brutal do pensamento e da vontade do Homem tem sido o grande motor de todo o desenvolvimento. Pergunto-me, a olhar para o meu companheiro do lado, provavelmente sem fome e quem sabe “inconformodamente” sentado em frente a um computador a lançar petições, alertas e canções, o que seria deste mundo hoje se não tivessem existido, vindo da verdadeira natureza humana, esta opção, determinação, obsessão, coerência, sofrimento, persistência... de cada um destes lutadores que tanto conseguiram para o que atualmente muitos de nós hoje dão como adquirido e garantido...
Sem revivalismos inconsequentes, mas com um olhar atual e global, a pergunta ecoa-me: “Onde está a tua mão?”. Sabemos que as nossas mãos de agora trabalham muito mais com os dedos do que com o punho fechado. Talvez os murros sejam só palavras... Que elas carregam quase nada em vez de bandeiras. Que emanam um suor perfumado... Claro, as condições são outras e portanto as lutas têm de ser outras. Mas eu não me refiro a processos. Refiro-me a essência. A respiração. A vida. A futuro.
Por isso, quando “estas questões me surgem pela frente – por ocasião de uma data, de um acaso, de um projeto –“ o sair à rua, o descer a Avenida de cravo na mão, o cantar em cima de um palco... tornam-se ocasiões de enorme conflito interior e questionamento. O que andamos verdadeiramente a fazer das nossas vidas, as únicas que temos?
Hoje, aqui fechado e confinado, uma espécie de alívio... Não podemos sair e temos de ficar em casa. Sentimo-nos presos na nossa luta? Condicionados nos nossos passos? Qual luta? Quais passos?
E, claro, torna-se oportuno colocar ao mundo a maior das nossas liberdades ainda: o pensamento. Pensemos neste tempo que é o nosso. Nas suas conquistas e nos seus conquistadores. Nas suas tiranias camufladas e sorridentes. No que ficou para trás. No preço do que temos. Na fatura. Onde estamos nós?
Onde está a nossa mão?