[*] por Manuel Pessôa-Lopes
No período de implementação e consolidação do Estado Novo, o cinema português, sonoro e a preto e branco, transformou-se num meio de propaganda desse regime cooperativista, protagonizado pelo ditador Oliveira Salazar, e influenciado pela corrente ideológica fascista que se afirmava em vários países da Europa.
O cinema e a rádio, para além do documentado pela escrita, eram os principais meios mediáticos tecnicamente disponíveis nessa primeira metade do século XX. Facto que motiva o fomento estrutural que o Estado Novo fez tanto na implementação da indústria cinematográfica, como na formação dos realizadores adeptos e cúmplices da ideologia oficial: foi o caso dos recursos financeiros recolhidos para o Fundo do Cinema Nacional, permitindo atribuir bolsas de estudo no estrangeiro a esses realizadores; a criação da Cinemateca Nacional, a fim de acervar e promover a produção portuguesa [1]; o incentivar a abertura de estúdios e empresas de produção, como a ‘Tobis Portuguesa’ [2], de distribuição cinematográfica, como a ‘Filmes Castello Lopes’ [3], e a boa funcionalidade de salas de exibição em muitas localidades do país.
Para o controle das mentes visadas pela censura, o salazarismo promovia o cinema nacional, fabricava mensagens apelativas, mesmo a preto e branco, da doutrina em vigor. Duas formas distintas haviam de dar corpo à mensagem nacionalista do salazarismo. Uma mais intelectualizada, de apologia histórica e literária, propagandista da cultura a gosto de António Ferro, é disso exemplo: os filmes As Pupilas do Senhor Reitor [4] e Camões [5] de Leitão de Barros. E outra, numa passagem para a película da tradição popularizada no Teatro de Revista, como os casos dos filmes: O Pai Tirano [6] e O Pátio das Cantigas [7] de António Lopes Ribeiro. Neste último filme é exemplo da subtileza da mensagem política transmitida, a sequência na cena de pancadaria do arraial de Santo António, e que simula uma situação de guerra, quando o actor Vasco Santana abriga as crianças sob a protecção do nome de Salazar [8].
Mas, António Lopes Ribeiro já se havia consagrado como o cineasta oficioso do salazarismo num filme anterior, A Revolução de Maio [9], um filme de ficção que imagina uma tentativa revolucionária para depor o regime instalado, e que é em simultâneo um documentário exibicionista do sucesso de uma década de ditadura e do Estado Novo.
O A Revolução de Maio procura alavancar o comunismo para principal inimigo e opositor, não obstante a pouca adesão que esta doutrina política ainda tinha, em 1936, na Península Ibérica, mas era uma inimizade oportuna no momento em que no país vizinho as tropas de Franco iriam iniciar o combate contra o regime republicano espanhol, era conveniente para Salazar, enquanto Estaline procedia a purgas e mantinha um regime de terror na União Soviética, ter uma oposição à altura de fundamentar a repressão e as lutas empreendidas pelos fascismos ibéricos.
Quando os revoltosos se reúnem na ‘Tipografia Liberdade’ e conspiram destruir a data simbólica do ’28 de Maio’, fazendo eclodir a revolução nesse dia, pretendem usar como manobra de diversão uma ‘ofensiva de boatos’, é, desta forma, evidenciado como metáfora populista, o perigo da informação estranha à ideologia vigente e a desejada falácia das ideologias contrárias. Esta manobra boateira passa à prática pela voz do Barata [Francisco Ribeiro], na cena que este protagoniza num diálogo no Martinho da Arcada [10].
O sinal escolhido para a revolução será dado por César Valente [António Martinez] com o hastear de uma bandeira vermelha, simbolizando o tal perigo comunista e substituindo no alto do mastro a bandeira nacional, mas essa bandeira levará César ao arrependimento e não a trocar, não a trair e a crer no Estado Novo [11].
Uma cena emblemática da doutrinação salazarista é quando, já no fim do filme, são documentadas as comemorações em Braga do décimo aniversário da Revolução Nacional, onde estão realmente presentes o Presidente da República Óscar Carmona, qual figurante, e o Presidente do Conselho António de Oliveira Salazar, qual actor principal que proclama o imperativo discurso do «não discutimos (…)» [12].
[*] Artista e Curador
[1] BAPTISTA, Tiago, Nacionalmente Correcto: a Invenção do Cinema Português, 2008, p. 6;
[2] RESTOS DE COLECÇÃO, Tobis Portuguesa, https://restosdecoleccao.blogspot.com/2011/07/tobis-portuguesa.html, 2011;
[3] FRANCISCO GRAVE, Filmes Castello Lopes, Citizen Grave, https://citizengrave.blogspot.com/2012/03/filmes-castello-lopes.html, 2012;
[4] BARROS, Leitão de As Pupilas do Senhor Reitor, http://www.cinept.ubi.pt/pt/filme/1989/As+Pupilas+do+Senhor+Reitor 1935;
[5] BARROS, Leitão de, Camões, https://www.youtube.com/watch?v=pxc3kmWlKDs, 1946;
[6] LOPES RIBEIRO, António, O Pai Tirano, https://www.youtube.com/watch?v=6LdRrjaPU10, 1941;
[7] LOPES RIBEIRO, António, O Pátio das Cantigas, https://www.youtube.com/watch?v=KqzCaY7yGeQ, 1942;
[8] LOPES RIBEIRO, op. cit.,53’33’’-58’03’’;
[9] LOPES RIBEIRO, António, A Revolução de Maio, 1.ª parte https://www.youtube.com/watch?v=jXM4Xs_665I, 2.ª parte – https://www.youtube.com/watch?v=B_uk0FnvxWw&t=344s, 1937;
[10] LOPES RIBEIRO, op. cit., 1.ª parte – 36’28’’-39’01’’;
[11] LOPES RIBEIRO, op. cit., 2.ª parte – 31’34’’-36’35’’;
[12] LOPES RIBEIRO, op. cit., 2.ª parte – 37’07’’-46’22’’.