[*] por Pedro Varela
Há várias décadas que o Rap se tem destacado como um espaço de denúncia, organização, consciencialização, discurso e reflexão antirracista em Portugal. Nos anos 1990s, ao mesmo tempo que se solidificava um associativismo de luta contra o racismo, de bairro e imigrante, emergia também uma geração de jovens artistas, negras e negros, que reivindicavam o seu lugar num país racista. As mulheres, apesar de invisibilizadas, também fizeram parte desse processo.
Em 1993 foi lançado “Norte-sul”, um dos primeiros videoclipes de Rap em Portugal[1], no programa Popoff, onde cantam General D e Sofia[2]. Foi filmado em Miratejo, berço mítico de encontro do movimento Hip-Hop. Nesse tema e vídeo encontramos algo que, de lá até aqui, vai ser constante no movimento: o discurso contra o racismo, colonialismo e fascismo; a pertença ao movimento antirracista; e a presença das mulheres. Na música, antes do beat se iniciar, surge-nos a voz de Mather Luther King - “I still have a Dream”; depois, ao longo das rimas, General D denuncia o racismo, o colonialismo e o saudosismo de Salazar que -“ainda abana o caixão”; no vídeo saltam imagens de protestos com faixas do SOS Racismo; e o refrão é cantado por Sofia - “Assim, todos juntos, Cantado a uma só voz, Ouçam o vento, Poder para todos nós”.
Um ano depois, quando General D lança o seu primeiro EP, a música “Portukkkal é um erro” que tinha um título ousado e frontal, dizia-nos o seguinte:
Rappers e guerreiros que se agitam sem rodeios.
Lutam e se juntam para afastar velhos receios.
Falam de racismo, etnocentrismo.
Forças ocultas para mim são surdas.
São, são, forças sem razão.
Males se juntaram e criaram esta nação.
Fuck 10 de Junho
E a Cavaco e a Salazar eu digo: Não! [3]
Nestas rimas General D fala-nos do papel dos rappers na luta e organização para o combate antirracista e antifascista, enfrentando novos e velhos fantasmas como “Cavaco e Salazar”. Ainda, no mesmo ano, o grupo Zona Dread, cantava na mítica coletânea “Rapública”: “Só queremos ser iguais, Nem sermos menos nem ser mais” [4]. Como mostram estas músicas, o movimento Rap teve e tem, em Portugal, um papel central na luta antirracista. E, ao longo dos anos, são vários os exemplos de MCs, mulheres e homens, que para além do seu percurso artístico são importantes militantes do movimento negro e antirracista.
O movimento Rap é, assim como outras culturas musicais em Portugal, um espaço marcadamente masculino, sendo um reflexo mais geral da nossa sociedade machista. Mas apesar da sua constante invisibilização e silenciamento, o movimento sempre contou com uma importante presença de mulheres, como mostram os vários trabalhos de Soraia Simões de Andrade [5] sobre o tema. Como refere a jovem MC da Cova da Moura, Mynda Guevara, numa entrevista que deu ao jornal Público:
“O rap é um meio um pouco machista. Nós, mulheres, temos de provar constantemente que somos capazes de fazer as coisas. Temos de trabalhar a duplicar ou a triplicar em comparação com os rapazes. Já senti isso na pele, principalmente no início. É preciso muita força de vontade.” (Mynda Guevara, 2018)[6]
Assim como Mynda Guevara, ao longo de anos diversas mulheres lutaram pelo seu espaço na sociedade machista e no movimento Rap. Por isso, é importante aqui destacar os nomes delas e de seus grupos, que sempre remaram contra a maré: Divine, Djamal, ZJ-Zuka, X-Sista, Jumping, Sweetalk, Jeremy, G Fema, Dama Bete, Capicua, Red Chikas, Lweji, Telma Tvon, M7, Mynda Guevara, Eva Rap Diva, W-Magic, Juana na Rap, Blink, Lady N, Chikita, Lendária, Shiva, Sharye, Lady F, A.M.O.R., Veecious V, PI, Sky, Lady R Black Magic Woman, Nenny, Russa, Cíntia, entre outras. A maioria delas, não esqueçamos, são mulheres negras, algo comum ao resto do movimento em Portugal, nomeadamente em Lisboa.
O Rap em Portugal, de uma forma geral, tem uma importante vertente de protesto e no Rap feminino, a intervenção política e social destaca-se fortemente. Nas letras das MCs é omnipresente o discurso da resistência feminina e da luta contra a opressão machista: reivindica-se o espaço da mulher no movimento, denuncia-se a violência machista, o assédio sexual, a falta de oportunidades ou a dificuldade de ser mulher-mãe-trabalhadora na nossa sociedade. Mas outros temas surgem também: a segregação e desigualdade social; a marginalização; a violência policial; a injustiça do sistema prisional; e evidentemente, o racismo. Também de destacar o trabalho recente da jovem rapper, Cíntia, que fala abertamente de amor e sexo entre mulheres, colocando de forma inédita a homossexualidade no panorama do movimento [7].
Já em 1997, o pioneiro grupo feminino Djamal, cantava sobre o racismo. Numa entrevista ao Público dois anos antes, diziam as artistas que "Djamal é uma banda para combater a discriminação das mulheres no rap [...] mas queremos ser vistas como rappers." [8]. No seu primeiro e único álbum, com o título que avisava a sua chegada, “Abram espaço”, cantavam:
Fala-se da cor, fala-se de dinheiro,
Mas algo é passivamente aceite pelo mundo inteiro.
Há séculos que se vive nesta obscuridão
De limitar a mulher com a dor da opressão […]
Chega de abuso,
Temos direito,
É hora de tratar a mulher com respeito. […]
É preciso união,
Pôr fim a discriminação racial, social e que tal sexual.
Mudar o panorama aqui em Portugal,
Porque este é um sistema que funciona com defeito [9]
(Djamal, Revolução (Agora!), 1997)
A letra desta música demonstra o panorama do discurso do Rap no feminino na luta por justiça social. Aqui as Djamal defendem a importância de combater o racismo e as desigualdades, mas pedem para que não se esqueça a opressão sobre a mulher, defendendo a união entre essas diferentes reivindicações. Nesse sentido, é como se sentissem representadas pelo combate contra ao racismo presente no movimento em geral, mas alertam para a importância da resistência das mulheres, surgindo como a voz dessa reivindicação. Num artigo do Público, que descreve um concerto das Djamal e elementos dos Black Company, que aconteceu dias depois do assassinato racista de Alcindo Monteiro em 1995, escrevia-se o seguinte: "Tudo começou com as Djamal, único e gratificante grupo de rap exclusivamente feminino em Portugal. Jeremy, X-Sista, Jumping e Sweetalk [...] dedicaram um momento de silêncio ao jovem assassinado pelos skins e depois partiram à luta." [10]. Nesta época, as Djamal vão ter um papel na luta antirracista, surgindo com General D e outros artistas em pelo menos três eventos importantes de campanhas contra o Racismo, como por exemplo: o “Concerto Contra a Discriminação Racial e Xenofobia” do SOS Racismo, no Ritz Club, a 10 de Junho de 1997, que marcava o segundo aniversário do assassinato de Alcindo Monteiro; a “Gala do SOS Racismo” em Guimarães em 1996; ou ainda num evento em Beja “Alentejo Terra de Tolerância”.
Desde do lançamento do álbum das Djamal até hoje, o racismo é um tema presente no rap cantado no feminino. Por exemplo, Dama Bete, MC da Parede que teve destaque aquando do seu albúm de 2007 “de igual para igual”, canta:
O Ser humano tem grande obsessão [pelo dinheiro].
E cega e se torna vilão. […]
Capaz de agredir, assim sem pena.
É capaz e faz, sem paz, que cena.
Até o aspecto pode ser ofensor.
A cor da pele, o cabelo, a cor. […]
Os humanos são malucos, é o que me parece
(Dama Bete, Missão à Terra, 2007)[11]
Capicua, também se tem envolvido em eventos antirracistas e, apesar de ser branca, em algumas das suas músicas, retrata o racismo e a opressão colonial. Em “A Mulher do Cacilheiro”, narra a vida difícil de uma mulher negra trabalhadora de origem cabo-verdiana em Lisboa:
Pele negra, cabelo curto,
Saudade de Cabo Verde,
Vontade de um mundo justo […]
E entre toda aquela gente,
Ela é só mais uma “preta”,
Só mais uma imigrante,
Empregada da limpeza,
Só mais uma que de longe,
Vê a imponência imperial […]
E ela é mais uma heroína que não interessa a Portugal.
(A Mulher do Cacilheiro, Capicua, 2014) [12]
Também Nenny, a jovem prodígio de dezassete anos que tem tido um enorme sucesso recentemente, relembra numa entrevista: “Foi para aí com 9, 10 anos, escrevi a minha primeira música. Falava sobre racismo e preconceito, ainda me lembro.” [13]. Já na sua música “21” diz: “Escala 400 tiros de pé, Bomba Black passa de 0 a 10, Bitch mema veia melanin cresce, Ice shots chama-me preta de neve” [14].
Numa sessão de estúdio de 2014, onde cantam mulheres rappers de diferentes percursos e gerações, estas mostram como tiveram, estão e estarão sempre presentes no movimento. Nas rimas de Dama Bete, Zuka-Divine, Shiva, Telma TVON e Sharye denuncia-se o racismo “explicitamente implícito”; as injustiças contra os imigrantes - “os novos judeus”; falam da resistência à comercialização - “música do povo, não há indústria que a mate”; e reivindicam a resistência das mulheres no rap - “Tomb Rider tenho debaixo da minha saia”.
Ouvir aqui: Cubic360 Cypher | Dama Bete, Zuka-Divine, Shiva, Telma TVON, Sharye
Assim, vemos que o Rap no feminino em Portugal tem tido o seu percurso silenciado, mas tem sido constante e poderoso. As mulheres destacam-se no discurso de protesto dentro do movimento denunciando opressões e injustiças, dando assim voz à resistência feminina.
No entanto, é evidente o número reduzido de mulheres rappers que conseguem romper e destacar-se de uma forma mais ampla. Mas isso pode estar a mudar como demonstram os sucessos de Capicua, Nenny ou Mynda Guevara. Na verdade, este é um fenómeno internacional no movimento, onde por exemplo emergem rappers feministas como Princess Nokia, Karol Conka ou Sampa the Great. E tudo isto acontece num momento em que as mulheres se mostram a nível global com fortes movimentos feministas, que lutam contra a violência machista e a extrema-direita. As mulheres rappers em Portugal vieram de longe e estão aí para continuar a “abrir espaço”, trazendo novos discursos, lutas e estéticas ao movimento. Como canta Mynda Guevara:
“Ken ki fla ma damas ka podi kamba na beats? […]
Ken ki fla mo m’ka podi rappa?
Ken ki fla mo m’ka podi kanta? […]
Rap femas, Tudu dia na Batalha” [15]
(Mynda Guevara, Ken Ki Flan, 2018)
[1] Também em 1990 e 1991, surgem no programa Popoff da RTP dois videoclips com General D: “African Boy” e uma música dedicada a Timor de General D e Tiago Lopes. https://www.youtube.com/watch?v=WVjJPwENz7Q e https://www.youtube.com/watch?v=Xjk_HUl9rXA .
[2] General D, Sofia e Jonhy, “Norte-sul”, 1993. https://www.youtube.com/watch?v=-_Si9GFNzC4.
[3] General D, "Portukkkal é um erro”, 1994. https://www.youtube.com/watch?v=cujuxQjrhCU.
[4] Zona Dread, "Só Queremos Ser Iguais", 1994. https://www.youtube.com/watch?v=0Vabl-9XdH0.
{5] Simões, Soraia (2019), “Fixar o (in) visível. Os primeiros passos do RAP em Portugal”. Casal de Cambra: Caleidoscópio; Simões, Soraia (2018), “Fixar o (in)visível: papéis e reportórios de luta dos dois primeiros grupos de RAP femininos a gravar em Portugal (1989-1998)”, Cadernos de Arte e Antropologia, Vol. 7, No 1, 97-114; Simões, Soraia (2017), “RAProduções de memória: 1990-1997, percursos da invisibilidade. As primeiras mulheres no RAP feito em Portugal (afirmação e resistência)”, Mural Sonoro, https://www.muralsonoro.com/mural-sonoro-pt/2017/11/12/raprodues-de-memria-1990-1997-percursos-da-invisibilidade.
[6] Mariana Duarte, “Guerreira do Rap”, Jornal Público, 27.02.2018
[7] Cíntia, "Ela", 2019. https://www.youtube.com/watch?v=CR3y4B0kbT4.
[8] Jorge Dias, Jornal Público, 01/03/1995.
[9] Djamal, "Revolução (Agora!), 1997. https://www.youtube.com/watch?v=svWPkuaeOI.
[10] Marta Duarte, Jornal Público, 16.06.1995.
[11] Dama Bete, "Missão à Terra", 2008 https://www.youtube.com/watch?v=oohlB-sZPrU.
[12] Capicua, "A Mulher do Cacilheiro, 2014. https://www.youtube.com/watch?v=G769So99jM4.
[13] Gonçalo Teixeira, "Nem Billie Eilish portuguesa, nem Lauryn Hill de Vialonga: Nenny é Nenny e chegou para mandar", Jornal Observador, 27.02.2020. https://observador.pt/2020/02/27/nem-billie-eilish-portuguesa-nem-lauryn-hill-de-vialonga-nenny-e-nenny-e-chegou-para-mandar/.
[14] Nenny, "21", 2019. https://www.youtube.com/watch?v=5gQAWHbYPIA.
[15] “Quem disse que as mulheres não podem rimar nos beats? […] Quem disse que eu não posso rappar? Quem disse que eu não posso cantar? […] Mulheres rappers, Todo o dia na Batalha”. Mynda Guevara, “Ken Ki Flan”, 2018. https://www.youtube.com/watch?v=8oWo_DFHMXk.
[*] antropólogo, investigador/doutorando no Centro de Estudos Sociais - Universidade de Coimbra (CES-UC).