OUTRA MÍNGUA

texto: Soraia Simões de Andrade

desenho: Elagabal Aurelius Keiser

colecção ثريا; Abril 2025

AH!

«Aquele retrato não era mais a imagem fotográfica das matriarcas. Era um orifício de luz no forno comunitário sem a comunidade, não havia grãos de fina moagem nos seus tabuleiros e bilhas. Um mercado de transístores onde todas falavam energicamente mas nenhuma escutava. Os ruídos e perigos cruzados de uma pequena sociedade atomizada sem partículas sólidas; uma cabeça sem ouvidos, uns pés sem ter­reno. Era a película nevrálgica da impostura, alarme viperino da pudicícia, céu do inferno, sentinela do desejo; bloco de pedra com que fizeram a figura impiedosa que treinava patos à míngua nos lagos e se satisfazia ao vê-los trinar com fastio. Era a força de mãos excêntricas que corriam atrás de pombos e mochos para apanhar esmolas no alcatrão. Mas, era também a filosofia de alguém abandonado num baldio. A moldura da família trabalhadora, migrante e neurótica, cadinho de iras e doçuras. Um tripé de câmera no quadripé, um saltério e um motociclo herdados com testamento. Área fílmica da contex­tura social, do denodo e dos laços a cultivar. Uma estação de folhas devoradas por lepismas prateados. A terra perseguida pelo extremismo da História. Um pulmão onde recriaram marcas suspeitas dos abusos na origem. Assim era ele, uma imagem eidética que quanto mais crescia menos envelhecia.» (página 74)

MULHER DE ALGAS

texto: Soraia Simões de Andrade

desenho de capa: Elagabal Aurelius Keiser

Melusina (tinta-da-china sobre papel de arroz)

colecção ثريا , Abril 2023

AH!

«Comecei a pensar que possivelmente terei conhecido a Glória noutros carnavais, era uma velha amiga, mais longínqua do que apenas estes quinze anos em Lisboa, talvez a tenha conhecido no núcleo de teatro do ensino secundário, em Coimbra. Contava ela a história da vida das abelhas num jardim perto da escola onde costumávamos ir fumar erva sempre que algo de muito mau nos acontecia, uma tentativa gorada de nos descontrair: a erva e a história das abelhas. Era mística, falava pouco, mas quando abria a boca dizia tanto que parávamos o que ali estivéssemos a fazer para a ouvir; recorria a metáforas, adágios, hipálages, conseguia quase sempre destapar algumas verdades com o seu olhar, as nossas experiências ganhavam alguma magnitude à medida que ela as contava por meio de certos alinhamentos verbais; creio que as teremos memorizado involuntariamente como um mantra donde todos os seres, todas as vivências, viriam e acabariam. Daí que quando, no fim do liceu, me apareceu numa prova obrigatória para admissão num pequeno espectáculo itinerante pela primeira vez o conceito morte da arte de Hegel, a mostrar que o material não seria o essencial na obra de arte mas antes o seu conteúdo espiritual, me lembrei da Glória, e inventei nessa prova, de componente prática, uma personagem com o seu nome. Enquanto bebia café temi a pior das notícias, que esta Glória já não existisse, não que tivesse morrido mas que já não existisse simplesmente.» (páginas 26 e 27)

In situ [algumas livrarias]; distribuição, encomendas: Livraria Tigre de Papel

Pedido a nós por email (transferência bancária ou MBWAY)

ACÚLEO CD

de Soraia Simões de Andrade (texto, voz) e João Diogo Zagalo (música, voz) com Gonçalo Zagalo Pereira (baixo, moogs, outros, masterização) e Fernando Ramalho (produção, guitarras, outros)

Outras edições; Nov. 2022

AH!

In situ [discoteca]

Louie Louie (Escadinhas do Santo Espírito da Pedreira 3, 1100-225 Lisboa)

Pedido a nós por email (para facultarmos dados de pagamento; por transferência bancária ou MBWAY)

Comment