Hernâni Miguel: Era muito grande. O sítio onde eu estava era onde paravam todos os músicos e estes miúdos começaram a aparecer por ali, muitos deles com o Boss.
Soraia Simões: Para além de fazer animação cultural tinha alguma ligação a eles como manager?
Hernâni Miguel: Não. Era amigo dos músicos que paravam no meu bar, como o Zé Leonel. Só mais tarde agenciei alguns destes rappers, miúdos e miúdas.
Soraia Simões: O primeiro vocalista de Xutos (Xutos e Pontapés)?
Hernâni Miguel: Sim. Também me dava com o Zé Pedro, o Pedro Ayres de Magalhães, o Pedro Oliveira, o Rodrigo Leão ou o Miguel Ângelo. Entre outros.
Soraia Simões: O pessoal que ia ao Rock Rendez-Vous também passava no seu bar?
Hernâni Miguel: O Rock Rendez-Vous já foi depois do meu bar. Mesmo antes disso. No início dos inícios de 80. Esta malta parava ali. Havia pessoas da Avenida de Roma, dos Olivais, de Almada e de outras bandas. Depois havia uns grupos de rock, de punk, parava tudo ali e dava- -me bem com todos. Aliás, eu e o meu saudoso amigo José Guiné (Zé da Guiné) devíamos ser das pessoas mais transversais da cidade de Lisboa.
Soraia Simões: Mais cosmopolitas?
Hernâni Miguel: Também. Mas, em termos das “culturas urbanas” eramos muito transversais. Dava-me bem com alfarrabistas, jornalistas, desenhadores.
Soraia Simões: E com músicos de todos os domínios da música popular, pelo que me conta. Do rock ao hip-hop.
Hernâni Miguel: Exacto. Tinha amigos da música clássica também.
Soraia Simões: Estaria no epicentro dessas confluências? Por ser um homem da noite, estar pelo Bairro Alto, etc?
Hernâni Miguel: O Bairro Alto tem sido todos anos. Só agora é que deixou de ser.
Soraia Simões: Há uns 10 anos?
Hernâni Miguel: Talvez, sim. Agora é outro Bairro Alto. Era o sítio da noite com a maior expressão em Lisboa, ao contrário do que muitas pessoas possam dizer.
Soraia Simões: O que é que as pessoas “podem dizer”?
Hernâni Miguel: São outras pessoas e há outra geração, mais nova, porque os que iam nos anos 80 já têm 50 anos. Não há nenhum bar onde eles sintam hoje que estão em casa, como no tempo do Café Concerto, do Frágil, do Rock House, do Artis e a do Ocarina.
Soraia Simões: Não se sentem identificados? Será pela idade ser outra e o tempo que a acompanha?
Hernâni Miguel: Eu acho que tem muito a ver com os locais em questão, porque eles já não existem.
Soraia Simões: Mas também é uma altura em que há economia do espaço e dinheiro. Nunca tem uma ligação como manager. Isso vem depois? Quando começa?
Hernâni Miguel: Só mais tarde. Essa ligação deve ter começado em 1984/85, com uma banda que eu tive de música africana. Espere (pausa). 1985 ou 1987.
Soraia Simões: O que o leva a aproximar-se destas pessoas que ainda não tinham uma representação discográfica nem cultural de alcance?
Hêrnani Miguel: Já ouvia RAP desde os anos 70. Olhe, ainda ontem levei para casa um dos “discos sagrados” de The Last Poets. Desde esse tempo que ouço RAP. Gostando de música e sendo uma pessoa que estava no sítio certo, na hora certa e conhecendo a indústria discográfica, na altura em que a (colectânea/compilação) RAPública aparece já tinha duas ou três bandas, foi fácil agilizar tudo quando me fizeram o convite para organizar e reunir uma série de cantores.
Soraia Simões: Quem lhe faz essa proposta? A Sony? O Tiago (Faden)?
Hêrnani Miguel: Sony. É o Tiago Faden. Numa conversa tida no meu bar, como muitas que existiram. Em determinada altura eu digo-lhe que era pena não haver um projecto de hip-hop e RAP neste país. Ele calou-se e passado um tempo perguntou-me se eu queria fazer isso. Eu disse que queria e ele disse para me organizar. Cada banda teve dois dias para gravar, o que foi ridículo.
Soraia Simões: Em estúdios diferentes.
Hêrnani Miguel: Sim. E com produtores diferentes. Ninguém tinha preparação e nenhum produtor sabia o que era gravar hip-hop. Felizmente, para a causa, aparece o tema “Nadar” que, não sendo o melhor tema de hip-hop, torna-se a sua bandeira e consegue fazer com que aquilo tenha uma tremenda visibilidade. Apesar de tudo, a Sony, tirando o facto de não nos ter dado mais tempo e condições, era independente, ao contrário da Norte-Sul, onde estava o General D, que estava sempre dependente da Valentim de Carvalho. Eu acho que eles não acreditavam muito naquilo que deveriam e foi uma questão economicista.
Soraia Simões: Não disponibilizar o estúdio por tanto tempo?
Hêrnani Miguel: Não, de forma nenhuma. Escolheram um estúdio simpático e o técnico era bom homem e olhou para aquilo com alma e coração (pausa). Podíamos ter tido melhores condições e podia ter sido outra coisa.
Soraia Simões: Recorda os impactos que a colectânea foi tendo nesses anos? Nas rádios, nos espaços culturais, na noite, etc?
Hêrnani Miguel: É o disco do ano.
Soraia Simões: Mas o que se reserva na memória colectiva nacional da RAPública é o “Nadar”.
Hêrnani Miguel: Tem razão. É o “Nadar”. Mas, reserva-se outra coisa fantástica. São músicos a cantar e a escrever em língua portuguesa, quando se dizia que era muito difícil. Na altura, salvo algumas excepções, os grupos não cantavam em português. Os miúdos começaram a perceber mais tarde que não precisavam das editoras. O Boss AC e o grupo Mind da Gap existem por causa disso. Começou a existir a “cultura MTV” e aquilo começou a abrir. O “Nadar” é o tema que abre aquilo tudo.
Soraia Simões: Mas também há uma tentativa, e o cantar em português[1]reflecte-o, de se demarcarem da imposição do capital cultural americano, embora lhes tivesse sido referencial numa fase primeira (pausa). Esses anos que se seguem imediatamente à publicação de RAPública surgem (interrompe).
Hêrnani Miguel: Da Weasel aparecem.
Soraia Simões: Exacto. Já ganham notoriedade nessa segunda fase, depois do recorte de tempo que aqui tracei. Mas, o que lhe quero perguntar é se os, à altura miúdos, da colectânea têm, após dois/três anos de lançamento dela, alguma projecção em Lisboa?
Hêrnani Miguel: Não têm. Não acho que tenham. O Funky-D foi viver para Angola, o Lince (New Tribe) é um senhor engenheiro muito bem estabelecido (sócio-gerente do estúdio BIG BIT, onde o som destas entrevistas foi tratado), o Gutto (Bantu, Black Company) é advogado em Angola, o Boss AC é um músico reconhecido, o D-Mars (Zona Dread) está na Holanda, o Jorge (Jazzy, Zona Dread) tem um bar (Soul de Lisboa, à rua da Madalena, baixa lisboeta, que acabou por fechar no fim de 2017). Ou seja, se olharmos, quem é que quis continuar na música? O Boss AC, o Gutto faz umas aparições, o Makkas idem, o Bambino só música e o D-Mars. Os outros, de uma forma geral, olharam para outras coisas.
Soraia Simões: No pós RAPública continua a ter uma ligação com esses músicos?
Hernâni Miguel: Sim. Amigo deles.
Hêrnani Miguel: Fui manager do Boss (AC), de Black Company, da Maimuna (Jalles) e, fora disso, até de Blackout, Samora (que celebrizaria o tema “Black Magic Woman” com General D).
Soraia Simões: Consegue perceber porque é que a sua experiência como manager está tão marcada na cabeça destas pessoas? Todos e todas me falam de si.
Hêrnani Miguel: Porque me relacionava muito bem com imensas pessoas. Tudo o que parecia difícil tornava-se fácil. Chegávamos aos locais e os 'homens do hip-hop' eram recebidos ao nível dos artistas. Isso era marcante.
Soraia Simões: Sente que houve, da parte de alguns miúdos, deslumbramento com tudo? Já falei e gravei vinte e três pessoas ligadas directamente ao disco e sinto uma certa mágoa.
Hêrnani Miguel: Houve um deslumbramento grande por parte do Makkas[2] e de uma série de outras bandas. Os miúdos que vêm da periferia e de um momento para o outro são estrelas nacionais.
Soraia Simões: Sente que criaram expectativas num meio que depois não deu respostas na póscolectânea?
Hêrnani Miguel: Sim, absolutamente. Havia uns que não estavam bem preparados. Para se ter uma carreira é preciso saber que nem sempre estamos lá em cima. Existe um “virar de costas” que tem a ver com vários factores. A indústria musical não acreditou que o nosso hip-hop singrasse. Pensavam que era um epifenómeno, mas depois deste período da sua investigação, aparecem o Sam (The Kid), o Valete, etc. Aparece a segunda vaga que, em termos gerais, é mais forte do que a primeira vaga, porque já conhecia mais música e recursos. Entre a primeira e a segunda vaga há uma banda muito importante, Mind da Gap. Depois as Djamal também são um legado importante e fazem um barulho. Em Maio vou ter uma reunião com a Sony para propor uma nova colectânea, chamada RAPública 2. Vou fazer os possíveis para convidar os antigos. Para isso preciso de dinheiro e não queria da Sony. A minha ideia era ir à procura do Bambino (Black Company) com uma câmara e dos outros todos. Acho que era um documentário fantástico.
Soraia Simões: Estão quase todos ainda vivos.
Hêrnani Miguel: Sim. E somos amigos uns dos outros.
Soraia Simões: Às vezes é preciso passar algum tempo para as pessoas perceberem a importância daquela pessoa no seu percurso?
Hêrnani Miguel: Sim, sim. E eu sei bem disso. Porque senti na pele. Houve uma altura que eles acharam que não era aquele caminho e que eu estava a agir mal. Para além de haver um desinteresse. Foi preciso haver uma liderança por alguém como eu ou outra pessoa. Alguém que conseguisse reuni-los, congregá-los e irem abrir a porta para não ficarem na fila de espera. Eu tinha um bar fortíssimo (o Targus), onde parava lá o crème de la crème.
Soraia Simões: Com a vantagem de conhecer uma Lisboa que a maioria não conhecia. Estavam sobretudo concentrados nos bairros circundantes a esta área metropolitana.
Hêrnani Miguel: Sim, exacto. Não iam ver as coisas e eu andava sempre a passear.
Soraia Simões: Não há grupos femininos na RAPública.
Hêrnani Miguel: As Djamal apareceram depois do álbum estar feito.
Soraia Simões: Mas elas já existiam.
Hêrnani Miguel: Não se mostraram.
Soraia Simões: Se fizesse uma reedição elas entrariam?
Hêrnani Miguel: Não sei. Se elas se derem bem, entram.
Soraia Simões: Como foi escolher aqueles grupos em concreto?
Hêrnani Miguel: Eu falei com o Boss AC para arranjar um grupo de pessoas que ele gostasse de hip-hop e quisessem cantar. Ele disse que tinha uns bons colectivos que faziam umas festas. Deu-me os nomes e meio trabalho já estava feito.
Soraia Simões: O Boss AC já tinha esses contactos...
Hêrnani Miguel: Dava-se com eles, sim, e faziam coisas em conjunto. Isso foi muito bom.
Soraia Simões: Porquê RAPública como nome da colectânea? De onde vem essa ideia?
Hêrnani Miguel: Essa ideia é minha e do Tiago Faden. Ele queria RAP e eu queria que fosse uma coisa pública.
Soraia Simões: Aglutinou-se. Ficou RAPública (risos).
Hêrnani Miguel: Não havia dinheiro. Depois a mãe da Beatriz (filha de Hernâni Miguel) fez o mapa em rios, com o Rio Tejo no meio.
Soraia Simões: Foi uma forma de legitimar os grupos da área metropolitana de Lisboa?
Hêrnani Miguel: Sim.
Soraia Simões: Porque o seu contacto era com Lisboa.
Hêrnani Miguel: Lisboa e a margem sul. Morei um tempo no Feijó.
Soraia Simões: Foi uma altura em que houve muito dinheiro.
Hêrnani Miguel: Houve muito dinheiro, é um facto.
Soraia Simões: Em pleno cavaquismo[3].
Hêrnani Miguel: Com a história de matar as empresas.
Soraia Simões: As multinacionais não tinham nada a perder? Ou, por outra, podiam arriscar com outros com que ganhavam muito e as permitia investir noutros com menor visibilidade ou que geravam mais incertezas?
Hêrnani Miguel: Não tinham nada a perder. Isso baralhou tudo porque a Sony investia o que queria. Se olharmos para quanto custou o álbum Viagens do Abrunhosa, percebemos tudo. Eu, o Manuel Reis e o meu amigo Eduardo criámos uma associação chamada Bairro Alto Produções.
Soraia Simões: Não encontrei. Estava registada?
Hêrnani Miguel: Nada (risos). Depois proponho ao Eduardo fazer um concerto do Pedro Abrunhosa.
Biblio/fontes
1) Simões, Soraia 2017 RAPublicar. A micro-história que fez história numa Lisboa adiada (1986-1996). Editora Caleidoscópio. Lisboa.
2) Simões de Andrade, Soraia 2019 Fixar o Invisível. Os primeiros Passos do RAP em Portugal. Editora Caleidoscópio. Lisboa.