Dossier RAProduções de Memória, Cultura Popular e Sociedade
TIAGO FADEN
Director Artístico e Executivo da colectânea Rapública, 1994
(excerto de uma das conversas — gravadas de Fevereiro a Julho de 2016)
O desalento sentido face às regras, normas e valores da sociedade americana dominante das décadas de 1980 e 1990, estimulou uma prática vivida a partir de um núcleo estruturado e internamente legitimado de normas e valores (Fradique: 2003). Nesse núcleo, os jovens encontraram um modo de exteriorizar as suas realidades quotidianas, vividas na primeira pessoa e/ou presenciadas no seu núcleo, ao mesmo tempo que experimentaram e exibiram no RAP um sentido para as suas existências. O RAP tornara-se já a banda sonora do bairro, do subúrbio, daquilo que esteve, usando uma expressão do sociólogo Pierre Bordieu, à margem do «capital cultural» ao mesmo tempo que procurava colocar a sua «identidade» no itinerário discográfico e televisivo, assinalando rotas de afirmação, resistência mas também cedências.
Esse RAP chegaria num momento crucial a Portugal, que talharia a sua amplificação junto da sociedade civil. Num período (i) limitado pela euforia dos fundos europeus, pelo cavaquismo e neoliberalismo, pela consolidação da indústria de publicação de conteúdos: imprensa, rádio, televisão e o momento auspicioso vivido por etiquetas discográficas com impacto internacional (EMI Valentim de Carvalho, BMG, Norte Sul, Sony Music) [1].
Soraia Simões: Havia consciência por parte deste grupo de rappers, quando os conheces, do impacto que o RAP estava a ter com o que era distribuído na Europa? Isto é, tens isso presente?
Tiago Faden: Aquilo que te posso dizer, porque tenho acompanhado a música com alguma atenção, é que essa consciência não existia. Ou seja, não existia a consciência de que aquele tipo específico de música significasse um «movimento».
Soraia Simões: Para os/a rappers, e foram trinta e cinco, os/a que entrevistei ligados a esta compilação ou ao momento da sua feitura, todos/a se referem ao domínio como tratando-se de parte de «um movimento», o hip-hop, com as suas outras vertentes.
Tiago Faden: Isso foram os branquelas que vieram com essa conversa.
Soraia Simões: Queres com isso dizer que na tua opinião foram os media e eles reproduziram?
Tiago Faden: Essa eventual consciência foi-lhes, um pouco, passada posteriormente, sim. Naturalmente, aos poucos eles também tomaram consciência ao falarem com outras pessoas, como jornalistas, etc. Reflectiram sobre a questão e perceberam. Não tinham a intenção de encabeçar ou liderar «um movimento», mas havia uma mensagem e uma música que se tinha repetido várias vezes em diversos países. Repetia-se em França, de forma estrondosa. De repente, ficou tudo rappisado. Durou duas ou três décadas. Ainda hoje, o RAP é um movimento forte em Paris. Logo, essa consciência foi adquirida posteriormente. Daí ter sido uma expressão um pouco naif, ingénua. Eu não estou a dizer que eu e o Hernâni fomos buscar pessoas e colocámos em salas de ensaios para fazer grupos. Não! Eles já existiam. Na verdade, nós é que acelerámos esse processo. O Hernâni esteve em cima deles e este trabalho foi feito.
Soraia Simões: Se já existiam e com determinados repertórios, características ou nomenclaturas, então tinham consciência, parece-me...
Tiago Faden: Já havia uma procura de outra afirmação. As pessoas já não se constrangiam aos lugares que lhes estavam destinados. Uma sociedade que via que todos tínhamos a ganhar e o dinheiro era distribuído por toda a gente, mas não era verdade.
Soraia Simões: Pois não. Era de facto bastante desigual. Mas, achar que a hipotética evidência quanto à preparação do «fenómeno» nos processos de mercadorização da vossa parte, da parte da indústria de gravação de discos, é alheia aos que lhe deram corpo: aos seus actores, sujeitos da história e portanto agentes impulsionadores dessas dinâmicas é que...
Tiago Faden: De facto, aqueles anos de 1993/94 foram importantes nesse sentido, porque ao haver uma crise antes, foi a primeira vez que as pessoas começaram a viver com alguns subsídios, havia algum Estado social e alguma redistribuição na área da saúde e da educação, como por exemplo os livros à borla. A mim o que me fazia impressão é que parecia que estava tudo bem. Eu estava muito bem porque estava numa multinacional e ganhava bem, não me preocupando com as condições sociais e materiais dos outros (pausa) Tinha um departamento para gerir, com uma dezena de pessoas, assim como um budget para fazer. Não estava muito disponível para experiências.
Soraia Simões: Isso quer dizer que no contexto da multinacional em questão, produzir a colectânea RAPública podia ser uma experiência, mesmo que falhasse? Ou seja, o que a motivou foi o facto da editora estar num momento financeiramente bom e o género estar a alcançar algum sucesso lá fora?
Tiago Faden: Isso mesmo. Mas eu tinha essa liberdade da empresa (Sony Music) para fazer algumas experiências.
Soraia Simões: Mas esta colectânea foi uma experiência?
Tiago Faden: Eu diria que foi duas coisas (pausa). Do ponto de vista pessoal que me trouxe pouco. O facto de, hoje em dia, algumas pessoas estarem surpreendidas por eu ter sido o autor intelectual deste projecto, conta pouco. Eu fiz isto por motivação pessoal e interesse. Fui músico nos anos 80 (integrante do grupo Radar Kadafi — 1984 - 1987 —, como baixista, que se apresentara no Rock Rendez Vous uma década antes e deixou dois discos editados pela Polygram) e estas questões não me passavam ao lado. Também fiz isto por uma questão de oportunidade e negócio, mas o negócio foi sempre muito pouco.
Soraia Simões: Mas porque estas pessoas estavam a ter expressão na cidade de Lisboa?
Tiago Faden: Não. É importante fazer esta ponte porque eu tive a noção desta situação quando falei com o Hernâni. O meu desafio foi embarcar neste projecto e ele ir à procura dos artistas. O Hernâni é que foi o verdadeiro produtor.
Soraia Simões: Não? Levantei durante a minha pesquisa um número simpático de material em VHS e fita cassete de 1986, 1987, 1988. Já tinham expressão. Se virmos os bairros à época como parte e extensão da vida nas cidades. Alguns até viviam nela, como o Boss AC (pausa). O Hernâni foi o produtor com alguma ajuda do Boss AC?
Tiago Faden: Sim. Com alguma ajuda do Boss, o Gutto (Bantu, Black Company), o Makkas (Black Company) e outros que já não me lembro o nome. Penso que o Gutto, o Boss e o José Mariño (radialista e ex director da Antena 3 da RTP, também entrevistado. Autor dos programas Novo RAP Jovem, Repto) tiveram um papel preponderante.
Soraia Simões: Na escolha?
Tiago Faden: Sim, acabámos por escolher em conjunto. Houve alguma democraticidade no processo.
Soraia Simões: Mas o General D não entra na colectânea Rapública.
Tiago Faden: O General D não entrou porque estava a preparar o seu primeiro EP, que saiu no princípio desse ano. Lembra-te que o EP do General (Portukkal é um Erro) saiu dois ou três meses antes da Rapública. Ele deverá ter sido aconselhado pela editora (Valentim de Carvalho) para não entrar na compilação.
Normalmente as editoras fazem isso. É uma questão de exclusividade. Se ele pode ser uma figura emergente e estiver exclusivo é melhor. Lancei o desafio ao Hernâni em 1993. Depois contactámos as pessoas, definimos um budget para gravação, escolhemos o repertório dos grupos e iamos para o estúdio gravar. Fez-se o processo normal. A situação que gerou sempre uma controvérsia foi a questão do tempo para os músicos gravarem.
Soraia Simões: Já me disseram. Foram 2 dias e em estúdios diferentes.
Tiago Faden: 2 dias? Por amor de Deus! Nos anos 80 gravei um disco em dois dias.
Soraia Simões: Também eram as condições do momento. Mas eles não gravaram todos no mesmo estúdio de gravação. Gravaram em vários. Daí também se notarem as diferenciações sob o ponto de vista sonoro na gravação, não há equilíbrio nisso.
Tiago Faden: Sim, mas não foram 2 dias para todos. Tiveram muito tempo. A questão era que a maior parte deles eram personagens imberbes na música. Chegavam ao pé de mim a dizer que dois dias era pouco, mas se lhes desse mais não sabiam como o usar.
Soraia Simões: Sem experiência de estúdio, queres tu dizer?
Tiago Faden: Principalmente sem grande experiência do ponto de vista musical. Tinham a experiência do ponto de vista do spoken word, mas não tinham capacidade de operacionalizar e informar sobre uma música, porque não tinham acesso às máquinas que eram caras.
Soraia Simões. Alguns tinham a QY10. Outros usavam o computador, como no caso de Lideres da Nova Mensagem. À maquinaria mais cara não teriam com certeza...
Mas, há outra perspectiva. Que alguns deles já me disseram também, a de que a indústria de gravação e as editoras em Portugal não conheciam naquela fase inicial RAP e por isso não sabiam como trabalhar um domínio daqueles, por não haver experiência a esse nível. Queriam que eles trabalhassem no mesmo 'molde' que grupos de pop rock...
Tiago Faden: As pessoas da Rapública usaram o RAP na sua forma original, ou seja, na versão negra do punk. Mais nada.
Soraia Simões: O “Do It Yourself” e o faz tu mesmo com os recursos que tens. Uma fotografia do momento....
Tiago Faden: Sim. E rompe com as barreiras. Eu vejo que, no final dos anos 70, o RAP emerge nos EUA associado ao street art. É conjunto. O RAP apropria-se do punk, que tinha existido na Europa e transita para Nova Iorque. É a resposta negra a um insurgimento na sociedade, tal como o punk foi uma resposta branca. E é isso que o hip-hop já não é, nem nunca será. Acho que a beleza do RAP está na sua dureza. Aquela geração de miúdos sentia uma grande revolta e necessidade de sair de um “colete-de-forças”. Nós sentimos isso com o contacto que tivemos com eles. Quando eu lhes perguntei o que eles queriam para a capa, um dos grupos disse que queria duas kalashnikov. A capa acabou por ser feita pela Célia, mulher do Hernâni[2]. Havia um grupo ou dois no Porto, mas não achámos que eram significativos. Entendemos que isto era sobre a área metropolitana de Lisboa e que uma forma de conseguir mostrar uma nova música, que estava a ser feita, era através da tensão que ela poderia significar. A Rapública, contrariamente ao que dizem alguns branquelas que depois se meteram no movimento RAP e no hip-hop, que foi um “falso tiro de partida”, a verdade é que foi um arrastão artístico. A única coisa que penou é que não tinha uma street art, com um mínimo de qualidade, que pudesse ser, com a parte musical, o match (ponto de partida). Foi isso que não conseguimos fazer e, mais tarde, começa a aparecer. Quando quisemos fazer o vídeo do “Nadar” vimo-nos aflitos para encontrar sítios icónicos. Precisávamos de sítios de street art [3] e não havia. Os sítios que haviam eram de muito fraca qualidade, mais do que a própria música.
Soraia Simões: O grupo que referes é Mind da Gap, presumo. Eles foram convidados, segundo me contou o Ace (um dos elementos fundadores) para entrar na RAPública, e o grupo recusou. Mas, o Hêrnani, teu camarada de produção, acha que foram um grupo impactante a norte.
Tiago Faden: Sim, mas o mais importante eram os sinais simbólicos da música em si. Podia ter sido um caminho interessante para o hip-hop. Mas era Lisboa, do ponto de vista artístico. O disco tinha algumas expressões muito interessantes. Foram beber à música tradicional angolana, africana e cabo-verdiana algumas batidas, ritmos e formas de «entrar na música», como «saltar à corda». Um cantar como «saltar à corda».
O primeiro disco de Black Company não tem isso curiosamente[4]. O General D tentou fazer isso, mas sob o ponto de vista da imagem, vídeo e fotografia apoiou-se na cultura africana. Do ponto de vista musical, não sei se ele teve vergonha ou se acharam na altura que «a música africana» era foleira.
[1] Simões. Soraia. 10 de Fev. 2018. (parte I). RAProduções de Memória: Apontar origens, influências e contradições. Cultura. Esquerda.net
[2] Dossier RAProduções de Memória, Cultura Popular e Sociedade: Hernâni Miguel: Mural Sonoro.
[3] Simões. Soraia. RAPublicar. A micro-história que fez história numa Lisboa adiada: 1986 -1996. Caleidoscópio. QR Code - História Oral: Nomen (writer).
[4] Geração Rasca. 1995. Sony Music.
Fradique. Teresa. 2003. Fixar o movimento: representações da música rap em Portugal. Lisboa: Publicações Dom Quixote.
Biblio/fontes
Biblio/fontes
1) Simões, Soraia 2017 RAPublicar. A micro-história que fez história numa Lisboa adiada (1986-1996). Editora Caleidoscópio. Lisboa.
2) Simões de Andrade, Soraia 2019 Fixar o Invisível. Os primeiros Passos do RAP em Portugal. Editora Caleidoscópio. Lisboa.
Onde encontra as obras mencionadas em !) e 2):
Editora Caleidoscópio
Almedina
FNAC
Bertrand
Ler por aí…
RAPortugal 1986-1999. 2016. DGArtes. Simões. Soraia. Coordenação. Tiago Faden na fotografia. ''RAPromoção e publicações de conteúdos nos anos 1990''. Debate. Com: José Mariño, António Pires, Djoek Varela, Soraia Simões. Pedro Almeida, imagem.