[1] por Pedro Calasso
Nunca imaginei viver um momento como este.
Não desta maneira. Sempre achei que algo crítico aconteceria.
O clima morno, panos quentes e séculos de sujeira varrida pra de baixo do tapete, inevitavelmente seriam trazidos à tona como uma infecção que é expulsa de um organismo que não mais a suporta.
Pensei porém que essa luta seria travada de forma clássica, entre o povo e seus opressores, numa nítida luta de classes onde esses inúmeros brasis de matrizes indígenas, africanas, européias e orientais se uniriam e cobrariam dos menos de 10% da população que detêm a riqueza do país, o fim dessa exploração desmedida ao qual nos submetem há tanto tempo.
O Brasil tem mais de 300 nações indígenas, com línguas e culturas distintas, cerca de 400 ritmos afrobrasileiros, sendo que na África inteira existem por volta de 200. Tem a maior colônia japonesa fora do Japão, tem turcos, libaneses, sírios, portugueses, espanhóis, italianos e alemães entre outros povos e culturas, fazendo com que o povo brasileiro, tão bem descrito nas obras de Darci Ribeiro, seja o povo mais miscigenado e multicultural do planeta.
Na rua e nas massas todo povo é povo.
Somos generosos e donos de uma cultura intensa, plural e viva.
Mas na relação com o Brasil que manda, com o Brasil do poder e do capitalismo propriamente dito, provavelmente somos o país mais injusto do mundo.
O racismo nesse âmbito é cruel e mata.
O descaso, a ganância e a crueldade varrem nações indígenas inteiras do mapa.
O pobre, independente de sua cor ou descendência, representa uma ameaça ao estilo de vida da elite e precisa ser combatido.
Aqui, matar pobre, jovem, mulher, preto e homossexual é institucionalizado.
A fortuna e o conforto de dúzias de famílias sempre ditaram nossa sorte e exatamente contra isso e pela verdadeira libertação do pobre, do preto e do indígena, que ainda vivem sob o cabresto de seus senhores é que achei que lutaríamos juntos, como um só povo.
Mas na contramão à minha crença e usando de toda forma de artifícios, fomos rachados ao meio, numa manobra precisa da extrema direita aliada a um grupo de investidores, tornando possível à alguém como Bolsonaro chegar ao poder através do voto aberto.
Os problemas reais da economia brasileira, o sistema político e financeiro corruptos e o momento delicado da economia mundial foram usados de forma ardilosa por um grupo que representa os interesses de investidores multinacionais, que através a derrubada de Dilma Rousseff (PT) da presidência e a demonização da esquerda brasileira, chegaram ao poder.
Com a ajuda de um especialista de renome internacional em manipulação da opinião pública e de boa parte da “grande mídia brasileira”, plantou-se a ideia de que todos os problemas seculares de nossa nação foram criados ou aprimorados durante os anos do PT na presidência e que vivemos sob a ameaça de uma “ditadura comunista”.
Através de um investimento ilícito e milionário foi desenvolvida uma campanha sofisticada para disseminação de fake news banalizando movimentos populares, promovendo o ódio pela esquerda e o antipetismo que se multiplicou dentro de vários setores da sociedade.
Essa massa no geral é formada por pessoas inconformadas com os problemas no sistema público e a corrupção no país e que foram absorvidas por esse conceito de antipetismo, também por empresários que vêem nesse governo a possibilidade de enriquecimento, além de extremistas, fascistas e fundamentalistas religiosos, que se juntaram num coro quase insano de ódio e intolerância a favor do armamento da população, da diminuição da maioridade penal, da atribuição do poder de execução dado às polícias, da perseguição aos homossexuais, às religiões afro-brasileiras, às nações indígenas e mais uma série de conceitos nazi fascistas.
Meio a tudo isso acabamos polarizados, somos nós e eles, eles e nós e não estou falando dos extremistas ou empresários não, estou falando é do povão mesmo.
Fomos divididos para que eles pudessem conquistar o poder e nessa divisão é que mora o perigo.
Vivemos na iminência de uma guerra civil, um golpe militar e uma cooperação militar entre Bolsonaro e Trump para uma possível invasão na Venezuela.
O armamento pesado “doado” pelo governo norte americano chega aos montes.
Existe ainda o desejo de multinacionais de minerar em plena floresta amazônica e de se ampliar exponencialmente a área utilizada pelo agronegócio brasileiro e para isso será preciso derrubar todas as leis de proteção ambiental, o que está em curso com a “fusão” do Ministério do Meio Ambiente com o Ministério da Agricultura.
Que isso tudo vai dar em algum lugar terrível para o Brasil e o planeta já é certo.
Tendo a acreditar que disso tudo há de nascer algo bom, uma esquerda renovada, uma sociedade mais justa, novas manifestações e movimentos artísticos, pois como resposta à barbárie temos o costume de mostrar o nosso melhor.
O quanto isso irá nos custar?, é o X da questão.
[1] para citar esta opinião: *Calasso, Pedro «Uma Terra em Brasa», plataforma Mural Sonoro, em 1 de Novembro de 2018, https://www.muralsonoro.com/recepcao.
*Músico e compositor brasileiro
Fotografia de capa neste artigo: montagem de Pedro Calasso para Mural Sonoro.