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Recepção Musical 4

A ELEIÇÃO QUE NUNCA VAI TERMINAR PORQUE UM PAÍS ASSIM O QUER, por Wagner William

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A ELEIÇÃO QUE NUNCA VAI TERMINAR PORQUE UM PAÍS ASSIM O QUER, por Wagner William

[1] por Wagner William

Bolsonaro é fácil de entender.

Difícil é compreender o Brasil.

Descrever o que se passou no país nos últimos dez anos não é um exercício fácil. De 2008 para cá, viramos capa de revista em todo o planeta como exemplo de economia, pelo sucesso... e pelo fracasso. Sediamos uma Copa do Mundo em que a população reclamou muito mais do que vibrou, mas acabou orgulhosa de sua organização... e humilhada pelo 7 a 1. Realizamos até Jogos Olímpicos na cidade brasileira mais conhecida no exterior, pela beleza... e pela violência. Sentimos medo... de rolezinhos e de black blocs

Rolezinho? Black blocs? (Aqui atingimos um ponto de caos. Neste texto e na vida). Definitivamente, explicar rolezinhos – o encontro de jovens das regiões pobres nos elegantes centros comerciais até então (ah, que país) só frequentados por uma hermética classe média alta – e black blocs brasileiros – que surgem em tempos de liberdade e prosperidade econômica e desaparecem (ah, que país) em tempos de crise e repressão – ultrapassa o pretensioso objetivo deste texto. 

Nossa quimérica análise começa por 2008. Foi nesse ano – você deve se lembrar, amigo português – que um maremoto sacudiu a economia mundial. Uma crise que abalou os Estados Unidos, atravessou o Atlântico para atingir Portugal, devastar a Espanha e espalhar-se por toda a Europa. E o Brasil? Ah, aqui sempre é diferente. O presidente Lula, “o cara” conforme classificou Barack Obama, avisou: “vai ser uma marolinha”. E foi. Neste ano de sofrimento no planeta, os números do IBGE apontaram que no Brasil houve expansão em volume do Produto Interno Bruto (PIB) de 5,2% em relação ao ano anterior. É, parceiro, ninguém segurava esse país.

No início deste artigo, o autor já se rendia e garantia que explicar esses dez anos de Brasil não seria fácil. Assim, será necessário apelar e criar agora um brasileiro de ficção, mas tão real que seu nome não poderia ser outro. Vamos chamá-lo de João. Sua profissão não exige uma formação acadêmica. Pode ser um pedreiro ou mecânico. João, que sabia ler apenas palavras mais simples, vive com a esposa e três filhos na periferia de São Paulo, a maior cidade do país, mas sua moradia não possuía encanamento. A casa de banho era uma fossa aberta no quintal. Seu bairro não recebia cuidado do Estado. Não havia transporte, nem saneamento, e muito menos segurança.

Apesar disso, João gostava do presidente. Esse sim, repetia aos amigos, que concordavam com ele. João, homem honesto, não parava de trabalhar. Nunca tivera tanto serviço e juntara tanto dinheiro em sua vida. Decidira-se. Iria pagar do próprio bolso o encanamento e comprar material de construção para melhorar a vida da família. No dia combinado com a loja, o caminhão chegou. Os carregadores desceram e trouxeram a escolha de João. Uma moderna televisão com tela de 50 polegadas.

A casa de banho que esperasse. Afinal, João, que antes só prestava atenção em futebol, passou a ouvir e – até a entender – o seu presidente. Identificava-se com aquele homem. E Lula falava de economia. De um jeito fácil, explicava como as pessoas mais simples, como o João, poderiam agora comprar, comprar, comprar e até viajar de avião. E João acreditou. E assim seguiu. O que Lula pediu, João fez. Comprou tudo que pôde. Trabalhava de domingo a domingo. Um dia, chegou lá. Estava lá. Pela primeira vez, incluído. Não educacional ou socialmente, mas incluído pelo consumo. A onda surfada por Lula seguiu até os primeiros anos de Dilma Rousseff, a nova presidente para quem Lula pediu voto. João obedeceu. Afinal, agora sim, estava incluído. Não sabia, mas entrara para a Classe C, junto com seus amigos e milhões de brasileiros. Segundo o Instituto Data Popular, em 2013 a faixa 25% mais rica da população obtivera um crescimento real na renda de 12%; enquanto a faixa 25% mais pobre aumentara sua renda em 50%.

A inclusão pelo consumo. A lição de Lula. O aprendizado de João. Não só dele. A classe média que contratava os serviços de João foi ao paraíso. A Disney ficava na esquina. Uma vez, João, que conseguiu financiar uma passagem para visitar os parentes no Nordeste, encontrou seu patrão no aeroporto. João notou que isso causou um certo estranhamento, mas não se importou.

Contudo, no mesmo de 2013 em que João e seus vizinhos elevaram os rendimentos em 50%, uma série de protestos, a princípio contra o aumento da passagem de ônibus nas capitais, depois… contra a corrupção, depois… “contra tudo”, e depois… “contra tudo que estava aí”, marcou o fim do crescimento econômico. Surgiram os black blocs em verde-amarelo (aqueles que confundiriam os originais alemães ao protestar na hora errada e desaparecer na hora certa). Houve quem chamou de coincidência, mas não havia como negar. Os protestos marcaram o começo do fim do sonho brasileiro. Para mantermos o PIB como referência: em 2013, o crescimento foi de 2,3% em relação ao ano anterior. Em 2014, o número despencou para 0,1%.

João não soube desses números, mas os sentiu. Teve dificuldade para pagar o smartphone que comprara em dez prestações na livraria do centro comercial em que seu filho fazia rolezinho (com a crise, o número de rolezinhos diminuíra muito). Ao amigo português, uma outra explicação: as livrarias no Brasil vendem smartphones, videogames, notebooks e outros produtos com nome em Inglês. Vendem também livros, porém, refletindo o interesse da população e do estímulo que recebia de seu governo, cultura não era prioridade. Irritado e sentindo-se traído, João acompanhava as notícias sobre a corrupção na sua TV de 50 polegadas. Também assistia à programas populares de debates e entrevistas que, vira e mexe, convidavam um deputado que atacava o governo e defendia a ordem e o combate à corrupção.

E como esse deputado aparecia na televisão! João passou a gostar daquele homem. Ria de seu jeito exagerado e até, vá lá, concordava com algumas de suas ideias. Vibrava ao ouvir o deputado, um ex-militar, criticar a roubalheira do governo e dos deputados e defender uma radicalização na política de segurança. Os patrões de João, que agora o contratavam para serviços esporádicos, também reclamavam. João mesmo já havia sido assaltado duas vezes. O dinheiro que os ladrões levaram fez falta. Já não havia muita oferta de trabalho. Enfim, João percebera que estava de volta àquela linha que os economistas classificam de “da miséria” e por lá ficaria nos anos seguintes, informando-se pela TV (não mais a de 50 polegada, qe eu tivera de vender, mas uma outra bem menor) e confiando nas denúncias que recebia dos amigos pelo Whatsapp. Em uma livraria, nunca mais pisou.

Cada vez mais decepcionado, João ficou inconformado de vez quando sua TV lhe contou que Lula era dono de um sítio no Guarujá e de um tríplex em Atibaia. Ou algo assim, já que não entendeu direito, mas como a TV falava que aquilo era ruim, era melhor acreditar. Nem se abalou quando seu ex-ídolo foi preso. Porém, não se esquecia era daquele deputado, Jair Bolsonaro, cidadão honesto, correto, direito, religioso, um patriota defensor da moral, dos valores da família, dos bons costumes. João nunca entendeu porque algumas pessoas falavam tão mal daquele homem. Quando soube que ele seria candidato a presidente, decidiu-se na hora. Seu voto era dele.

A visão pueril e simplista apresentada até agora cobre apenas uma faceta do enorme e variado eleitorado de Bolsonaro, mas, acredite, baseia-se em uma pessoa real e foi escolhida porque nele se concentra a mais profunda mudança, não de ideologia, mas de sentimento. Isso aqui não é um país feliz. Há muito mais atrás dos votos de Bolsonaro. Está tudo lá, gritando nas urnas que o elegeram. Bolsonaro explica-se por ter vomitado tudo isso na cara do eleitor. Das mais racionais decisões ao pior do ser humano. 

Na escolha de quem rejeitava totalmente o PT a quem simplesmente defendia uma política de livre mercado sem interferência do Estado. 

De quem fez campanha por Lula contra os velhos donos do poder e sofreu ao descobrir que esses donos do poder estariam em seu governo.

De quem se desencantou ao perceber que seus antigos ídolos – dessa vez, aqueles que combatiam Lula - eram os primeiros a ter conta na Suíça. 

De quem não recebeu um estímulo de cultura e conhecimento a quem achava que estava informado ao ler seu Whatsapp. 

De quem estava cansado de ter medo de sair de casa e ser assaltado.

De quem até não queria Bolsonaro, mas via a presença de Lula em qualquer outro candidato. 

De quem adorava ver um juiz dando ordens (corretas ou não, pouco importa)… e como o brasileiro gosta de receber ordem…

De quem  pensava que políticas de inclusão social faziam mal a um país. 

De quem não sabia o que dizia, mas se dispunha a lutar pela própria ignorância.

De quem votou em Jânio Quadros e arrependeu-se. De quem aplaudiu o Golpe Militar e arrependeu-se. De quem votou em Fernando Color e arrependeu-se. De quem achou que a saída de Dilma iria consertar o país e arrependeu-se.

De quem - estava lá no Whatsapp - acreditava que o Brasil poderia ser dominado pelo Comunismo.

De quem até gostava de sua empregada doméstica (fenômeno social tão brasileiro), mas almoçar na mesma mesa com ela já era demais.

De quem cevava um sentimento de ódio a homossexuais, mas reprimiu sua opinião até encontrar naquele  candidato tudo que desejava.

De quem achava que a minha autoridade era ruim , mas a dele era ótima.

De quem ama arma de fogo.

De quem concordava que a ditadura militar matou muito pouco.

De quem sempre quis ser torturador.

De quem pedia a morte como solução.

Como toda tragédia brutal que se preza, Bolsonaro presidente é resultado de uma conjunção perfeita de uma série de inúmeros  desastres, tolerados costumes, adversidades, fatos concretos, azares e desgraças a que o brasileiro estava cegamente acostumado. 

[1] para citar esta opinião: **William, Wagner «A eleição que nunca vai terminar porque um país assim o quer», plataforma Mural Sonoro, em 3 de Novembro de 2018, https://www.muralsonoro.com/recepcao.

Fotografia de capa: Avenida Paulista, São Paulo no dia da eleição de Bolsonoro, nuvens assustadoras (Wagner William em São Paulo)

*Jornalista e Escritor, Prémio Vladimir Herzog de Jornalismo

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O ódio e suas tecnologias, por Susan de Oliveira

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O ódio e suas tecnologias, por Susan de Oliveira

[1] por Susan de Oliveira

A extrema-direita se impôs no Brasil pela primeira vez através do voto. Levou ao poder Jair Bolsonaro e para isso promoveu não só um fenômeno eleitoral mas uma profunda alteração cultural e política.

A maioria relativa que levou à eleição de Bolsonaro é adepta das ideias do ex-capitão mas se define como descrente nas suas ameaças e se diz, sobretudo, antipetista. Por sua vez, o antipetismo não se reduz ao bolsonarismo que se nutre do racismo e do machismo estruturais, da manipulação do fundamentalismo evangélico e de ideias nazifascistas latentes na sociedade sendo sua resultante a violência racial, de gênero, contra os pobres, a intolerância religiosa e ideológica generalizadas cultivadas sob o rótulo de anticomunismo.

O antipetismo é um fenômeno complexo de várias nuances que abarcam, por exemplo, tanto uma crítica à esquerda, partidária e acadêmica, como a repulsa racista das elites brancas e liberais às políticas de inclusão dos pobres e negros feitas no governo Lula. O vários tipos de antipetismo, no entanto, seguramente têm seu mais enfático pressuposto no discurso anticorrupção. O discurso contra a “corrupção do PT”, principal partido de centro-esquerda que governou o país por três mandatos consecutivos, dois de Lula e um de Dilma (o segundo dela foi interrompido por um golpe jurídico-parlamentar), se tornou um pressuposto amplamente aproveitado eleitoralmente mesmo sendo o PT apenas o 9º partido da lista em que figuram políticos envolvidos em processos e sendo os governos petistas os que mais produziram as condições técnicas e institucionais para o combate à corrupção. Praticamente todos os partidos de direita estão à frente do PT nesta lista.

A propaganda do combate à “corrupção do PT” foi implementada pela Operação Lava Jato, conduzida pelo Juiz Sérgio Moro que será o Ministro da Justiça do governo Bolsonaro, e se tornou famosa com a prisão do ex-presidente Lula que teve sua participação impedida no processo eleitoral o qual, é bom que se diga, ele venceria por larga margem de votos.  Desde então, este se tornou um conhecido processo de lawfare e o mais importante caso de prisão política no Brasil desde a ditadura militar em face da ausência de crime e de provas em sua sentença condenatória e finalmente com a sua exclusão do processo eleitoral.

O PT chegou como sobrevivente à disputa presidencial com Fernando Haddad, um substituto escolhido por Lula, que fez uma campanha de ascensão vertiginosa em pouco mais de 30 dias. Obteve um votação expressiva dentro de um quadro de poucos apoios e muitas fake news que deram um rumo absurdamente violento nos momentos decisivos da campanha eleitoral, tanto nas vésperas do encerramento da primeira volta como da segunda. Mentiras foram criadas e distribuídas em ritmo e proporção industrial para difamar e criminalizar Fernando Haddad de forma abjeta. Milhares de disparos das fake news em grupos no WhatsApp teriam sido pagos ilegalmente por empresários, conforme noticiou o Jornal Folha de São Paulo, no dia 19 de outubro, tendo como consequência o cancelamento pelo próprio WhatsApp de mais de cem mil contas de agentes ligados à tal distribuição.

A estratégia da difamação foi bem sucedida na eleição de Donald Trump e utilizada no Brasil por influência do seu idealizador, Steve Bannon, consultor de estratégia eleitoral da família Bolsonaro e do seu partido, PSL.

A reação moralista às mentiras escandalosas contra Haddad foi estimulada pelo fundamentalismo religioso em longos cultos nas igrejas e visava sobretudo atingir o eleitorado evangélico onde Bolsonaro tem seu principal apoio e cujo máximo expoente é o Bispo Edir Macedo, dono da IURD e da Rede Record, agora chamada de “Fox brasileira”.

O efeito moral das fake news direcionadas ao eleitorado evangélico, no entanto, foi detectado no dia seguinte às gigantescas manifestações do Movimento #EleNão (Mulheres contra Bolsonaro) convocadas por grupos no facebook e ocorridas no dia 29 de setembro. Uma expressiva vantagem numérica nas pesquisas de intenção de votos chamou a atenção para o que se produzia no submundo das redes sociais:  imagens manipuladas de outras manifestações que continham nudez e contestação religiosa foram associadas às manifestações. Tudo absolutamente inverídico para o evento realizado mas devastador para as pessoas mais humildes e conservadoras atingidas pelo dispositivo de manipulação psicológica criado pelos processos de seleção de público da Cambridge Analytica.

Naquele momento, portanto, se deu a irreversível assimilação de segmentos da centro-direita conservadora e das classes populares evangélicas à candidatura Bolsonaro mudando a correlação de forças na disputa eleitoral.

O bolsonarismo que trinfou eleitoralmente junto com Bolsonaro foi forjado pela reunião de fobias, desinformação, mentiras e manipulações vulgares e percebeu-se que o ódio e a violência foram ativados especialmente por questões morais suscitadas no ambiente das obscuras tecnologias de informação e pela manipulação de dados obtidos ilegalmente de perfis pessoais.

Isso se somou ao efeito dramático do atentado à faca sofrido por Bolsonaro ás vésperas do Dia da Independência, um feriado militar que evoca o outro elemento que potencializa a violência e canaliza os moralismos para a memória da ditadura e da “solução final” de todos os “inimigos” internos.

Um mês depois da facada que “humanizou” Bolsonaro, a primeira volta das eleições deu uma expressiva vantagem de votos a qual elevou ao grau máximo as tensões da campanha e deflagrou uma série de ataques, com cinco mortes, contra eleitores de Fernando Haddad e minorias. O primeiro a morrer foi Mestre Moa do Katendê, um artista popular negro, conhecido capoeirista e músico da Bahia. Ele recebeu doze facadas de um bolsonarista por ter declarado voto em Haddad.

A morte de Mestre Moa criou uma comoção nacional mas, ao contrário do que se poderia esperar, não serviu como advertência e estimulou que houvesse mais de oitenta casos de agressões e outras quatro mortes:  três de mulheres transexuais, Priscila, Laysa e Kharoline, assassinadas a facadas, culminando com a execução de outro jovem negro, no Ceará, Charlione Lessa Albuquerque, este com quatro tiros, às vésperas do término das eleições.

Os vencedores estão agora nas ruas prometendo implementar a nova ordem assim que forem liberados a posse e o porte de armas, movidos por ódio e um empenho moral de limpeza política, social e racial vasculhando os porões da escravidão e da ditadura militar reabilitando torturadores e genocidas à história, coisa que o próprio Bolsonaro já fez várias vezes e reiterou recentemente com suas ameaças de eliminação partidos, lideranças e ativistas de esquerda, como Marielle Franco, e dos movimentos sociais, como MST e MTST.

Não se sabe ao certo que medidas serão tomadas contra as liberdades civis e políticas das que foram anunciadas por Bolsonaro, mas restou o bolsonarismo que mesmo sem manifestar-se como uma ameaça real, criou a desconfiança de quem está ao nosso lado, o ódio entre conhecidos e familiares, a ruptura dos afetos e da comunicação, a demonização dos corpos e pensamentos que compõem o cenário de terror ao atravessar a rua.

Como conviver com o fascismo é o nosso desafio. Combinamos de não soltarmos as mãos de ninguém, de não nos deixarmos morrer, mas antes fosse a luta pela própria sobrevivência o que mais importa, embora tenhamos medo. Na verdade, enquanto o fascismo cresce entre nós, são negociados os projetos mais brutais do ultra-liberalismo que serão aprofundados para além do governo Temer e nos farão descer ao pré-sal da colonização com Bolsonaro aos pés de Trump e Netanyahu. E é disso que se trata:  o ódio bolsonarista forjado no antipetismo serve à ganância do sistema financeiro, à guerra e à predação mortal contra todos os seres vivos que levam um governante a ameaçar de extermínio o próprio povo: não haverá Amazônia, segundo o presidente eleito, “nem um centímetro para quilombola ou reserva indígena”. Nos resta atravessar a rua.

[1] para citar esta opinião: * Oliveira, Susan de, «O ódio e suas tecnologias», plataforma Mural Sonoro, em 2 de Novembro de 2018, https://www.muralsonoro.com/recepcao.

*Susan de oliveira, professora de literatura e pesquisadora brasileira (UFSC)

Fotografia de capa: Mestre Moa



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Uma Terra em Brasa, por Pedro Calasso

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Uma Terra em Brasa, por Pedro Calasso

[1] por Pedro Calasso


Nunca imaginei viver um momento como este.

Não desta maneira. Sempre achei que algo crítico aconteceria.

O clima morno, panos quentes e séculos de sujeira varrida pra de baixo do tapete, inevitavelmente seriam trazidos à tona como uma infecção que é expulsa de um organismo que não mais a suporta.

Pensei porém que essa luta seria travada de forma clássica, entre o povo e seus opressores, numa nítida luta de classes onde esses inúmeros brasis de matrizes indígenas, africanas, européias e orientais se uniriam e cobrariam dos menos de 10% da população que detêm a riqueza do país, o fim dessa exploração desmedida ao qual nos submetem há tanto tempo.

O Brasil tem mais de 300 nações indígenas, com línguas e culturas distintas, cerca de 400 ritmos afrobrasileiros, sendo que na África inteira existem por volta de 200. Tem a maior colônia japonesa fora do Japão, tem turcos, libaneses, sírios, portugueses, espanhóis, italianos e alemães entre outros povos e culturas, fazendo com que o povo brasileiro, tão bem descrito nas obras de Darci Ribeiro, seja o povo mais miscigenado e multicultural do planeta.

Na rua e nas massas todo povo é povo.

Somos generosos e donos de uma cultura intensa, plural e viva.

Mas na relação com o Brasil que manda, com o Brasil do poder e do capitalismo propriamente dito, provavelmente somos o país mais injusto do mundo.

O racismo nesse âmbito é cruel e mata.

O descaso, a ganância e a crueldade varrem nações indígenas inteiras do mapa.

O pobre, independente de sua cor ou descendência, representa uma ameaça ao estilo de vida da elite e precisa ser combatido.

Aqui, matar pobre, jovem, mulher, preto e homossexual é institucionalizado.

A fortuna e o conforto de dúzias de famílias sempre ditaram nossa sorte e exatamente contra isso e pela verdadeira libertação do pobre, do preto e do indígena, que ainda vivem sob o cabresto de seus senhores é que achei que lutaríamos juntos, como um só povo.

Mas na contramão à minha crença e usando de toda forma de artifícios, fomos rachados ao meio, numa manobra precisa da extrema direita aliada a um grupo de investidores, tornando possível à alguém como Bolsonaro chegar ao poder através do voto aberto.

Os problemas reais da economia brasileira, o sistema político e financeiro corruptos e o momento delicado da economia mundial foram usados de forma ardilosa por um grupo que representa os interesses de investidores multinacionais, que através a derrubada de Dilma Rousseff (PT) da presidência e a demonização da esquerda brasileira, chegaram ao poder.

Com a ajuda de um especialista de renome internacional em manipulação da opinião pública e de boa parte da “grande mídia brasileira”, plantou-se a ideia de que todos os problemas seculares de nossa nação foram criados ou aprimorados durante os anos do PT na presidência e que vivemos sob a ameaça de uma “ditadura comunista”.

Através de um investimento ilícito e milionário foi desenvolvida uma campanha sofisticada para disseminação de fake news banalizando movimentos populares, promovendo o ódio pela esquerda e o antipetismo que se multiplicou dentro de vários setores da sociedade.

Essa massa no geral é formada por pessoas inconformadas com os problemas no sistema público e a corrupção no país e que foram absorvidas por esse conceito de antipetismo, também por empresários que vêem nesse governo a possibilidade de enriquecimento, além de extremistas, fascistas e fundamentalistas religiosos, que se juntaram num coro quase insano de ódio e intolerância a favor do armamento da população, da diminuição da maioridade penal, da atribuição do poder de execução dado às polícias, da perseguição aos homossexuais, às religiões afro-brasileiras, às nações indígenas e mais uma série de conceitos nazi fascistas.

Meio a tudo isso acabamos polarizados, somos nós e eles, eles e nós e não estou falando dos extremistas ou empresários não, estou falando é do povão mesmo.

Fomos divididos para que eles pudessem conquistar o poder e nessa divisão é que mora o perigo.

Vivemos na iminência de uma guerra civil, um golpe militar e uma cooperação militar entre Bolsonaro e Trump para uma possível invasão na Venezuela.

O armamento pesado “doado” pelo governo norte americano chega aos montes.

Existe ainda o desejo de multinacionais de minerar em plena floresta amazônica e de se ampliar exponencialmente a área utilizada pelo agronegócio brasileiro e para isso será preciso derrubar todas as leis de proteção ambiental, o que está em curso com a “fusão” do Ministério do Meio Ambiente com o Ministério da Agricultura.

Que isso tudo vai dar em algum lugar terrível para o Brasil e o planeta já é certo.
Tendo a acreditar que disso tudo há de nascer algo bom, uma esquerda renovada, uma sociedade mais justa, novas manifestações e movimentos artísticos, pois como resposta à barbárie temos o costume de mostrar o nosso melhor.

O quanto isso irá nos custar?, é o X da questão.

[1] para citar esta opinião: *Calasso, Pedro «Uma Terra em Brasa», plataforma Mural Sonoro, em 1 de Novembro de 2018, https://www.muralsonoro.com/recepcao.

*Músico e compositor brasileiro

Fotografia de capa neste artigo: montagem de Pedro Calasso para Mural Sonoro.




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O que nos resta do regime militar, por Diego Pacheco

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O que nos resta do regime militar, por Diego Pacheco

[1] por Diego Pacheco

Já tarda de muito, o momento em que a Revolução se houvesse institucionalizado realmente, garantindo ao País a segurança de que, numa perspectiva de longos anos, tudo poderá ocorrer sem sucessivos retornos a medidas revolucionárias.

Gen. Golbery de Couto e Silva (Chefe da Casa Civil do governo Geisel, 1974)


O regime autoritário brasileiro distinguiu-se pela prolongada existência e preservação da capacidade de intervenção militar, com a presença no poder de um grupo dirigente voltado para a questão da institucionalização política, seja ao assumir a condução do Estado em 1964, seja ao comandar a lenta transição até à constituição de um governo civil em 1985.  

Assumindo a liderança do regime em 1974, o general Ernesto Geisel que em nenhum momento acenou com a possibilidade de eleições livres e diretas para a escolha do próximo presidente, tal como exigia a oposição democrática, deixou bem claro que os instrumentos de exceção permaneceriam "até que sejam superados pela imaginação criadora, capaz de instituir, quando for oportuno, salvaguardas eficazes dentro do contexto constitucional". O objetivo que se desenhava, assim, continuava a ser o da institucionalização de um regime que anunciava medidas liberais, mas as condicionava à consolidação do projeto autoritário.

A implementação das medidas liberalizantes iniciadas por seu governo estava condicionada à institucionalização de um tipo de regime autoritário com restrições democráticas, o que significa que no projeto de distensão/abertura, a retirada das Forças Armadas da direção do Estado implicava mais do que a sua substituição por um esquema civil de confiança baseado no partido do governo, de modo a preservar os interesses institucionais das corporações.

Como integrantes do aparelho de Estado, os militares deveriam continuar a exercer sua influência sobre as questões em discussão pelos atores do sistema político e da sociedade civil, a fim de garantir a institucionalização de um poder político voltado, sobretudo, para moderar a participação popular tanto na constituição de governos quanto na formação das suas decisões.

Se retirando das instituições de poder político no decorrer da década de 1980, os militares acompanharam a sucessões de governos civis iniciados por um membro da ARENA, José Sarney, seguido por uma intensa crise no novo sistema político brasileiro: o impedimento do primeiro presidente eleito Fernando Collor de Melo em 1992.

Com a estabilização da economia e a contenção do grave problema inflacionário, o sistema polítco brasileiro passou por um período da estabilidade e de ascenção das classes populares, gerando maior distribuição de renda, combate a fome e a miséria, problemas antigos brasileiros, agravados inclusive durante o período ditatorial na segunda metade do século XX.

Com a crise econômica no final da primeira década do século XXI a social democracia brasileira, no governo há mais de uma década, passou a ter dificuldades em manter sua política de atendimento das demandas populares e, ao mesmo tempo, manter as altas taxas de lucros do sistema financeiro e de setores empresariais que ainda sustentavam seus governos. Perdendo o apoio de parte da sociedade, o pacto socialdemocrata se rompe, inviabilizando o governo Dilma Rousseff por meio de um entrave legislativo e uma sistemática campanha mediática que cobrava ao governo por medidas liberais que estancasse o gasto público com programas sociais e de investimento em serviço público.

Assim como em outras partes do mundo, a campanha contra a socialdemocracia passou a relacionar os gastos públicos com a bandeira sempre útil da corrupção, chamando a atenção da sociedade civil para a relação promiscua entre empresas e o estado, onde empreiteiras se beneficiavam de contatos políticos para garantir licitações e aumentar ainda mais seus lucros em troca de apoio político e financeiro.

Com a crescente perda de credibilidade da socialdemocracia, com o profundo fisiologismo dos partidos de centro e com a debilidade política da democracia cristã, a resposta mais imediata da direita brasileira é em revisitar um passado mítico do regime militar. Isso só é possível graças ao projeto bem sucedido de institucionalização do regime, que, além de controlar todo o processo de anistia política, inclusive com a ideia de auto anistia, manteve instituições policiais e jurídicas criadas no periodo autoritário, chamados por muitos de entulhos autoritários.

Tais entulhos jamais foram retirados da sociedade brasileira. O elogio à tortura, a violência política e a ascensão da ultradireita brasileira só é possível devido ao sentimento romantizado acerca de um período que como sociedade nunca fomos capazes de encarar criticamente nas escolas. A discussão sobre Ditadura Militar nunca saiu efetivamente dos muros acadêmicos. O sucesso de sua institucionalização se deu sobretudo por meio de um pacto de silêncio dos mais diversos atores políticos que hoje se tornam vítimas de seus próprios contratos.

[1] para citar esta opinião: *Pacheco, Diego «O que nos resta do regime militar», plataforma Mural Sonoro, em 1 de Novembro de 2018, https://www.muralsonoro.com/recepcao.

*Professor, historiador, pesquisador brasileiro (UFSC)


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Brasil, começar de novo?, por Ivan Lins

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Brasil, começar de novo?, por Ivan Lins


[1] por Ivan Lins

Queridos amigos e queridas amigas em Portugal,

A verdadeira democracia brasileira, moldada na alegria, no pacifismo, na gentileza, na liberdade de expressão, na de gênero, na de religião, acaba de sofrer um baque, que se perpetuará por quatro anos no mínimo.

Avanços em algumas áreas estão prometidas? Mas, vários retrocessos também. O que, de uma certa maneira, segue o que vem acontecendo no mundo. A extrema direita vem se espalhando lentamente. Em minha opinião, muito por incompetência do centro e da esquerda. A esquerda que muitas vezes se abraçou à arrogância, à prepotência e à soberba.

Fala-se em corrupção. Esta existe de qualquer lado, ela naufragou todas as teorias ideológicas, dada a variada natureza humana, que não a levaram em conta. 

A busca do poder, com seus confortos financeiros, levou esses ‘‘espertos’’ a ‘‘lutas’’ que usaram da sedução e de corporações ricas, com seus interesses meramente oportunistas, especialmente o de serem bem sucedidos.

Demagogia, corrupção, má fé, incompetência e ineficiência, levaram o Brasil a uma situação econômica trágica. Desta situação trágica, emergiu o que muitos e muitas julgarão ser o "salvador da pátria", com um discurso duro, de temperamento incendiário, agressivo, reacionário.

Assumiu sua novidade com promessas sedutoras, de forma fanática, se oferecendo como antídoto seguro contra o desastre das administrações anteriores, explorando a imensa e cega raiva e ódio de grande parte da população. Anestesiou raciocínios e o bom senso, explorando a imensa ignorância aflorada no país. Momento certo, no lugar certo, infelizmente. Ajudando a eleger outros novos, que sabemos aqui, dotados de competência e honestidade duvidosa. Tudo em nome da ‘‘renovação politica’’, e ‘‘afastamento de antigas’’, e, convenhamos, também duvidosas, lideranças políticas. 

Gostaríamos de que, ao menos, o menos pior se revelasse. Temos muitas dúvidas quanto a isso. A verdadeira democracia está ameaçada.

O bom é que a oposição popular é bastante grande também. O que pode obrigar ao ‘‘messias de tacape’’ a ter que optar por medidas menos levianas.

O Congresso, agora dividido, não será tão puxa-saco, como foi o da maldita ditadura anterior, de tão triste lembrança? Quando os militares, além da violência, fizeram vista grossa para a imensa corrupção, que já vicejava naquela época?

Tempos bem complicados, neste meu Brasil querido, estão chegando.

Mas jamais derrubarão, no sentimento dos verdadeiros democratas, a eterna esperança pelo sol brilhante a prevalecer sobre as trevas.

[1] para citar esta opinião: Lins, Ivan «Brasil, começar de novo?», plataforma Mural Sonoro, em 29 de Outubro de 2018, https://www.muralsonoro.com/recepcao.

*Músico e Compositor brasileiro

Sugestões de escuta:

1) Sarah Vaughan que também gravou músicas, como esta, de Ivan Lins. «Começar de Novo» foi uma das canções de Ivan Lins e Vitor Martins censuradas no período da ditadura militar brasileira. 

2) Ivan Lins, História Oral, Mural Sonoro, entrevista a Soraia Simões em 2013 aqui

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Romi Anauel em discurso directo

Romi Anauel em discurso directo

Romi Anauel, nasceu em Angola em 1972 e veio para Portugal aos dois anos de idade. Foi a voz feminina escolhida do grupo Terrakota. Agora vive em Barcelona e tem um disco novo (Phoenix) a sair no final do mês de Junho do ano presente.

(Soraia Simões) E pertences a uma tribo, não é assim Romi? Há, memórias que tendem a perdurar, lembras como foi quando vieste para Portugal?

 

(Romi Anauel) Nasci em Angola e pertenco a uma tribo que são os massai, mas que em Angola tem outro nome. Em Angola chamam-se Kuanhamas e é uma tribo que vem do Nilo.

Vim para Portugal, quando tinha dois anos, por causa da guerra. Os meus pais quiseram fugir para Portugal.

Desde muito nova, 12/13 anos, que gosto de  ouvir muita música. Os meus pais acabaram por achar que me deviam meter numa escola de música.

Recordas o que ouvias em miúda?

Sim, recordo. Primeiro a que me era imposto pelos media. Pela rádio e televisão sobretudo.

 Em casa ouvíamos muita música angolana. A minha mãe era uma interessada e apaixonada por música feita em Portugal, como o fado, ou as músicas mais tradicionais.

Nessa altura, não era o que eu mais gostava. Mas, fui crescendo e a música e abertura começam a entrar no meu universo.

Tinha sonhos de olhos abertos. Era e continuo a ser uma grande sonhadora.

Aos doze anos, via-me já num palco, fazendo grandes concertos, com grandes encenações.

E os teus pais tinham mesmo de te meter numa escola de música…

Sim (risos)

Ouvias alguns músicos do teu país, porque os teus pais ouviam em casa. E começaste, nessa abertura maior, à medida que te foste apercebendo dessa ‘riqueza’, a escutar para ti mesma, sem imposição, alguns deles? Houve, ainda hoje há, nomes de forte popularidade entre nós. N’gola ritmos, Ruy Mingas, Eduardo Nascimento, Bonga…

Sem dúvida. Teta Lando, Bonga, Duo Ouro Negro, Quim zé, Ruy Mingas. Sim sim.

E desde cedo me chamaram à atenção vozes como as de Caetano veloso, no Brasil, da Maria João, em Portugal,  coisas que as crianças não entendem muito bem. Mas, que não sabendo explicar porque gostava, ouvia e gostava bastante. Num plano internacional, adorava e adoro o Prince.

Mas, sabes que, ainda hoje penso que quem me envolveu com  isto, com o que faço hoje em dia, foram simplesmente as minhas projecções mentais em criança (com uns 12, 13 anos). Posso provar que isso funciona.

As tuas projecções, são os teus sonhos em criança?

Sim. De certeza! Nem imaginas como sonhava. Via-me a cantar e a dançar.

Tive algumas aulas de noção musical,  mas que não acrescentaram ao nível do que já era nato em mim.

A música surgiu muito naturalmente. Fiz o 12º e fui para Lisboa com 18 anos.

Comecei, em Lisboa,  a trabalhar em Hotelaria e com o tempo fui conhecendo pessoas.

Fiz dança, formei-me em teatro, onde também criei, com um conjunto de outras pessoas, uma companhia. Era a companhia multi-étnica do Tiago Justino.

E depois tiveste o teu primeiro grupo musical.

Logo a seguir, sim. Com umas amigas fizemos a primeira ‘bandinha’ à capela. Eramos quatro.

E em paralelo ao que considerava, na altura, ser um ‘brincar de bandinha com amigas’, formei-me em Biodança e ainda formei uma banda de covers. Mas, tocámos muito pouco aqui, pois não gostava muito de repetir músicas, não me sentia confortável a fazer versões de canções que não eram originais.

Entretanto, quis formar um grupo só com vozes femininas, todas de origem africana. Eramos sete, mas senti que não houve muita vontade de trabalhar.

E começa a tua aventura com o grupo Terrakota.

Exacto. Um grande amigo, que considero um ‘artista completo’, formou uma banda só para me fazer feliz, pois reparou que eu tinha muita vontade de cantar e ter uma banda.

E depois o Francesco Valente, que já havia pertencido a quase todos os meus pequenos projectos, acabou também por me chamar para  iniciar em Terrakota. O grupo estava mesmo no seu início e  procuravam uma voz.

E levas, levam na verdade todos, performances incomuns para os vossos espectáculos ao vivo…

Sim. O teatro e a dança foram fundamentais, para o meu desenvolvimento como artista e performer. Foram uma grande base. Deram-me uma grande noção do que é estar em palco.

E o que se seguiu?

Com Terrakota estive desde o início. E foi onde me senti livre de criar, na medida em que é um projecto muito aberto a todos os elementos, mas por outro lado, era muito difícil, já que todos tinhamos personalidades muito fortes. Isso sentiu-se nos primeiros álbuns. O exagero das influências que cada um tinha.

E eu era um, dos poucos elementos, que vinha de uma atmosfera que não o hardrock. Um estilo que nunca consegui entender.

O ‘exagero das influências’ era/é evidente em Terrakota, mas se calhar foram ‘pioneiros’ nisso, nessa convivialidade cultural, não? Ou tem que existir uma certa harmonia de grupo e ali deixaste de o sentir? 

Sim, sem dúvida. O exagero também era muito espontâneo e marcou muito esta banda.Mas, nos últimos álbuns, todos fizeram um esforço para aprimorar, conter e ordenar um pouco mais a nossa musicalidade.

Mas, fomos, sem dúvida,  pioneiros nesse assalto à fusão de culturas, que representa no fundo um pouco de cada um de nós, de cada ser na natureza.

Já nada é totalmente puro, como sabemos, mas  uma fusão de conhecimentos, crenças hábitos.

Atenta-se, no teu percurso, esse ‘modo de pensar’, os teus rochedos referenciais também.

Também o considero, sim. As minhas influências, baseiam-se muito no soul, no funk, bem como toda a música de raíz/tradicional. Adoro. A música popular brasileira, a bossa nova, o afro-beattambém.

Sente-se, nestes últimos temas que trabalhaste, um apreço pelo ‘universo do povo de Fela Kuti’. Dos ‘yoruba’ e do ‘highlife’. Nos ritmos específicos  que procuras, sobretudo. É a tua ‘arma de arremesso’, o teu lado de ‘manifesto social’, numa realidade diferente daquela em que assentava a mensagem do povo da Rep da Kalakuta, para a música? 

Sim.Adoro highlife, é um bom sinal que o sintas neste tema que escutámos.

Fela kuti é um grande exemplo. Para mim, a música tem também que ser usada como uma mensagem, que lhe esteja associada. É onde poderei dar meu contributo a esta sociedade.

Sinto que a nossa sociedade, nos está espremendo cada vez mais. Quase não nos podemos expressar como cidadãos de um modo natural. Não vou usar a música para ‘decorar’. Tento que sirva de passagem para um plano mais consciente. Não  que  ache que consiga mudar efectivamente, mas sinto que posso ser um grão dentro do cosmos a incendiar outros grãos que incendiarão outros. É uma forma de protesto. Como ser humano que vive num estado ‘in-natural’ do que se poderia chamar ser humano.

É assaz curioso entender, que preservas a reunião cultural abrangente que já se via e escutava em Terrakota com os outros integrantes de algum modo,  através dos instrumentos que entram agora no teu novo repertório.

Sim. Eu adoro os intrumentos de raíz.  O ’ violino africano’, a ‘kora’, o ‘tama’ (ou ‘talking drum’), o ‘ferro’ e a ‘gaita’ de Cabo Verde, o ‘violino da música balcanica’, a ‘guitarra portuguesa’. Adoro Carlos paredes. Mas, gosto muito de outros, como a ‘guitarra flamenca’, ‘o alaude’,  o ‘Sitar’, o ‘violino ethiope’, que é dos que mais me encanta.

E estás em Barcelona agora. Quiseste sair de Portugal?

A minha vinda para Barcelona, teve que ver com isso mesmo. No início, queria simplesmente sair de Portugal. Meti isto na cabeça. Sentia que precisava experienciar outras coisas, respirar outros ares. E aqui reencontrei- me com o Alberto Perez, que é um músico que tinha conhecido anos antes. Tinhamos comentado, na altura, que poderiamos fazer algo juntos para o meu projecto a solo. Contactei-o, e mesmo no dia a seguir começamos a trabalhar.

Em princípio queria muito criar uma banda mais calma, onde se ouvisse a minha voz com calma e profundidade. Tenho até dois fados meus! Mas, rapidamente, durante uma conversa percebemos que não fazia muito sentido. Já que tinha deixado Terrakota, o que deveria criar era um estilo mais ‘contemporâneo’ mesmo que com as raízes africanas.

Foram surgindo os temas. Baseamo-nos nas influências tradicionais africanas e  demos-lhe um ‘toque mais sofisticado’. O dialecto que ouves nessa música, por exemplo, é o kimbundo e um trecho deyoruba.

Temos outro tema ‘dub’, que me chama a atenção. Canto para soldados. A  banda que me acompanha aqui chama-se ‘Soldiers of Rá’ e o nome do tema também. soldiers of rá dont give yourself to this un-natural man, a letra está baseada no discurso do Charlie Chaplin, no seu famoso filme, O Grande Ditador. É um tema de que gosto muito.Faz-me ‘pele de galinha’.Chamo a esse tema a ponte entre os dois mundos.

E criaste aí já uns conhecimentos que te ajudam no desenvolvimento do teu trabalho…

Sim (risos). No início apresentei a Alberto Perez e Raul Del Moral (que juntamente comigo formamos a  base deste projecto) 4 /5 temas meus, os quais já tinha começado a trabalhar.

O Alberto e o Raul são muito criativos. Complementámo-nos muito bem.

Eles são muito exigentes comigo.Tenho aprendido muitas coisas com eles, coisas que me irão fazer crescer concerteza a nível musical.

A minha prestação neste projecto, tem uma função completamente diferente, com uma nova abordagem na vocalização. Bem diferente do que eu tinha desenvolvido com Terrakota.

As letras são todas minhas. As músicas são nossas. Trabalhámos conjuntamente em cada uma delas.Os dois também cantam, para além de tocarem, são os meus back vocals.

Ah, e o Alberto, que vem do flamenco, canta noutro tema que se chama ‘Ojo Por Ojo’. Digo-te mesmo:Wow, como canta este rapaz!

Há também outro tema de que gosto muito. Chama-se ‘Let the money goes’, no qual há uma passagem dedicada ao ser mulher. Que é aqui vista, além do papel social, que também tem, como a chave de toda a criação. Como uma espécie de ‘deusa co-criadora’, ligada às esferas mais elevadas da criaçao, sempre sunstentada pelo amor.

Tens o álbum já pronto, com dez faixas. Consegues explicá-lo um pouco.

Este disco sairá completo no final de Junho.Está quase pronto.

Entretanto, vão estar disponíveis algumas músicas, para escutar muito em breve. Na web.

É, como dizes, um álbum que tem 10 temas e que viaja por géneros diversos. Do ‘deep funky’ aos sons, que referias, do ‘highlife’, passando pelo ‘dub’.

É muito ‘jazzístico’ também. Não aponto apenas para o ‘afrobeat’, porque não quero ser pretensiosa. É que acho o ‘afrobeat’  bastante especifico e nós, de facto, viajamos por outras atmosferas musicais.

Usamos outros elementos no disco também, como sopros, percussões.

Saxofone, Trombone, Trompete, nos sopros, cajon do flamenco, tímbilas e batás de Cuba, nas percussões, mas também bateria, baixo, guitarra e teclas.

© Romi Anauel em conversa com Soraia Simões, Perspectivas e Reflexões no campo

crédito foto: Isa Egea

para citar esta entrevista: Entrevista de Soraia Simões a Romi Ananuel, Plataforma Mural Sonoro em 17 de Maio de 2012.

''Lusofonia''? Não é o desígnio mas o que se faz com o desígnio, breve opinião

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''Lusofonia''? Não é o desígnio mas o que se faz com o desígnio, breve opinião

por Soraia Simões de Andrade [1]

Não é o desígnio, mas o que se faz com o desígnio

O paradigma de uma comunidade lusófona activou ao longo dos anos o decurso de uma construção e representação de «identidade», que ainda hoje carrega algumas retóricas que procuram legitimar uma argumentação condizente com aquilo que se tenciona evidenciar.

Tempo e espaço assumiram notável expressividade enquanto directrizes discursivas acerca das ideias de «lusofonia» ou de «comunidade lusófona».

Mesmo que tentemos fugir a essa associação, o tempo/memória pode apoiar ou condicionar a maioria da argumentação que tende a legitimar uma patente «historicidade» no enfoque lusófono. 

Há uns dias numa conversa (gravada para o meu trabalho) com um músico cabo-verdiano ele atentava, à sua maneira, sobre esta inscrição discursiva sugerida por uma memória historicista em tempos de colonização entre Portugal e as outrora colónias. O certo é que me revejo na sua forma de pensar o assunto.

Há nos discursos culturais e académicos uma retórica cada vez mais comum. Apoiados por um «lado positivo» dessa memória ou desse tempo evidenciam ideias de «miscigenação cultural», «multiculturalismo» e «pluralidade» que beneficiam a abertura no campo artístico em particular. Ora, os discursos que celebram as ideias de «lusofonia» ou  de «comunidade lusófona» estão, em larga medida, ancorados no tempo, que por sua vez consente um conjunto de ideias  fundido nas mudanças operadas na actualidade (de cruzamento e partilha de experiências) que lhe imprimem, ao mesmo tempo, conotações de ruptura com a representação imperialista do passado.

Porém, creio ser na segunda directriz – o espaço –, que uma parte do discurso contemporâneo culturalista e/ou académico pós-colonial ou pós-independência mais se materializou e foi ganhando corpo/presença social.


As referências geográficas e culturais da comunidade a que se pretende aludir tem em conta uma relação comum e transversal a vários destes discursos – tanto por referência à língua, como meio de partilha, como à referência de uma história comum. As definições de uma aparente unidade tendo em conta a dispersão territorial e continental dos vários espaços que preenchem a geografia da chamada «comunidade lusófona», as suas especificidades culturais, sociais, linguísticas, políticas, anula-se  pela construção da directriz espacial, a partir da qual se imagina a ideia de uma «comunidade lusófona com uma língua semelhante».

A retórica que tem realçado um imaginário de pertença (s) e identidade (s) próprias fica afinal carregada por discursos que resgatam «uma história semelhante» e «uma língua partilhada». Ora, tudo isto tem contribuido para justificar mitos de acessibilidade a uma linha de entendimento (im) posta por um «ideal lusófono» pouco plural ou, se preferirmos, «inclusiva».

Estudar e abordar práticas musicas e/ou culturais distintas tem de permitir evidentemente que várias expressões e linguagens culturais, de quadrantes e contextos diversos, se conheçam relacionando-se, mas isso não se consegue, parece-me, anulando-as por via de uma convivência (quase) unilateral em espaços comuns. Tampouco reforçando ideias e verbalizações tributárias acerca daquilo que constitui a memória histórica e colonial afundadas numa realidade imperialista que se deveria ultrapassar.  A começar pelo discurso.

Não podemos esquecer que a representação discursiva e literária desta ideia de comunidade reproduz os mesmos circuitos efectuados pelos espaços que enformavam a geografia imperial portuguesa.

[1]Republicado no Jornal do Algarve e portal Buala.

*Nota: Fotografia de Capa de registos efectuados em Angola* entre 1968/1970 por Daniel Gouveia cedidos para trabalhos desenvolvidos no Mural Sonoro acerca de experiências musicais e culturais transatlânticas.

*Mangando, concelho de Marimba, distrito de Angola, 1 de Junho de 1969.

 

 

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