CICLO: CONVERSA AO CORRER DAS MÚSICAS. 4º CONVIDADO — FRED MARTINS

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CICLO: CONVERSA AO CORRER DAS MÚSICAS. 4º CONVIDADO — FRED MARTINS

INFO MUSEU DA MÚSICA

Quinta-feira, 22 de Janeiro, às 21:30

  • Estação do Metropolitano Alto dos Moinhos - Rua João de Freitas Branco, 1500-359 Lisboa

O Ciclo «Conversa ao Correr das Músicas» da Associação Mural Sonoro em parceria com o Museu da Música regressou ao Museu na noite de dia 22 de Janeiro com um novo convidado, o músico e compositor brasileiro Fred Martins.

 

Fred Martins nasceu no Rio de Janeiro, mas vive actualmente em Santiago de Compostela. O seu trabalho foi grandemente influenciado pela música popular brasileira, o samba e a bossa nova. Transcreveu, para os conhecidos Songbooks de Almir Chediak, partituras de compositores como Chico Buarque, Noel Rosa, Tom Jobim, Caetano Veloso e Gilberto Gil. 
Compôs para nomes como Renato Braz, Ney Matogrosso, Maria Rita e Zélia Duncan.
Prepara-se para lançar o seu próximo álbum a solo, que reflecte os seus 20 anos de carreira e que apresentou de igual modo ao longo desta conversa.

Mais uma vez, além das canções interpretadas, falou-se, atravessando o percurso do convidado, dos temas, versões e noções musicais que se escondem por trás de alguma da obra musical.



A mediação da conversa musicada esteve como habitualmente a cargo da investigadora Soraia Simões. 

O Ciclo "Conversas ao Correr das Músicas" originará uma colecção de vídeos documentais realizados pela Associação Mural Sonoro.

Poster da Sessão da Autoria de José Félix

Ciclo «Conversa ao Correr das Músicas» 4ª Sessão. Gravação: 22/01/2015
Parceria Associação Mural Sonoro/Museu da Música
Condução: Soraia Simões 
Convidado: Fred Martins
Imagem: Carlos Gomes 
Cameras: Carlos Gomes e Marta Reis



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Carlos Bica (músico e compositor)

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Carlos Bica (músico e compositor)

96ª Recolha de Entrevista

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Carlos Bica nasceu em Lisboa no ano de 1958. É um dos músicos e compositores mais reconhecidos no contexto europeu.

Conta nesta recolha de entrevista maior, da qual se disponibiliza uma parte online,  que se estreou em estúdio com o fadista Carlos do Carmo, acompanhou durante cerca de nove anos a intérprete Maria João, e iniciou posteriormente um percurso a solo como músico e compositor. 

A relação com a música clássica, a Academia dos Amadores de Música em Lisboa, os palcos, a cidade de Berlim, o estúdio de gravação, outras áreas como a dança ou o teatro são alguns dos aspectos aflorados nesta conversa.

Carlos Bica alcançou uma projecção assinalável  na Europa. Tocou em vários países, da Ásia à Europa, nos mais importantes festivais de jazz na Europa e Ásia. Apesar de se ter radicado em Berlim no ano de 1994 apresenta-se com regularidade  em Portugal em diversos espectáculos.


Além da  Academia dos Amadores de Música em Lisboa, passou pelo  Conservatório Nacional de Lisboa e numa fase inicial, apenas durante dois meses, pelo Hot Clube. Durante os estudos foi membro da Orquestra de Câmara de Lisboa, representando Portugal em vários festivais internacionais. Em 1982 prosseguiu os estudos na Hochschule für Musik em Würzburg.


Dos anos em que trabalhou com a intérprete Maria João,  resultaram os fonogramas «Conversa» e «Sol». Além de Carlos do Carmo, trabalhou e trabalha com  Camané,  José Mário Branco, Pedro Caldeira Cabral ou Janita Salomé, entre outros, reforçando a ideia patente ao longo deste registo de que além de não se ver como um ''típico contrabaixista'' não se sente confinado a um só domínio musical, tendo sido «o contrabaixo que o escolheu» e não o contrário.

Com Frank Möbus (guitarrista) e Jim Black (baterista) fundou o trio Azul. Trio com o qual editou cinco fonogramas e realizou inúmeros concertos internacionais.

No ano de 1998, no âmbito da Expo 98 na cidade de  Lisboa, apresentaria o projecto «Diz», com a actriz e cantora Ana Brandão, juntando neste projecto diversas linguagens sonoro-musicais.

Carlos Bica também tocou no trio de João Paulo Esteves de Silva  e em Trio Essence com Gebhard Ullmann e Sylvie Courvoisier.

O seu espectáculo de contrabaixo a solo, de 2005, foi publicado no álbum «Single».

Integra o grupo «Tango Toy» de Paul Brody, colaborou com Sven Klammer e Kalle Kalima, e também com Kristiina Tuomi.

Músicos como Ray Anderson, Kenny Wheeler, Aki Takase, Paolo Fresu, Julian Argüelles, Steve Argüelles, Lee Konitz, Mário Laginha, Matthias Schubert, Markus Stockhausen, António Pinho Vargas, Alexander von Schlippenbach entre outros, fazem também parte do leque de músicos com os quais colaborou. 

O álbum Azul com Frank Möbus, foi eleito em 1996 "Album de Jazz do Ano", em Portugal pelo programa de rádio «Cinco Minutos de Jazz».

No seu legado fonográfico contam-se, entre outros, os seguintes trabalhos discográficos: 

Maria João Quintet - "Conversa" (1986)
Cal Viva - "Cal Viva" (1989)
Maria João & Cal Viva - "Sol" (1991)
Carlos Bica & AZUL - "AZUL" feat. Ray Anderson and Maria João (1996)
João Paulo/Carlos Bica/Peter Epstein - "O exílio" (1998)
Carlos Bica & AZUL - "Twist" (1999)
João Paulo/Carlos Bica/Peter Epstein - "Almas" (2000)
Paul Brody's Tango Toy - "Klezmer Stories" (2000)
Carlos Bica & Ana Brandão - "DIZ" (2001)
Gebhard Ullman/Jens Thomas feat. Carlos Bica - "Essencia" (2001)
Paul Brody's Tango Toy - "The South Klezmer Suite" (2003)
Carlos Bica & AZUL - "Look What They've Done To My Song" (2003)
Tuomi - "Tightrope Walker" (2005)
Sven Klammer - "Nevs" (2005)
Carlos Bica - "Single" (solo album) (2005)
Carlos Bica & AZUL - "Believer" (2006)
Bica-Klammer-Kalima - "A Chama do Sol" (2006)
Tuomi - "The Expense of Spirit" (2007)
Carlos Bica - "Matéria-Prima" (2010)
Carlos Bica & AZUL - "Things About" (2011)

 

2015 Carlos Bica à conversa com Soraia Simões, Perspectivas e Reflexões no Campo


Som, Pesquisa, Entrevista realizada em Janeiro de 2015, Texto, Edição: Soraia Simões
Fotografias: Helena Silva

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José Manuel Neto (Guitarrista/compositor, Guitarra portuguesa)

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José Manuel Neto (Guitarrista/compositor, Guitarra portuguesa)

 

95ª Recolha de Entrevista

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BI: José Manuel Neto nasceu em Lisboa no ano de 1972. É um dos mais conceituados e solicitados guitarristas da sua geração no domínio do Fado.

Conta nesta conversa, da qual se disponibiliza como é hábito uma parte no nosso acervo online, que começou a tocar guitarra portuguesa com apenas 15 anos, a acompanhar o repertório da mãe, a fadista Deolinda Maria. Hoje é dos guitarristas que mais se destaca no acompanhamento de fadistas, em espectáculos e gravações de discos.

Neste registo José Manuel Neto explica em que medida as suas referências, primeiro José Inácio e  Carvalhinho, posteriormente José Nunes, Jaime Santos e José Fontes Rocha foram determinantes no seu processo de aprendizagem e no desenvolvimento do seu estilo próprio, de algumas particularidades que o seu percurso na década de 1990, ao profissionalizar-se, assume quando passa a lidar com o estúdio de gravação, com outros músicos, de outros domínios musicais com quem também colabora, da maturação que o seu caminho como intérprete foi sofrendo positivamente devido a esse ambiente, assim como da importância que atribui à construção das guitarras que usa, em espectáculos maiores ou em estúdio de gravação, mencionando alguns construtores, como o que agora é o seu construtor, Óscar Cardoso (também gravado em entrevista para este Arquivo e Documentação), etc. 

O intérprete fez parte dos elencos de Casas de Fado como a Viela, o Sr. Vinho, a Taverna do Embuçado ou o Faia, expressando também a relevância que esse caminhar próximo daquilo que são os espaços característicos do universo do fado seriam importantes no seu percurso.

Apesar de reclamar até si o seu crescimento de um modo totalmente autodidacta, e uma passagem por uma Banda Filarmónica nos primeiros tempos, José Manuel Neto integra hoje uma geração de instrumentistas no Fado com uma formação musical vasta e isso deve-se também ao facto de ter tocado com o mais variado leque de músicos, dentro e fora do Fado.

No ano de 1992, José Manuel Neto gravou o seu primeiro fonograma, «Tears of Lisbon» (Lágrimas de Lisboa), gravado por Huelgas Ensemble e o maestro Paul Van Nevel, com os fadistas Beatriz da Conceição e António Rocha, que lhe abriria caminho para gravar com um considerável número de fadistas, como: Argentina Santos (“Argentina Santos”, 2003), António Zambujo (“O Mesmo Fado”, 2002; “Outro Sentido”, 2007), Camané (“Esta coisa da Alma”, 2000; “Pelo Dia Dentro”, 2001; “Como sempre Como Dantes”, 2003, com edição em CD e DVD; “Sempre de Mim”, 2008); Carlos do Carmo (“Ao vivo no Coliseu dos Recreios: 40 anos de Carreira”, 2004; “Fado Maestro”, 2008, ''Fado é Amor'' 2014), Ana Moura (“Aconteceu”, 2004), Pedro Moutinho (“Encontro”, 2006 e “Um Copo de Sol”, 2009), entre outros.

Do número crescente de digressões tanto em território nacional como internacional, o guitarrista tem passado por diversos espectáculos ao lado de fadistas como Carlos do Carmo, Camané, Ana Moura, Aldina Duarte, Cristina Branco, Mariza ou Mísia. 

No ano de 2009 apresentou no Cinema São Jorge um espectáculo de título “O Som da Saudade”, onde interpretou melodias que compôs ao longo dos anos.

Em 2004 a Casa da Imprensa entregou-lhe o “Prémio Francisco Carvalhinho”, atribuído ao melhor instrumentista, durante o espectáculo da Grande Noite do Fado desse ano, e no ano de 2008 a Fundação Amália Rodrigues distinguiu-o com o “Prémio Melhor Instrumentista”, reconhecendo-o como um dos nomes de referência na interpretação da Guitarra Portuguesa na actualidade.

© 2014 José Manuel Neto à conversa com Soraia Simões, Perspectivas e Reflexões no Campo

Som, Edição, Pesquisa, Texto: Soraia Simões

Fotografias com José Manuel Neto: Maria Joana Figueiredo

Fotografias guitarra de José Manuel Neto em oficina de Óscar Cardoso: Soraia Simões

Recolha realizada no Museu do Fado

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Marta Pereira da Costa (intérprete de guitarra portuguesa, compositora)

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Marta Pereira da Costa (intérprete de guitarra portuguesa, compositora)

94ª Recolha de Entrevista

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 Marta Pereira da Costa nasceu em Lisboa no ano de 1982 é uma intérprete de guitarra portuguesa e compositora. Embora o número de mulheres que tocam guitarra quer de Coimbra como de Lisboa tenha crescido nos últimos anos (sobretudo na cidade de Coimbra, em Lisboa e no arquipélago dos Açores) Marta foi a primeira a profissionalizar-se com este instrumento no domínio do Fado, a seguir a Luísa Amaro que fixaria o seu nome ligado à guitarra especialmente como solista, a primeira que vive exclusivamente da música no universo do Fado, tendo como instrumento a guitarra.

Nesta recolha de entrevista maior, da qual se disponibiliza como habitualmente uma parte no nosso acervo online, a intérprete explica, entre outros assuntos, o papel influenciador do pai para a aprendizagem e desenvolvimento na exploração e execução deste instrumento, mas igualmente os papéis determinantes que tiveram primeiramente os guitarristas Carlos Gonçalves e Mário Pacheco e posteriormente vários guitarristas, com linhas distintas na execução da guitarra, com quem se foi cruzando e absorvendo ensinamentos como: Fontes Rocha, Ricardo Rocha, António Parreira, Pedro Caldeira Cabral ou, fortemente influenciada pela «sonoridade de Carlos Paredes» --- uma das suas grandes referências --, as idas a Coimbra onde aprendeu com Paulo Jorge (Jójó), conhecido professor de Guitarra de Coimbra sobretudo na Associação Académica desta cidade, a intérprete explica ainda a experiência profícua que tem tido como acompanhante no universo do fado, muito embora seja como solista que imagina fazer um percurso. 

Marta estudou inicialmente piano e estuda actualmente na Escola Superior de Música, a experiência da gravação sonora em estúdio, que inicia em 2008 na gravação de um fonograma  do fadista Rodrigo Costa Félix, intensificar-se-ia e a sua profissionalização efectiva, no ano de 2012, ano em que deixa a Engenharia para se dedicar exclusivamente à guitarra permitiram-na alargar um número crescente de interesses e de trabalhos no âmbito da Música Popular e no domínio do Fado em particular. Além de fazer parte do elenco da Casa de Fados «Adega dos Fadistas» em Alfama, tem participado em diversos espectáculos quer como acompanhante de Fado quer como solista.

 

2014 Marta Pereira da Costa à conversa com Soraia Simões, Perspectivas e Reflexões no Campo

Pesquisa, Texto, Som, Edição: Soraia Simões

Fotografias: Helena Silva

 

 

 

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António Parreira (Guitarrista, Compositor, Professor de Guitarra Museu do Fado)

António Parreira (Guitarrista, Compositor, Professor de Guitarra Museu do Fado)

93ª Recolha de Entrevista

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BI: António Parreira nasceu no ano de 1944 em Monte das Taipas, concelho de Grândola. É um dos guitarristas mais consolidados no Fado e professor no Museu do Fado. Pai de dois guitarristas, a quem passou, cumprindo os desígnios de transmissão oral a que estão associadas as práticas musicais no domínio da cultura tradicional, o gosto pelo instrumento e pelo Fado: Paulo Parreira e Ricardo Parreira. Ambos guitarristas profissionais.

Conta nesta recolha como desperta o interesse pela prática deste instrumento musical. Primeiramente influenciado pelo tio, tinha apenas 11 anos de idade, através do único tema que o mesmo tocava com regularidade,"Fado Corrido no 5º ponto", que António consegue identificar mais tarde como o do tom 'Sol Maior', a partir do qual aprende as outras tonalidades, explica ainda o modo como a rádio, sobretudo os programas da Emissora Nacional e a forma de tocar de José Nunes, o influenciaram igualmente e como se inicia muito jovem, ainda no Alentejo e de modo amadorístico, tocando nas chamadas “tascas” situadas nas várias aldeias vizinhas. Reflecte ainda sobre outras referências, como o guitarrista Alcino Frazão e o fadista Manuel de Almeida (falecido em 3 de Dezembro de 1995), que António Parreira acompanhou, em espectáculos e gravações, durante os seus últimos 19 anos de vida, sem esquecer nesta conversa o modo como se relaciona com os seus actuais alunos, uma vez que desde 2001 integra o corpo docente da Escola de Guitarra do Museu do Fado em Alfama, bem como o papel da mulher na execução da guitarra portuguesa e de outros domínios musicais, fora do universo do Fado, nos quais a guitarra está presente.

Cedo começa a receber convites para tocar. Primeiro acompanhado por violistas da região, dos quais destaca Luís Duarte, Joaquim do Moinho da Cruz e Carlos Carvalho, depois, aos 14/15 anos, na Tasca do Faúlha de que era  proprietário Jorge Chaínho, pai de António Chaínho, ambos guitarristas. Inicia-se na viola, acompanhando o guitarrista em pequenas actuações por mais de 3 anos, especialmente pelo facto de  António Chaínho não ter à altura, para António Parreira, um violista para o acompanhar e verem em António Parreira «uma pessoa com jeito para tocar a viola de fado». 

No ano de 1965, já recuperado de uma doença renal que o obrigou a distanciar-se da prática regular ao vivo deste instrumento entre os 17 e os 19 anos, António Parreira ingressa no serviço militar e posteriormente segue-se  uma permanência em Moçambique. É neste período que reacende o seu gosto, estudo e dedicação exclusivos à guitarra portuguesa. Actuou em diversos espectáculos, com destaque para os que tiveram lugar no Malawi, ex Rodésia, África do Sul, Angola e Moçambique, sempre acompanhado pelo violista Francisco Gonçalves, seu camarada da tropa e parceiro de música, desde essa fase, ao longo de cerca de 33 anos (1965-1998) como reforça na conversa.

A profissionalização efectiva como guitarrista dar-se-ia no momento em que Augusto Damásio, um amante da guitarra portuguesa, apresenta António Parreira ao proprietário da casa de fado Guitarra da Madragoa. Estreou-se como guitarrista profissional em 9 de Maio de 1969.

Nos anos de 1970 o guitarrista integraria o elenco do restaurante típico Guitarra de Alfama, ao que se seguem a Taverna d´ El Rei, Fragata Real, Abril em Portugal, Parreirinha de Alfama, Luso, Arreda e Forte Dom Rodrigo, estes últimos situados na zona de Cascais, e na época propriedade do fadista Rodrigo. É a acompanhar Rodrigo à guitarra que António Parreira se desloca  quer em espectáculos nacionais como  internacionais, com destaque para as apresentações na Rádio Televisão Espanhola, no programa "Festival" da TV Globo, “Festival das Nações” em Joanesburgo e em actuação durante três semanas no Casino de Monte Carlo.

Em 1973 edita o seu primeiro fonograma a solo, "Guitarras de Portugal", acompanhado à viola pelo companheiro de longa data Francisco Gonçalves. Deste registo destaca-se o arranjo musical de temas como “Milho Verde” e “Variações sobre o Fado Lopes”. 

Entre 1976-1980 António Parreira complementa a sua aprendizagem e frequenta aulas particulares com o Prof. alemão Zieg Fried Zugg, aprendendo a ler e a escrever música.

António Parreira acompanharia, além de Alfredo Marceneiro, o fadista António Mourão em espectáculos no Japão, Austrália, Macau, Nova Zelândia, toda a Europa ocidental, Estados Unidos da América, Canadá, Venezuela, Colômbia, Brasil, Argentina, Uruguai, países de África, nomeadamente a África do Sul entre outros países.

Em 1977 acompanha Amália Rodrigues que actuou durante duas semanas no Hotel Melia Castilla. Em 1978 surge um novo convite, desta vez para uma actuação com a fadista na cidade de Paris.


Actuou no espectáculo que teve lugar no “Festival da Cruz Vermelha”, em Nova Iorque, e que contou com a presença do então Presidente dos Estados Unidos da América Jimmy Carter. Ao lado de Rão Kyão no “Festival das Nações” na Coreia do Norte.


Entre os vários trabalhos fonográficos em que participou, António Parreira destaca recorrentemente em entrevistas "Saudade", com a intérprete japonesa Saki Kubota, e que contou com as presenças dos músicos António Chaínho, Martinho D`Assunção e Pedro Nóbrega.


No ano de 1989 gravaria com  Amália Rodrigues um espectáculo para a televisão espanhola, inserido num programa apresentado por Sara Montiel. Neste período colaborou frequentemente com a cantora Tonicha. Em 1992 actuaria a solo, durante cerca de três semanas, no Hotel Oton Palace (Rio de Janeiro). 



Em 1999 inicia uma recolha de 120 fados clássicos, com transcrição pelo Maestro Jorge Machado, "Notas de Música", para a edição da Ediclube “Um Século de Fado”. No ano de 2014 foi  publicado O Livro dos Fados – 180 Fados Tradicionais em Partituras, da sua autoria.

Resultado de anos de estudo e dedicação, esta obra, editada pelo Museu do Fado, reúne 180 fados tradicionais seleccionados e transcritos para partitura por si.  O musicólogo Rui Vieira Nery refere no prefácio: O Livro dos Fados, que agora nos oferece, leva ainda mais longe o contributo de António Parreira para o nosso conhecimento alargado do repertório fadista. (..) Fadistas e guitarristas, investigadores e estudiosos, profissionais e amadores poderão encontrar aqui um repositório cuidadosamente seleccionado daquilo a que poderíamos chamar “O Grande Cancioneiro do Fado”. (…) Era um trabalho essencial que estava por fazer e que não podia ter ficado confiado a melhores mãos.

Compôs variadíssimas músicas para Fados, entre as quais, "Recado'', "Fado Marina", "Ribeira Nova", "Versos do Povo", "RR Mexilhão", "Fado Inês", "Gotas de Tristeza", "Isto de ser Poeta", "Contos e Contas", "Senhor Marquês de Pombal", "Ser Português", "Zé Guitarrista", ''Violeta do Chiado"  ou Para Não ver a Realidade". 


No ano de 2007 no Teatro de S. Luiz, Mestre Parreira foi distinguido pela Casa da Imprensa com o “Prémio Carreira”. 


A 22 de Outubro de 2008 recebeu a Medalha de “Mérito Municipal” entregue pelo Concelho de Grândola.

Som, Pesquisa, Texto: Soraia Simões

Fotografias: Helena Silva

Recolha efectuada em Museu do Fado

Tema executado e captado em tempo real: «Balada ao Monte das Taipas» 

 Ivan Lins: um “ator móvel” na MPB dos anos 1970 por Thaís Nicodemo

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Ivan Lins: um “ator móvel” na MPB dos anos 1970 por Thaís Nicodemo

por Thaís Nicodemo*



Resumo: O tema central do presente artigo é a produção do compositor Ivan Lins entre os anos 1970 e o início dos anos 1980. Ao longo desse período sua trajetória passou por significativas transformações, que trazem à tona contradições e conflitos, demarcando a atuação de um artista em busca de seu espaço, mediado pelas relações de mercado. Nos discos de Ivan Lins lançados nesse período, é possível notar uma frequente mudança de estilos musicais e do conteúdo poético das letras, que revelam a maneira como se ajustou à dinâmica da indústria cultural, assim como às transformações nos planos político, ideológico e econômico, durante a década de 1970, no Brasil.

Palavras-chave: MPB; anos 1970; Ivan Lins.

Abstract: The main subject of this paper is the production of songwriter Ivan Lins from the 1970s to the beginning of the 1980s. Throughout this period his career underwent significant changes, which bring about contradictions and conflicts, showing an artist’s search for his own ground, a process mediated by market relations. In his albums from this period, one notes a frequent shift in musical style and in the poetic contents of the lyrics, which reveal the way by which he adapted himself to the dynamics of cultural industry, as well as the political, ideological and economical transformations that took place in Brazil in the 1970s.

Keywords: Brazilian Popular Music (MPB); 1970s; Ivan Lins.

 

Primeira metade dos anos 1970 e a identidade “internacional-popular”

Ivan Lins despontou como compositor no início dos anos 1970, como integrante do Movimento Artístico Universitário – MAU, um grupo de compositores, do qual faziam parte Gonzaguinha, César Costa Filho, Lucinha Lins, Aldir Blanc, Rui Maurity, dentre outros. Com uma produção musical heterogênea, o grupo buscou chamar a atenção do público universitário e da mídia, inserindo-se em festivais da canção, promovidos por redes televisivas (SCOVILLE: 2008, p. 31). Os integrantes do MAU se sobressaíram no V Festival Internacional da Canção (FIC) da rede Globo, em 1970, com a classificação de três canções (17), dentre os quais Ivan Lins se destacou como segundo colocado, com a canção “O Amor é o Meu País”, executada no estilo soul. A boa repercussão dos compositores do MAU no V FIC levou a rede Globo a criar um programa musical, chamado Som Livre Exportação, conduzido pelos integrantes do grupo. É importante ressaltar que, nesse momento, iniciava-se no Brasil o período denominado “milagre brasileiro”.

Ao mesmo tempo que as estratégias do governo conduziram a um significativo desenvolvimento econômico que alavancou o consumo da classe média, o Brasil vivia uma fase de severa repressão, principalmente após o decreto do AI-5, em dezembro de 1968. Com a censura, a perseguição e o exílio de diversos artistas, o panorama cultural passou por uma fase de esvaziamento. Nesse contexto repressivo, que se somava à crescente racionalização do funcionamento da televisão, o ciclo dos festivais da canção, que viveu seu apogeu nos anos 1960, também entrava em declínio. Para Marcos Napolitano, a favorável inserção do MAU nos festivais televisivos e no mercado fonográfico reflete a forma como a indústria cultural buscou suprir o espaço retraído da MPB, direcionando sua produção ao meio universitário (18)  (NAPOLITANO, 2002, p. 6). Esse aspecto pode ser reforçado com a afirmação do compositor Paulinho Tapajós, diretor e produtor do selo Forma, da gravadora Philips, entre 1969 e 1970. Em entrevista (19), Tapajós explica que esse selo foi criado por André Midani, presidente da Philips no Brasil, especificamente para atender ao segmento da música universitária que despontava naquele período através dos festivais universitários da canção.

Ivan Lins foi um dos artistas lançados pelo selo Forma, com a gravação de um compacto simples (20), um compacto duplo (21) e três LPs. Se por um lado Ivan Lins se identificava com o segmento de renovação da MPB, através de sua participação no MAU, por outro, sua música apontava para uma direção distinta. Tratava-se de uma produção não-engajada, que se distanciava do sentimento de “brasilidade” e da tradição “nacional-popular” predominantes na MPB consagrada nos anos 1960. A produção de Lins se distinguia pelo uso de estilos internacionais, como o rock, o pop, o gospel e o soul, e por letras de conteúdo romântico.

Embora o influxo de culturas diversas na música seja um aspecto demasiadamente comum, o que chama atenção aqui é sua contraposição em relação ao predomínio de valores ligados à identidade “nacional-popular” naquele momento, na esfera da música popular brasileira, da qual Ivan Lins passou a fazer parte. Para fundamentar tal discussão, tomamos como base o conceito formulado por Renato Ortiz de identidade “internacional-popular”, antagônico à identidade “nacional-popular”, que fora hegemônica no plano ideológico da canção brasileira, até fins dos anos 1960.  É importante salientar que o mercado consumidor da “MPB” de então era representado principalmente pela juventude de classe média escolarizada (NAPOLITANO: 2002, p. 3). aponta Marcos Napolitano: “(...) podemos vislumbrar no início dos anos 70 o fechamento de um processo cultural iniciado ainda nos anos 20, marcado pela necessidade de buscar a identidade nacional brasileira e para o qual concorreu de forma significante a esfera musical popular” (NAPOLITANO, 2005, p. 75). Com o processo de internacionalização do capital promovido pelo governo militar desde o golpe em 1964, marcado por um amplo investimento na área de comunicações, a indústria cultural no Brasil se consolidou durante os anos 1970, passando a se ajustar aos padrões organizacionais e mercadológicos internacionais (ORTIZ, 2006, p. 205). A partir da reconfiguração do mercado de bens simbólicos, o espaço cultural da MPB “engajada”, norteada pela ideologia “nacional-popular”, teve seus valores redefinidos. Nesse sentido, o advento da Tropicália, a partir de 1967, já assinalava o momento de crise do ideal “nacional-popular” na MPB que, conforme Marcos Napolitano, “se via cada vez mais absorvida pela indústria cultural e isolada do contato direto com as massas, após o golpe em 1964” (NAPOLITANO, 2006, p. 64). A Tropicália apresentou uma ruptura, criticando o posicionamento “nacionalista” da esquerda, incorporando elementos da cultura de massa, com o uso de guitarras elétricas, do rock, do pop e do psicodelismo. Nos anos 1970, valores identitários “mundializados” se tornaram um novo elemento de legitimação na esfera da cultura, conforme assinala Ortiz:  A tradição e as artes não se configuram como padrões mundiais de legitimidade. Mas o que os substitui? Quero argumentar que a modernidademundo traz com ela esses valores. Por serem globais, independentes das histórias peculiares a cada lugar, pela sua amplitude, abarcam o planeta como um todo, e por expressarem um movimento sócio-econômico que atravessa as nações e os povos, os novos padrões de legitimidade superam os anteriores (ORTIZ, 2003, p. 191-2).


É importante ressaltar que nesse novo quadro cultural que se configura, as escolhas identitárias se relacionam diretamente aos interesses e possibilidades que se articulam segundo a lógica do mercado moderno (NETTO, 2009, p. 164-5). Nesse sentido, buscaremos verificar como Ivan Lins se apropriou de diferentes discursos identitários em tempos de mundialização da cultura, ao longo de sua trajetória nos anos 1970, de acordo com os contextos em que atuava. Dentro dessa perspectiva, o programa Som Livre Exportação, da Rede Globo, expunha novos nomes da música popular brasileira e artistas consagrados, buscando explorar diversos segmentos do mercado, funcionando como uma “vitrine” para as gravadoras e ampliando, dessa forma, a faixa de consumo para a indústria fonográfica. A Rede Globo possuía também um acordo com a Philips para a produção das trilhas das telenovelas que eram apresentadas e promovidas no programa (SCOVILLE, 2008, p. 122-9). Na matéria sobre a estreia do Som Livre Exportação, da revista Veja, o programa é exaltado por sua capacidade de aliar características de programas musicais consagrados nos anos 1960, reunindo as tradições das “raízes nacionais”, da época do “Bossaudade”, a “moderna música brasileira”, do “Fino da Bossa”, o som “jovem e descontraído”, da Jovem Guarda, e “a nova tendência de adaptar ao Brasil os sons internacionais, principalmente o soul americano” (TEMPLO..., 1970, p. 76). A ênfase dada à “nova fase” da música brasileira, que adapta “ao Brasil os sons internacionais”, reforça a ideia de que, nesse contexto, elementos mundializados passaram a fazer parte dos critérios de legitimação na esfera da canção popular. Ou seja, a escolha das atrações do programa também se relacionava ao caráter “internacionalizado” que elas apresentavam. Em 1971, Ivan Lins lançou seu primeiro LP, Agora, essencialmente de canções ligadas ao soul. Alcançou grande êxito comercial (22), principalmente após o sucesso de “O Amor é o Meu País” no V FIC, e de “Madalena” (Ivan Lins/ Ronaldo Monteiro de Souza), gravada por Elis Regina, no compacto duplo Elis Regina (Philips, 1970) e depois no disco Ela (CBD/ Philips, 1971). Ivan Lins estreitou seu vínculo com a televisão, à frente do Som Livre Exportação, e passou a produzir canções para telenovelas da Rede Globo, como “A Próxima Atração” (1970-1971) e “Assim na Terra como no Céu” (1970-1971). Na tentativa de explorar comercialmente o MAU através do Som Livre Exportação, a Rede Globo optou por voltar sua atenção para a figura de Ivan Lins, que melhor se equiparava com os padrões de produção da emissora, como observa Eduardo Scoville, em sua tese de doutorado sobre a relação da Rede Globo com a MPB, na primeira metade dos anos 1970: “Ivan Lins, que não produzia música engajada, se tornou o elemento do grupo mais “acessível” ao grande público e produtor de músicas que iriam ser incluídas nas telenovelas” (SOVILLE, 2008, p. 121). A produção de Ivan Lins parecia então não se restringir somente ao público universitário, abrangendo um público consumidor mais amplo. Assim, nesse período a atuação de Lins esteve intimamente atrelada à Rede Globo. Ao longo da exibição do programa, Lins assumiu papel de protagonista, passando a ser o apresentador, ao lado de Elis Regina. Em 1971, deixou o MAU e, após o curto período de intensa exposição na TV Globo, decidiu romper o contrato com a emissora. Pouco tempo depois o programa Som Livre Exportação foi extinto. As escolhas de Ivan Lins durante esse período garantiram seu sucesso mercadológico, porém, sua atuação foi amplamente criticada, pelo conteúdo descompromissado de suas composições e, principalmente, a partir da polêmica gerada em torno da canção “O Amor é o Meu País”.

O crescimento econômico que se deu durante o período, conhecido como “milagre brasileiro”, e a vitória da seleção na Copa do Mundo em 1970 contribuíram para disseminar a ideia de progresso e otimismo, promovida pelo governo Médici. Nesse contexto surgiram slogans ufanistas como “ninguém segura este país”, “Brasil, ame-o ou deixe-o”, e canções que exaltavam o país (NAPOLITANO, 2006, p. 78), como “Eu te amo, meu Brasil” (Dom). A letra de “O Amor é o Meu País” (23), escrita por Ronaldo Monteiro de Souza, é de conteúdo amoroso, no entanto, o uso da palavra “país” deu margens a interpretações que a relacionaram à exaltação de cunho adesista. Vale salientar que, mesmo se articulando em um contexto mercadológico em crescente segmentação, que buscava abranger a diversidade de gosto do público consumidor, no qual conviviam diversos estilos, como a MPB, o rock e o pop, Ivan Lins surgiu com a marca de “compositor universitário”, através de sua participação no MAU. Sendo assim, é possível pensar que havia uma expectativa do público universitário, principal consumidor de MPB “engajada”, em relação a uma postura crítica em sua produção. Sob esse ponto de vista, a cobrança que recaiu sobre a produção do artista adquire maior sentido. É possível verificar esse aspecto em entrevista ao jornal O Pasquim (LINS, 1972), na qual Lins foi severamente criticado por cantar “O Amor É o Meu País” (idem, p. 12), por dar preferência à temática amorosa em suas canções e por seu vínculo com a Rede Globo nos anos anteriores. A partir dessas críticas e da queda de popularidade, que se nota com o acentuado declínio de vendas de seus LPs (24), chamamos a atenção para visíveis mudanças que ocorreram entre cada disco lançado nos primeiros anos da década de 1970. Em seus três primeiros discos: Agora (1971), Deixa o Trem Seguir (1971) e Quem Sou Eu? (1972), prevalecem canções relacionadas aos estilos pop, rock, soul, com harmonias jazzísticas e letras românticas. Enquanto o álbum Agora não apresenta praticamente nenhum elemento musical ligado à “brasilidade”, com exceção de “Madalena” (Ivan Lins/ Ronaldo Monteiro de Souza), que pode ser considerada um samba-funk, no disco Deixa o Trem Seguir há um maior uso de materiais brasileiros, como o ritmo de samba empregado nas canções “Que Pena Que Eu Tenho de Você”, “Me Deixa em Paz”, “Carro Abandonado”, e o ritmo de baião em “Oba” – todas escritas em parceria com Ronaldo M. de Souza. No disco subsequente, Quem Sou Eu?, Lins muda levemente sua maneira de cantar, antes gritada e rouca, adotando interpretações vocais mais brandas.

Os arranjos, de Arthur Verocai, nos discos anteriores, densos, com uma maior massa sonora resultante do uso de instrumentos de metais, madeiras e cordas, passaram a ser bem mais econômicos. Há uma inserção muito maior de elementos “brasileiros” no repertório, que se divide em canções bossa-novistas, sambas e canções pop. É um disco mais intimista, com mais elementos “nacionais” e mesmo que não apresente um conteúdo politizado, sinaliza a nova produção engajada que irá se estabelecer a partir dos discos seguintes, Modo Livre (RCA, 1974) e Chama Acesa (RCA, 1975). 

 


Segunda metade dos anos 1970 e o “nacional-popular”

Como vimos, o sucesso comercial de Lins não correspondia, até certo ponto, à sua legitimação no espaço cultural da MPB. Sua atuação, no início dos anos 1970, pautada em sua relação com a Rede Globo e no súbito sucesso comercial decorrente desse momento, não era “bem vista” pela crítica intelectualizada. Para alcançar o prestígio necessário para se legitimar nesse campo, Ivan Lins teve que redirecionar sua carreira através de escolhas estéticas que se evidenciam tanto nas mudanças musicais, com a incorporação de elementos ligados à “brasilidade”, quanto nas escolhas profissionais, rompendo o contrato com a Rede Globo e com a gravadora Philips. Paulinho Tapajós, produtor dos álbuns mencionados, acrescenta informações relevantes em relação aos resultados comerciais desfavoráveis do disco Quem Sou Eu?, que demarcou musicalmente o início das mudanças estéticas mais significativas das composições de Ivan Lins até então:
No Quem Sou Eu? ele promoveu a mudança, mas ao mesmo tempo foi uma virada que não foi muito bem aceita pelo comercial (...) Eu acho que o pessoal estava acostumado a aquele Ivan gritando e de repente vem um Ivan mansinho, comportado na interpretação. Aí eu acho que a coisa não deu muito certo comercialmente (...). (25) As novas escolhas de Ivan Lins naquele momento não garantiram seu êxito perante o público consumidor, como denota o texto acima, e ainda não foram suficientes para agradar à crítica, que condenava sua postura “alienada”, como é possível notar no trecho a seguir, através da fala do produtor musical Mariozinho Rocha, onde fica visível a tensão latente entre o posicionamento de Ivan Lins e a opinião da crítica, em entrevista ao Pasquim (LINS, 1972, p. 12): “Vocês só fazem letra de amor? (...) têm outras coisas que acontecem, além do amor, em qualquer classe social. Por que vocês focalizam esse lado mais fácil, mais meloso? (...) Você fala de amor, digamos, por uma menina, não por um ser humano”. A consolidação da indústria cultural e de uma produção cada vez mais voltada para o entretenimento levava a esquerda nacionalista a se preocupar com o resguardo do caráter engajado das obras, através da cobrança ideológica em torno das produções, que deviam ser “anti-imperialistas, nacionalistas, exortativas e aliancistas” (Cf. NAPOLITANO, 2006, p. 6). Esse debate se evidencia em relação à música de Ivan Lins e gera um questionamento do próprio artista, no sentido de assumir um posicionamento politizado, como é possível perceber em seu discurso sobre a mudança que promoveu em sua trajetória após reconhecer a falta de engajamento, o desgaste decorrente de sua superexposição midiática e a queda de popularidade:
Aí veio o tombo. Durante todo o tempo, a máquina foi me usando, usando, gastando. E eu deixando (...). Quando abandonei a Globo, ainda tentei fazer outras tevês, mas já estava traumatizado e profissionalmente valendo pouco. Resolvi me afastar para tentar entender por que tudo aquilo tinha acontecido comigo. (...) E, passando a transar áreas mais engajadas, política e musicalmente, ao mesmo tempo em que queimava a pestana devorando livros e mais livros, comecei a entender o processo político brasileiro e até meu papel nisso tudo (LINS: 1981, p. 8-9. Grifos nossos).


Nessa fala, Ivan Lins atribui a responsabilidade de sua postura “alienada” à “máquina”, à Rede Globo, posicionando-se como sujeito passivo, “inconsciente” em relação à sua própria produção. Em seguida, toma posição como sujeito ativo, consciente de suas escolhas, dessa vez comprometidas com questões sociais e políticas. Nota-se, portanto, como o artista se justifica estrategicamente, procurando legitimar suas escolhas. Na nova fase politizada, que se inicia com o lançamento de Modo Livre, em 1974, é possível perceber que para efetivar a nova imagem de artista engajado, Ivan Lins passa a renegar em seu discurso sua produção anterior, questionando a qualidade de suas composições, a falta de “liberdade artística” a que estava submetido e o propósito comercial das canções. O artista enfatiza a retomada de suas “origens” musicais: “bossa nova, samba, música brasileira em geral”, ou seja, chama atenção para a inserção de elementos brasileiros em suas composições, em um (28) discurso de auto-legitimação. 


Eu, quando não era ainda profissional, (...) os caminhos que eu seguia, eram caminhos livres, tudo calcado na bossa nova, samba, entende, música brasileira em geral, jazz. E nesse disco, eu realmente volto às minhas origens (...). Porque houve uma época aí na minha carreira que realmente eu não conseguia compor direito e tinha compromissos com um monte de coisas, então meu processo de composição inclusive era um processo já muito difícil (...). Então eu comecei a compor exatamente aquilo que eu queria, da forma como eu sentia (...). (LINS: 2008, 39’18’’ – 41’42’’). (26) Ainda que não tenha obtido sucesso comercial favorável, para a época (27), houve uma reação positiva da crítica especializada em relação à nova produção de Lins, como é possível notar na matéria jornalística referente à sua participação no Festival Abertura, da Rede Globo, em 1975:    
Não só o fato de pelo menos três músicas defendidas serem de compositores que já gravaram discos em 1974, mas também o sentido de brasilidade presente na maioria das dez concorrentes fizeram com que as esperanças em torno desta oportuna mostra da MPB nesta metade da década crescessem muito em torno de uma nova fase para o nosso cancioneiro (...) (MILLARCH, 1975. Grifos nossos).


Vale salientar também a importância dada no texto acima ao “sentido de brasilidade” nas canções apresentadas no festival. A “brasilidade”, como marca distintiva do imaginário de uma cultura, ganhou forças a partir dos anos 1930, no Brasil, através do debate político e intelectual de construção da nação (RIDENTI, 2010, p. 9). O que Marcelo Ridenti chama de “brasilidade revolucionária” se traduz como uma construção utópica, ligada a “ideias, partidos, movimentos de esquerda – e presente também de modo expressivo em obras e movimentos artísticos” (RIDENTI, 2010, p. 10). Nos anos 1960, ganhou novo sentido, principalmente durante o governo de João Goulart, pela possibilidade de realização de uma revolução social e repercutiu nos meios artístico e intelectual, que compartilhavam sentimentos e ideias ligados a uma revolução brasileira (RIDENTI, 2010, p. 12). O ideário “nacional-popular” que prevaleceu na canção brasileira desde os anos 1960 é imbuído dessa “brasilidade revolucionária”. No momento em que Ivan Lins redirecionou sua produção, com os discos Modo Livre e Chama Acesa, iniciava-se no Brasil, ainda que lentamente, o processo de abertura política, inaugurado pelo governo Geisel, a partir de 1974. A perspectiva da abertura favoreceu a criação e a difusão das canções de “protesto” e contribuiu para conduzir a um amplo crescimento do consumo de canção brasileira, a partir de 1975 (NAPOLITANO, 2002, p. 5). Para Napolitano, a abertura fez transparecer uma significativa demanda que estava antes contida em relação ao consumo da MPB, que se configurou como uma “peça central da indústria fonográfica” (NAPOLITANO, 2002, p. 9). A MPB combinava atributos socioculturais relacionados à posição política crítica, liberdade de expressão, liberdade de criação, a um potencial mercadológico para a indústria cultural (NAPOLITANO, 2002, p. 9). Mesmo que Ivan Lins não tenha alcançado sucesso comercial considerável com os discos mencionados, essa nova fase politizada sinaliza sua legitimação artística no campo da MPB. Seus discos posteriores do final dos anos 1970 irão efetivar as mudanças ligadas a seu prestígio como compositor engajado, ao mesmo tempo em que a venda de seus LPs mostrará resultados muito elevados. Esses fatores sublinham a relação entre o papel contestador da MPB e sua importância comercial no mercado fonográfico. No disco Modo Livre, a maior parte das parcerias das canções ainda é com Ronaldo Monteiro de Souza. Ivan Lins se afasta do estilo soul e incorpora gêneros nacionais, como o samba e a bossa nova, ao lado de estilos regionais, como a ciranda e a marcha. Assim como nos três álbuns anteriores, os arranjos são de Arthur Verocai. Há uma alta densidade sonora decorrente da instrumentação utilizada, com orquestra de cordas, coros vocais, instrumentos de sopro e seção rítmica. O teor politizado que começa a se delinear nesse álbum, principalmente com a canção “Abre Alas”, ganha intensidade e um tom de “denúncia” no álbum Chama Acesa. Já nesse disco, a parceria com o letrista Vitor Martins se solidifica, com o total de cinco canções. Há apenas duas composições escritas com Ronaldo Monteiro de Souza, além de escrever canções de sua autoria. Embora ainda prevaleçam ritmos brasileiros, os arranjos apresentam um caráter mais experimental e híbrido, que se aproxima da linguagem musical ligada à produção de Milton Nascimento e do Clube da Esquina28, nos anos 1970. Esse pode ser considerado um dado especulativo, no entanto o disco Chama Acesa reflete um tipo de sonoridade peculiar, em evidência na época, que também se aproxima de experiências como a do grupo Som Imaginário29. Modo Livre e Chama Acesa 28  O nome proveniente do título de dois LPs de Milton Nascimento - Clube da Esquina, de 1972, e Clube da Esquina 2, de 1978 – foi usado para se referir a um grupo de artistas, integrado por compositores, letristas, arranjadores, instrumentistas, que participou do processo criativo das produções de Milton Nascimento, nos anos 1970. (29)

O grupo, formado por Wagner Tiso, Tavito, Luiz Alves, Robertinho     Silva  , Fredera e Zé     Rodrix  , dentre outros, atuou no início dos anos 1970 e apresentou em seus discos uma sonoridade ligada ao rock psicodélico, (30) podem ser considerados discos de um momento transitório da produção de Ivan Lins. É a partir desses dois álbuns que Lins promove significativas mudanças estéticas, relativas ao conteúdo poético e musical de suas canções, que irão demarcar seu reencontro com o “grande público”. No final dos anos 1970, Lins lançou os discos que sinalizaram seu reconhecimento de público e comercial com a mudança de gravadora, da RCA para a EMI. Os álbuns são: Somos Todos Iguais Nesta Noite (1977), Nos dias de Hoje (1978), A Noite (1979) e Novo Tempo (1980). Ivan Lins passou a fazer parte do elenco de artistas do segmento “sofisticado” da gravadora, dirigido pelo produtor Mariozinho Rocha. Em entrevista, Eduardo Souto Neto, produtor executivo dos três primeiros LPs gravados pela EMI, explica a dinâmica de funcionamento da gravadora no período:
(...) A EMI naquela época, ao invés de ter um diretor como as outras gravadoras tinham um só, eles inovaram, fizeram três diretores, dividiram o cast. Tipo: cast sofisticado, que era do Mariozinho (Rocha), o cast, digamos, médio, que misturava um pouco, que era do Renato Correia e o cast bem popular (...). O do Mariozinho (Rocha) era Milton Nascimento, Beto Guedes, e o do Renato misturava um pouco de pop (...), tinha assim, Marcos Valle, Evinha, Golden Boys.30


O que se percebe é que Ivan Lins, nesse momento, legitimou sua atuação como artista de “prestígio” da MPB. Em um contexto de consolidação da indústria do disco e da atuação de empresas transnacionais, nos anos 1970 essas gravadoras já haviam instituído a segmentação de seus produtos e que nesse sentido a MPB “passou a dividir espaço tanto com segmentos já constituídos, tais como o regional e o sertanejo e outros emergentes” (DIAS, 2008, p. 79). O sucesso comercial proporcionado pela vendagem regular de discos de catálogos formados por nomes de prestígio da MPB nas gravadoras, concedia uma certa “liberdade” de criação a esses artistas e o investimento em produções de alto custo, com álbuns “mais acabados, complexos e sofisticados” (NAPOLITANO, 2002, p. 5). Os discos de Lins lançados pela EMI contaram com uma grande equipe de produção, com orquestra de cordas, coros, instrumentistas, arranjadores, produtores e técnicos de estúdio. Eduardo Souto Neto fala de seu papel como produtor, salientando não interferir na concepção musical, assumindo uma função de “coordenador” em meio a essa “liberdade” artística sobressalente:
progressivo e experimental. Vale destacar que Wagner Tiso e Fredera participaram nos álbuns Modo Livre e Chama Acesa, de Ivan Lins. 30 Eduardo Souto Neto, em entrevista realizada por mim, no dia 28/10/2011. (31) A minha coisa sempre foi mais do estúdio, da parte estritamente musical mesmo e de certa forma técnica, mixagem e tal. E eles (Ivan Lins e Vitor Martins) na parte de criação. Porque são dois parceiros que conceberam a coisa toda, o repertório (...) uma obra pronta, com a concepção dele musical, já com o Gilson (Peranzzetta) acoplado e minha coisa era supervisioná-los e ajudá-los.31


A partir de Somos Todos Iguais Nesta Noite, a parceria com Vitor Martins se firmou, prevalecendo até meados dos anos 1990. Gilson Peranzzetta, que já participava como arranjador desde Chama Acesa, assumiu esse papel, elaborando arranjos de base, de sopros e de cordas. Segundo Peranzzetta, havia um processo de criação integrado, no qual Lins mostrava suas composições, muitas vezes ainda sem letra, ele começava a conceber os arranjos baseado nessa ideia inicial, depois Vitor Martins escrevia a letra (32). Essa parceria foi se solidificando, chegando ao disco Novo Tempo (1981) com um tratamento de trabalho autoral de grupo: o encarte do disco é ilustrado com fotografias dos três (Lins, Martins e Peranzzetta) caminhando por uma rua e lendo notícias do jornal. O trio consolidou uma sonoridade e poética específicas que perpassam os discos gravados entre 1974 e 1984.   As canções dos discos de Lins lançados pela gravadora EMI representam o papel da MPB no momento de abertura política no Brasil, entre 1975 e 1982, no qual se passou a vislumbrar um tempo de liberdade que ainda não havia se efetivado. Com uma maior tolerância em relação ao conteúdo contestador das canções, a MPB conquistou um espaço de crítica à situação política e de celebração da liberdade, conforme aponta Napolitano: 
É importante notar que, mais do que desempenhar uma função política tradicional da canção de protesto – qual seja, manter a vitalidade da crítica direta, a crença no futuro inexorável e exortar a ação direta contra uma situação de opressão, a canção da abertura, mesmo podendo ser vista como uma variante da canção engajada, realizava-se em outra direção: a sublimação poética da liberdade e do trauma da repressão recente (NAPOLITANO, 2010, p. 396).
Sob essa perspectiva, diversas canções dos discos mencionados, como “Desesperar Jamais”, “Novo Tempo” e “Começar de Novo” apresentam um “balanço” das experiências do passado reprimido e uma incitação à liberdade do presente, como é possível notar principalmente nos últimos versos de “Desesperar Jamais”: “No balanço de perdas e danos/ Já tivemos muitos desenganos/ Já tivemos muito que chorar/ Mas agora, acho que chegou a hora/ De fazer/ 31Idem. 32Cf. Gilson Peranzzetta, em entrevista realizada por mim, no dia 30/10/2011. (32) Valer o dito popular”.

Na matéria sobre o show de estreia de Somos Todos Iguais Nesta Noite, (LIVRE... : 1977, p.125), o sentido de disseminação da canção como porta-voz da crítica ao regime autoritário e da luta pela “liberdade” é enaltecido. Ao mesmo tempo, é importante ressaltar que a liberdade era ainda iminente, devido aos cortes de som e de luz em decorrência do conteúdo contestador do discurso de Lins:
(...) demonstrou naquele show, na prática, o irresistível poder social da celebração estética enraizada no sentimento coletivo; quando carregou as tintas no que tinha a dizer cortaram-lhe a luz, tiraram-lhe repentinamente o som do microfone. No escuro, sem ampliação vocal, conseguiu se fazer entender pela plateia de quase 2000 espectadores. 


Ivan Lins voltou a ampliar seu público e os discos que gravou no final dos anos 1970 tiveram uma vendagem crescente (33) e significativa, aumentando também  seu prestígio na indústria fonográfica. Essa relação reflete o momento de boom vivido pela MPB no mercado do disco, durante o período de abertura política, como já mencionamos anteriormente. Os quatro álbuns de Lins lançados pela EMI apresentam um conteúdo poético e musical homogêneo, no sentido de unidade estética34, e coerente em relação à sua postura engajada. Nesses discos foram lançadas muitas das canções mais conhecidas e gravadas de Ivan Lins, como “Começar de Novo”, “Velas Içadas”, “Dinorah, Dinorah”, “Somos Todos Iguais Nesta Noite”, “Cartomante”, “Aos Nossos Filhos”, todas escritas em parceria com Vitor Martins. Embora, na opinião de Ivan Lins, o engajamento seja o fio condutor de sua música nesse momento, tratado como uma questão ideológica, percebemos que suas escolhas se ajustam também às inclinações do mercado fonográfico. Antes de se profissionalizar como músico, compunha sambas, bossas e jazz, em seguida, começou a escrever canções românticas, ligadas ao soul e ao pop, atingindo grande êxito comercial. Com a queda de seu sucesso e com a crítica da esquerda em relação à sua atitude “alienada” passou a compor canções fortemente politizadas, incorporando elementos ligados à “brasilidade”, que obtiveram resultados mercadológicos muito favoráveis.

No início dos anos 1980, com o disco Novo Tempo, que segue a linha dos três discos anteriores, inicia-se uma queda de vendagem, como indica o trecho a seguir, de uma revista da época: “(...) êxito não repetido por Novo Tempo, disco demasiadamente parecido com A Noite e que deixou a impressão de um certo esgotamento de fórmula adotada desde Somos Todos Iguais (...)” (in: LINS: 1981, p. 11). A crítica começava a enfatizar a padronização do estilo que prevaleceu nos álbuns da EMI. Justamente nesse momento de crise, Lins mudou da EMI para a Polygram/Philips, após lançar Novo Tempo. Mais uma vez, sua imagem começa a sofrer transformações no início dos anos 1980, a partir da gravação do disco Daquilo Que Eu Sei (1981). 

 


Início dos anos 1980 e a volta do “internacional-popular”

Além da mudança no conteúdo das letras, a partir desse álbum, a sonoridade das canções passa a ser predominantemente marcada pelo uso de sintetizadores e de instrumentos eletrônicos. Em comparação aos quatro discos lançados anteriormente há um número menor de músicos35, ainda que apresente duas faixas com orquestra de cordas. Além disso, praticamente todas as canções são pop. Essas mudanças distinguem-se nos três discos lançados no início dos anos 1980: Daquilo Que eu Sei (1981), Depois dos Temporais (1983) e Juntos (1984), embora esse último seja um retrospecto de canções gravadas entre 1974 e 1980.

Em entrevista, Gilson Peranzzetta (36), arranjador e produtor desses três álbuns, refere-se a essas mudanças, em sua visão, como resultantes de um momento de expansão de público para Lins: “porque o conteúdo da música era bem mais trabalhado, mais pesado. Agora você (Ivan) vai ter mais oportunidade de chegar, ampliar muito”. Segundo Peranzzetta, a mudança do conteúdo das canções e da sonoridade nunca foi uma imposição da gravadora, mas sim uma escolha “exigida” da sonoridade vigente (...) um modismo”. Através da análise da ficha técnica dos três discos percebemos que instrumentos eletrônicos, como os sintetizadores crumar performer, oberheim, prophet 5, Korg Polysix, são adotados com maior frequência ao longo de cada álbum (37). Tanto o predomínio de canções de apelo romântico, quanto da sonoridade resultante do uso de sintetizadores, que marcam a produção de Ivan Lins ao longo da década de 1980, são reflexos de uma nova dinâmica que passou a se impor no mercado fonográfico. 
Nessa década, assinalada por uma maior segmentação e racionalização da indústria do disco, ocorreu um processo de aproximação estética dos diferentes produtos oferecidos pelo mercado musical, como meio de ampliar a faixa de consumo, conforme aponta Eduardo Vicente, em sua tese de doutorado sobre a indústria do disco no Brasil:
O que se tornou dominante dentro do mercado – e da ação das grandes gravadoras – foi a eliminação dos excessos e a pasteurização das letras, melodias, performances e arranjos: processo que tendeu a aproximar o sertanejo, o rock, a música infantil e parte da MPB de um mesmo referencial e público alvo. De qualquer forma, até o final da década a “invasão romântica” do cenário musical já estaria assentada sobre um novo patamar de profissionalização da produção (...). (VICENTE: 2001, p. 100)


Vicente ressalta ainda que desde o processo de abertura política houve uma mudança no mainstream da MPB e que os critérios que separavam a música “popular” e a “MPB” passaram a ser insuficientes, conduzindo a um “embaralhamento dos pólos” dentro do mercado (idem, pp. 98, 121). Ainda tendo como referência o mainstream da “MPB” das décadas anteriores, notamos uma reação negativa da crítica em relação à “nova” concepção artística de Ivan Lins, referente ao lançamento do disco Daquilo Que Eu Sei. Sob a perspectiva da “padronização como estratégia de sucesso”, a crítica recaiu sobre a nova produção de Ivan Lins e do letrista Vitor Martins em contraposição às canções da década anterior: “Hábeis na criação de metáforas que contornavam os rigores da censura nos anos 70, repetiram-se indefinidamente (...). Perderam o assunto favorito, jamais substituído pelas fraquíssimas composições românticas que gravam” (TRILHA... : 1981, p.127). Embora essa crítica tenha implicações de gosto pessoal, faz sobressair o papel que Ivan Lins desempenha como um ator flexível em relação às exigências e tendências mercadológicas. Os quatro discos anteriores lançados pela EMI, Somos Todos Iguais Nesta Noite, Nos Dias de Hoje, A Noite e Novo Tempo, são baseados em um conteúdo poético e sonoro análogo, que comercialmente funcionou como uma “fórmula de sucesso” até o declínio de vendagens dos LPs. O crítico, ao mesmo tempo em que condena a nova fase “padronizada” do início dos anos 1980, prefere declaradamente as canções da década anterior, mesmo reconhecendo a estandardização presente também nesse período: “repetiram se indefinidamente”. Já em 1983, com o lançamento de Depois dos Temporais, a crítica traz à tona a padronização das canções de Lins, considerando-o: “um compositor que, esvaziado pela abertura política, passou a se repetir nos últimos anos” (EM RITMO... : 1983, p. 125). Nessa crítica há um olhar positivo e de aceitação das mudanças estéticas da produção de Lins, realçando que o artista: “reelabora seu estilo alternando climas românticos e reflexivos”, deixando para traz temas políticos (idem). Por fim, salientamos a flexibilidade de Ivan Lins como fruto de uma nova dinâmica de atuação, balizada pelas relações de mercado, que surgiu nos anos 1970, marcada por conflitos e transformações de valores, na busca de espaços de legitimação, como ressalta Eduardo Vicente abaixo: 
Assim, surge a partir dos anos 1970 – mesmo em conexão com o pólo “intelectualizado” da música popular brasileira – uma geração de artistas que incorpora em seu habitus uma visão mais objetiva do mercado e, também por isso, uma maior adaptação às suas novas exigências (...). A tradição já consolidada e os pólos de legitimação constituídos dentro do campo apresentam-se como importantes patterns de produção e referenciais para sua atuação. Por isso, embora parcialmente esvaziados do seu significado político original, tanto o mainstream formado pelos artistas dos anos 50 e 60 quanto o posicionamento entre conceitos como “comercial” e “artístico”, “político” e “alienado”, “popular” e “elaborado” continuam a ter grande relevância para esses novos agentes em sua busca de posicionamento no campo. (VICENTE: 2001, p. 84). 


Como bem frisou Vicente, as referências ligadas ao plano ideológico que orientavam as produções da MPB nas décadas anteriores passam a ser ressignificadas e transformaram-se em padrões de produção para a atuação de artistas dentro da nova dinâmica que se estabeleceu, segundo a lógica do mercado moderno, como observamos na trajetória de Ivan Lins. Enquanto na segunda metade dos anos 1970 o que parece nortear a produção de Lins é o referencial “nacional-popular”, aproximando sua música da “identidade brasileira”, nos anos 1980 parece haver uma retomada do conteúdo “internacional-popular” que também se distinguiu na produção do início da década de 1970. E é justamente na década de 1980 que o artista consolida sua atuação no mercado internacional.


Considerações finais 


Tratamos aqui de um assunto extenso, abrangente e de grande complexidade que pode ser aprofundado em pesquisas futuras. Ainda que o enfoque na produção realizada em um intervalo pouco maior que dez anos seja muito amplo para ser tratado em poucas páginas, possibilitou-nos ter uma visão mais geral das transformações musicais e profissionais de Ivan Lins, contornadas por um momento de transição no qual se consolidavam os padrões internacionais do mercado de consumo moderno no Brasil. Mesmo com a amostragem de apenas quatro canções, as análises contribuíram para a percepção de que, se por um lado ocorrem frequentes mudanças estéticas que incidem sobre o conteúdo das letras e dos arranjos, há uma coerência composicional, na qual procedimentos harmônicos e melódicos elaborados se destacam como elementos chave dos “hábitos compositivos” de Ivan Lins. Os arranjos e as letras se articulam conforme o posicionamento de Lins, contribuindo para sua legitimação em determinados campos de atuação. Acreditamos que as análises musicais inseridas no texto, ao invés de separadas em uma seção à parte podem contribuir para uma visão mais completa das produções de Lins. O que se tornou o ponto nevrálgico nesse trabalho é o processo de atrelamento temporário a diferentes identidades como forma de legitimação para Ivan Lins, segundo a lógica de mercado. Michel Nicolau Netto, em seu livro sobre a música brasileira e a identidade nacional no contexto da mundialização, apresenta o conceito de “ator móvel” (NETTO: 2009, p. 193):   Conforme o acúmulo de capital do criador cultural ele deverá se subsumir com mais ou menos fixidez a uma identidade em busca de se posicionar no mercado internacional de música. E, ainda, dependendo também deste capital, o criador poderá se relacionar a uma identidade mais fixa, ou seja, que preza pela perenidade e territorialidade, ou mais flexível, cuja essência é a própria mudança e a desterritorialização. (...) temos o criador cujo capital lhe permite não se fixar a qualquer identidade, pois não o necessita para se inserir no mercado cultural, mas que, quando ou se o fizer, será de forma controlada, estratégica e temporária, enquanto tiver interesse para tanto. Podemos conceituá-lo, então, de ator móvel (...). (NETTO: 2009, p. 193)
O termo “ator móvel” pode nos ajudar a entender a mutabilidade da produção de Lins, que ora se fixa a determinada identidade, ora se afasta, como uma estratégia controlada, orientada por suas experiências específicas e interesses e como uma forma de “sobrevivência”, em um momento de crescente globalização da economia e de internacionalização cultural.


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*Thaís Nicodemo, pianista, compositora, arranjadora e pesquisadora paulistana. Doutoranda em Música, pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, é mestre em Música pela mesma instituição e possui bacharelado em Piano Popular, pela Faculdade Santa Marcelina e membro da Associação Mural Sonoro. Revista Brasileira de Estudos da Canção – ISSN 2238-1198 Natal, v.1, n.1, jan-jun 2012. 

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“Um Abraço Terno em Você, Viu Mãe” (Luiz Gonzaga Jr.), “Diva” (César Costa Filho/ Aldir Blanc) e “O Amor é o Meu País” (Ivan Lins/ Ronaldo Monteiro de Souza).

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Entrevista concedida por Paulinho Tapajós, realizada por mim no dia 28/10/2011. 20 “Agora” (Ivan Lins/ Ronaldo Monteiro de Souza)/ “Finalmente” (Ivan Lins/ Ronaldo Monteiro de Souza), Forma/Philips, 1970 21 “Novamente Nós” (Ivan Lins/ Ronaldo Monteiro de Souza)/ “A Vida Avisa Que Chegou” (Ivan Lins/ Ronaldo Monteiro de Souza)/ “Qual a Porta?” (Ivan Lins/ Ronaldo Monteiro de Souza)/ “À Beira do Cais” (Ivan Lins/ Paulinho Tapajós/ Arthur Verocai), Forma/Philips, 1970.

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Letra de “O Amor é o Meu País”: Eu queria, eu queria, eu queria/Um segundo lá no fundo de você/Eu queria, me perdera, me perdoa/Por que eu ando à toa/Sem chegar/Tão mais longe se torna o cais/Lindo é voltar/É difícil o meu caminhar/Mas vou tentar/Não importa qual seja a dor/Nem as pedras que eu vou pisar/Não me importo se é pra chegar/Eu sei, eu sei/De você fiz o meu país/Vestindo festa e final feliz/Eu vi, eu vi/O amor é o meu país/E sim, eu vi/O amor é o meu país.

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Conforme Lins, enquanto Agora vendeu por volta de 80.000 cópias, Deixa o Trem Seguir chegou a cerca de 8 a 9 mil e Quem Sou Eu?, três mil (LINS: 1981, p. 14). 

25 Paulinho Tapajós, em entrevista realizada por mim no dia 28/10/2011.

 

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26 LINS Ivan – MPB Especial 1974. Programa produzido pela TV Cultura. Direção de Fernando Faro. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2008. 1 DVD. 27  Embora não seja um dado preciso, Lins afirma em entrevista que o LP “Modo Livre” vendeu cerca de 10 mil cópias. (LINS: 1981). 29
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Em entrevista, em 1981, Lins afirmou que Somos Todos Iguais Nesta Noite havia vendido por volta de 70.000 cópias, Nos Dias de Hoje, 80.000, A Noite, havia passado das 100.000 cópias e Novo Tempo, lançado em 1980, passou por uma queda na vendagem, para 60.000 exemplares (LINS, 1981, p. 15).  

34 Os arranjos desses álbuns apresentam instrumentação similar, com os mesmos músicos tocando, além da sonoridade orquestral e dos coros vocais que se assemelham. 

 

36 Gilson Peranzzetta, em entrevista realizada por mim no dia 30/10/2011. 37 Em Juntos, como é possível perceber, os recursos tecnológicos permitem que em uma mesma faixa, no caso, “Formigueiro”, tenham poucas pessoas tocando e muitos instrumentos soando: Gilson     Peranzzetta     - Emulator, Gilson     Peranzzetta     - Teclado Korg PolySix, Gilson     Peranzzetta     – Acordeon, Gilson     Peranzzetta     - Piano Yamaha DX-7, Ivan     Lins     - Oberheim DX, Ivan     Lins     - Piano Yamaha DX-7, Ivan     Lins     - Piano Yamaha CP-70, Jorginho     - Percussão, Tim     Maia     - Bateria, Tim     Maia     – Coro. 34
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35 Levamos em consideração que a introdução de sintetizadores e de instrumentos eletrônicos nos anos 1980 possibilitou a redução dos custos de gravação, substituindo, por exemplo, uma orquestra de cordas, por instrumentos sintetizados, tocados por um só músico (Cf. VICENTE: 2001, p. 140). resultado favorável desse novo tipo de produção pode ser verificado pela vendagem de seu disco posterior Ivan Lins, de 1986, que recebeu disco de ouro 38. 

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38 Cf. Ivan Lins, por email no dia 14/11/2011.
 

Referências


DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. São Paulo: Boitempo, 2008. NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação. São Paulo: Contexto, 2006. ______. História e música – história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. ______. A música popular brasileira (MPB) dos anos 70: resistência política e consumo cultural. In: Anais do IV Congreso de la rama latino-americana del IASPM, 2002. ______. O caso das “patrulhas ideológicas” na cena cultural brasileira do final dos anos 1970. In: MARTINS FILHO, João Roberto. (Org.) O golpe de 1964 e o regime militar: novas perspectivas. São Carlos: EdUFSCAR, 2006. ______. MPB: a trilha sonora da abertura política (1975/1982). In: Estudos Avançados (USP. Impresso), v. 69, p. 389-404, 2010. NETTO, Michel Nicolau. Música brasileira e identidade nacional na mundialização. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2009. ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2003. ______. A moderna tradição brasileira – cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 2006. RIDENTI, Marcelo. Brasilidade Revolucionária. São Paulo: Editora UNESP, 2010. SCOVILLE. Eduardo Henrique Martins Lopez de. Na Barriga da Baleia: a Rede Globo de Televisão e a música popular brasileira na primeira metade da década de 1970. Curitiba: UFPR, 2008. Tese de Doutorado. 
MATÉRIAS     PUBLICADAS     NA     REVISTA     VEJA  TEMPLO de todos os sons. VEJA, São Paulo: Abril, s/n, p. 76. 23 de dezembro de 1970. RECOMEÇA a corrida para o ouro. VEJA, São Paulo: Abril, s/n, p. 40-45, 14 de abril de 1971. SERTÃO elétrico. VEJA, São Paulo: Abril, s/n, p. 80. 23 de março de 1972. LIVRE do sucesso. VEJA, São Paulo: Abril, s/n, p. 125. 10 de agosto de 1977. TRILHA perigosa – falta de ousadia provoca naufrágio geral. VEJA, São Paulo: Abril, s/n, p. 123. 7 de outubro de 1981. EM RITMO de férias. VEJA, São Paulo: Abril, s/n, p. 125. 6 de julho de 1983. 
O     PASQUIM  LINS, Ivan. O que caiu no golpe do Olimpiá. O Pasquim, n. 174, 6 nov. 1972. p. 9- 12. Entrevista.
O     ESTADO     DO     PARANÁ     MILLARCH, Aramis. Abertura (Opus 2). O Estado do Paraná, Curitiba, 16 jan. 1975.
REVISTA     VIOLÃO     &     GUITARRA     MPB  LINS, Ivan. Ivan Lins – o ídolo que renasceu. Revista Violão e Guitarra MPB, n. 12, 1981, Editora Imprima Comunicação Editorial. Entrevista. 
FONTES     EM     ÁUDIO     E     VÍDEO  LINS, Ivan - MPB Especial 1974. Programa produzido pela TV Cultura. Direção de Fernando Faro. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2008. 1 DVD. 38
Revista Brasileira de Estudos da Canção – ISSN 2238-1198 Natal, v.1, n.1, jan-jun 2012. Disponível em: www.rbec.ect.ufrn.br
LINS, Ivan. Juntos. Brasil: Polygram, 1984, LP LINS, Ivan. Depois dos Temporais. Brasil: Polygram/ Phillips, 1983. LP LINS, Ivan. Daquilo que eu Sei. Brasil: Polygram, 1981. LP LINS, Ivan. Novo Tempo. Brasil: EMI, 1980, LP. LINS, Ivan. A Noite. Brasil: EMI, 1979, LP. LINS, Ivan. Nos Dias de Hoje. Brasil: EMI-Odeon, 1978, LP.  LINS, Ivan. Somos Todos Iguais Nesta Noite. Brasil: EMI Odeon, 1977. LP LINS, Ivan. Chama Acesa. Brasil: RCA, 1975, LP. LINS, Ivan. Modo Livre. Brasil: RCA, 1974, LP. LINS, Ivan. Quem Sou Eu?. Brasil: Forma, 1972, LP. LINS, Ivan. Deixa o Trem Seguir. Brasil: Forma, 1971, LP. LINS, Ivan. Agora. Brasil: CBD/Forma, 1971, LP.
ENTREVISTAS Paulinho Tapajós, no dia 28/10/2011 Eduardo Souto Neto, no dia 28/10/2011 Gilson Peranzzetta, no dia 30/10/2011 Ronaldo Monteiro de Souza, no dia 31/10/2011 Ivan Lins, email, no dia 14/11/2011

 

fotografia de capa de Augusto Fernandes no âmbito de entrevista de Soraia Simões a Ivan Lins (História Oral, plataforma Mural Sonoro)

 

 

 

 

 

 

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Carnaval em Lazarim: Máscaras, Testamentos e Práticas Carnavalescas

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Carnaval em Lazarim: Máscaras, Testamentos e Práticas Carnavalescas

 

[1] por Dulce Simões

A vila de Lazarim, no Norte de Portugal, encontrou no Carnaval um tempo de excepção para afirmar a sua identidade cultural, reinventando a tradição. No processo de institucionalização das práticas carnavalescas recuperam-se os ritos, os símbolos e os textos associados às festas de Inverno, que atribuem sentido e significado à vida da comunidade.

Carnaval em Portugal. Máscaras de Lazarim. Reinvenção da tradição. Testamentos dos compadres e das comadres. Rituais carnavalescos

The village of Lazarim, located in the North of Portugal, found a time of exception in Carnavalto reassure its cultural identity by the reinvention of traditional practices. In the process of institutionalization of carnival’s practices, rites as well as symbols and texts associated to the winter feasts were recovered and enlivened, attributing meaning and signification to the life of the local community.

CARNIVAL IN PORTUGAL. MASKS OF LAZARIM. REINVENTION OF TRADITION. TESTAMENTOS DOS COMPADRES E DAS COMADRES. CARNIVAL RITUALS.

INTRODUÇÃO

As comunidades rurais possuem um conjunto de saberes e de práticas que pretendem preservar e transmitir às gerações futuras, como património cultural e identitário. A vila de Lazarim, no concelho de Lamego, Norte de Portugal, encontrou no Carnaval um tempo de excepção para afirmar a sua identidade cultural, recuperando os ritos, os símbolos e os textos associados às festas de Inverno. A partir de 1985 as práticas carnavalescas foram institucionalizadas, num modelo performativo que procura mostrar a tradição local ao mundo global. A intervenção da Junta de Freguesia, da Casa do Povo e a vontade política dos seus elementos foram determinantes para a reinvenção da tradição, numa acção concertada com a escola e o envolvimento das famílias. No processo de invenção da tradição (HOBSBAWM & RANGER, 1983) recuperam-se os saberes de um passado rural que atribui sentido e significado à vida da comunidade, resgatando práticas culturais como capital simbólico (BOURDIEU, 2001).

Na perspectiva etnográfica de uma descrição densa (GEERTZ, 1978), partimos para Lazarim levando na bagagem algumas leituras sobre práticas carnavalescas no Norte de Portugal, e os textos divulgados na Internet pela Câmara Municipal de Lamego. Em termos metodológicos entrelaçámos a história e a antropologia, articulando a pesquisa documental e bibliográfica com o trabalho de campo, ao longo do qual realizámos entrevistas com informantes institucionais (presidente da Junta de Freguesia, presidente da Casa do Povo, pároco local e professor), com informantes privilegiados (artesãos de máscaras e representantes dos grupos dos Compadres e das Comadres), e conversas informais com residentes e visitantes. Neste artigo questionamos os mecanismos de construção e preservação das práticas carnavalescas, numa comunidade rural cuja componente agrícola se desvaneceu, com o enfoque na cultura popular (BAKHTIN, 2002) e nas práticas performativas (CONNERTON, 1999). Numa permanente dialéctica entre o passado e o presente, mediado pela memória dos nossos informantes, estruturámos o texto em três partes, analisando as mudanças no mundo rural e os sentidos e significados atribuídos à festa, no processo de construção de identidades locais.

O ESPAÇO, OS LUGARES E AS PESSOAS

Lazarim é uma freguesia portuguesa do concelho de Lamego, distrito de Viseu, Beira Alta, com 15,71 km² de área, e uma população residente de 686 pessoas, num total de 236 famílias (Censos 2001). Historicamente é identificada através de vestígios arqueológicos pré-celtas, romanos e visigóticos, atribuindo os habitantes a sua origem à aldeia das Antas, actualmente desabitada. Os primeiros documentos referentes a Lazarim datam do início do séc. XIII, quando beneficiava do título de Vila, com administração autárquica e o nome associado ao antropónimo latino de um senhor agrário. A estrutura social da comunidade assentava na família e no Município, implementados pelo sistema de propriedade. A terra era explorada a nível familiar durante três gerações, gozando os herdeiros de preferência na renovação do contrato de arrendamento com os senhores da terra, fidalgos e ordens eclesiásticas. A posse da terra determinava a estrutura linhageira e o casamento endogâmico, fixando a herança na linha agnática. A Igreja impunha o casamento exogâmico, tornando nulo o casamento entre parentes, sendo os documentos registados como divórcios relativos a anulações, por denúncias feitas à Igreja. Em 1273 a povoação ficou praticamente desabitada, em virtude da peste que assolou a Beira, perdendo o título de Vila com a promessa de lhe ser restituído após povoamento, e durante 200 anos cessaram referências documentais. Em 1505 recuperou o título de concelho, por contrapartida do reconhecimento público ao novo donatário, “D. João de Menezes, Conde e senhor das ditas terras e concelhos” (COSTA, 1977, p. 91). No séc. XIX voltou a perder o título, recuperando-o simbolicamente a 21 de Junho de 1995. 

As diferenças entre lugares não são identificáveis no plano material, através da observação do espaço geográfico, porque este apresentava-se homogéneo ao nosso olhar. A heterogeneidade justifica-se ao nível simbólico e histórico, associada às famílias que os construíram ao longo do tempo, designando-os por Padrão, Vila e Valverde.

Existe uma competição entre os três lugares, e no Carnaval sente-se isso, esconde-se para ser melhor, e por um lado até é bom essa competitividade, mas às vezes também é exagerado porque se pode perder o controlo da própria pessoa, e criam-se as rivalidades que prejudicam a paz e a serenidade entre as pessoas. (Agostinho Ramalho, pároco local)1

O lugar do Padrão demarca-se na entrada da vila, circunscrito à zona da ribeira, integrando à direita o solar dos Vazes, deixado por herança para residência oficial do Pároco local, e à esquerda o solar do Barão de Lazarim em ruínas. O lugar da Vila é o núcleo habitacional mais antigo, com a Casa da Câmara construída em granito, ruas estritas, onde se misturam as habitações de alvenaria com as de granito e xisto. Valverde fica na encosta e é o núcleo mais moderno, destacado pelas residências em alvenaria. O espaço do Lazarim integra estes lugares, transformados ao longo de gerações pelos seus habitantes, com os saberes que reproduzem o quotidiano. A terra outrora fértil já não serve as necessidades económicas das famílias, apesar de continuarem a cultivá-la para o consumo das casas. Os canastros, ao longo dos campos, testemunham um passado ligado à terra, mas presentemente os residentes dependem dos serviços em Lamego, ou do trabalho na construção civil, mantendo as actividades agrícolas em paralelo. A maioria das pessoas de Lazarim migrou para Lisboa e Porto, apesar de se ter verificado uma emigração bastante significativa para o Brasil nas décadas de 1940 e 1950. No Brasil fixaram-se em Caju, Rio de Janeiro, e em São Paulo, e poucos regressaram. Em Lisboa e Porto criaram comunidades de migrantes, regressando a Lazarim para as festas de Verão, para a matança do porco, ou para ajudar nas vindimas. Mas durante o Carnaval são sobretudo os jovens que regressam para participar na festa.

O CARNAVAL JÁ NASCEU CONNOSCO, JÁ OS VELHOS FAZIAM ISSO

O Carnaval constitui um sistema simbólico associado à transição do Inverno para a Primavera, do velho para o novo, da morte para a vida, do frio para o calor, da parte masculina para a parte feminina do universo, reunindo diversos significados que assinalam este ciclo na vida das comunidades rurais. Um ciclo de renovação cósmica e social, tempo de utopia e transgressão, onde tudo o que é socialmente marginalizado busca uma libertação catártica, vencendo simbolicamente a hierarquia, a ordem, a opressão, e o sagrado. Na Idade Média as festas carnavalescas convertiam-se simbolicamente na “segunda vida do povo”, que ascendia, temporariamente, ao reino da utopia, da universalidade, da liberdade, da igualdade e da abundância (BAKHTIN, 2002). O Carnaval representa um ciclo na vida das comunidades, mais ou menos representativo conforme os significados que as pessoas lhe atribuem:

O significado histórico é mais importante do que o significado que eu lhe atribuo como participante. O significado desta quadra festiva é para mim gozo e prazer, mas o significado histórico já vem da Idade Média e mistura o profano com o religioso. Como o ano é dividido liturgicamente o Carnaval é o aliviar de uma certa carga religiosa. Antes as pessoas eram mais participativas na igreja católica e então tinham estas fugas para libertar o seu espírito e sair um bocadinho da rotina. (Norberto Carvalho, presidente da Junta de Freguesia)2

Nesta perspectiva, todas as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo, da alternância, da renovação, e da consciência sobre a relatividade das verdades e autoridades do poder (BAKHTIN, 2002, p.10). Para Veiga de Oliveira (1984) o Carnaval provém das Saturnais romanas, que se caracterizavam como um período de completa liberdade licenciosa, durante o qual tudo era permitido (OLIVEIRA, 1984, p. 38). Este ciclo temporal, em que o curso normal da vida é suspenso, dando lugar a rituais de inversão e subversão, contrariando a ordem social, pode ser designado por “liminar” (TURNER, 1974, p.117), com os seus “rituais de passagem” (VAN GENNEP, 1978, p. 31). Em Lazarim, o Carnaval foi recordado pelos mais idosos como um tempo vivido no interior da comunidade, como prática de resistência aos poderes instituídos e como paródia burlesca:

O Carnaval já nasceu connosco e já os velhos faziam isso, mas o Carnaval era mais rigoroso nesse tempo, o pessoal não era tão educado. Qualquer briga de namorico ou da rega das águas, era pago nestes dias. Havia quase sempre zaragatas. … Também acompanhei o farranjo mas no entanto eu livrava-me das marés, que é quando via a coisa a ficar azeda, porque às vezes o Carnaval durava mais de um ano pelos tribunais. (José Rua, reformado)3

O Carnaval serviu para “ajuste de contas” entre vizinhos, mas também para afrontar os poderes instituídos. As práticas rituais de inversão nas sociedades católicas ocidentais assinalam um tempo de utopia. Este tipo de pensamento utópico, disfarçado de forma alegórica, revela uma declaração explicitamente revolucionária, em que os dominados concebem a inversão, e a negação de uma ordem social, radicalmente diferente daquela que vivem (SCOTT, 2003, p. 126). Durante o Estado Novo as práticas carnavalescas em Portugal estavam sujeitas à aprovação das autoridades locais, muitas vezes dominadas pela Igreja. Em Lazarim proibiram-se os mascarados (Caretos) e a leitura dos testamentos do Compadre e da Comadre, por intervenção directa do pároco local junto do Bispo de Viseu.

O Entrudo, com os testamentos, era para a igreja de então algo prejudicial para a moral da sociedade. Então eles nesses dias em que esperavam que ia haver este tipo de rituais mandavam vir a GNR, eram as histórias que os meus pais contavam dos anos trinta e quarenta. (Norberto Carvalho, presidente da Junta de Freguesia)

Na década de 1940 era comum o pároco local pedir um destacamento da Guarda Nacional Republicana (GNR) para reprimir possíveis manifestações de desobediência. Num desses anos, os guardas da GNR estavam reunidos em casa do pároco, comendo e bebendo, quando foram surpreendidos pelo disparo de um tiro de caçadeira, que os pretendia amedrontar. O alvoroço na aldeia foi generalizado, e procederam-se a buscas e interrogatórios para encontrar o culpado. No decorrer das averiguações foram chamados ao Regedor todos os homens que tinham armas de caça, e a aldeia acorreu em peso. Quando o processo chegou ao juiz de Lamego estavam envolvidos todos os homens da aldeia, unidos em protesto colectivo, mas foram ilibados da sentença e prevenidos pelo juiz a não repetirem o sucedido. Na aldeia todos sabiam que o autor do disparo era o filho do Regedor, mas nunca o denunciaram. A sua acção representou uma vontade colectiva, e uma forma de resistência ao poder dominante4.

Havia muitas vinganças. Eu tinha uma tia que era professora primária mas era muita má. E não havia Entrudo em que ela não saísse para moer, inclusive no marido. Para dar pancada, mas pancada a sério. (…) Eram as mulheres que se vestiam de Careto. É um ritual de inversão não tenha dúvidas, é assim que eu me lembro da minha infância. (Amândio Lourenço, Presidente da Casa do Povo)5.

 Lembro-me do Carnaval desde novinha, mas não era assim, saíam mais vezes mascarados com uns paus e a canalha sempre atrás deles, a gente era nova e gostava imenso e agora também gosto muito. Só uma vez é que fiz um testamento, ainda não namorava o meu marido. Achava graça e também gostava de meter a minha achada contra eles. Eles eram mais atrevidos do que agora, não com falta de respeito às raparigas que havia muita, mais do que agora, mas nas zaragatas. (Elvira Fernandes, reformada)6.

O Carnaval aqui em Lazarim sempre foi meio maroto, até que agora nem é, é bonito e é um sossego. A evolução da vida é que faz isso. Antigamente as freguesias não se podiam ver umas às outras, agora os daqui casam com os de fora, os de fora casam com os daqui e a evolução do tempo é que vai fazendo isto e cada vez a coisa está mais normalizada, e assim é que é bem. (Afonso de Almeida e Castro, artesão de máscaras)7.

Os testamentos da Comadre e do Compadre tiveram consequências sociais graves, que se reflectiram em processos judiciais e noivados desfeitos. A memória colectiva preserva esse tempo de conflitos, atribuindo à evolução dos tempos a normalização das relações entre vizinhos. Por outro lado, a institucionalização das práticas carnavalescas retirou a componente de transgressão e de secretismo que girava em torno dos Caretos, e do grupos das Comadres e dos Compadres. A leitura dos testamentos realizava-se nos três lugares de Lazarim, permitindo a criação de um percurso que envolvia todo o espaço da comunidade numa unificação simbólica. Actualmente concentra-se no Largo do Padrão, frente ao edifício da Junta de Freguesia. Esta alteração obriga os habitantes a deslocarem-se a um único lugar, mas permite aos forasteiros acompanharem todas as fases do ritual. As práticas carnavalescas transformaram-se numa representação performativa para visitantes, e a animação dos Caretos resume-se a um desfile de mascarados, pousando para secções fotográficas, não desempenhando o papel socialmente desestabilizador pelo qual são recordados.

Para o processo de reactivação e reinvenção das práticas carnavalescas foi determinante a acção dos membros da Casa do Povo e da Junta de Freguesia, em colaboração com a Escola Primária e o Núcleo da Telescola, coordenado pelo professor Joaquim Simões:8

Nós, escola, temos feito intervenções junto da localidade começando pelo Carnaval. Levámos para a escola toda esta vivência do Carnaval, desde a confecção das máscaras, nas aulas de EVT, às fardetas e à própria gastronomia. Eles trazem as carnes e as mães vêm ajudar a fazer o caldo de farinha e partilhamos isso tudo como uma família alargada.

A Junta de Freguesia e a Casa do Povo, com o apoio da Câmara Municipal de Lamego, asseguraram os meios económicos para a organização da festa, no sentido de a preservar, contudo, esse processo pode ser analisado pelo ponto de vista da institucionalização, como testemunha Amândio Lourenço:

Eu, ao criar a Casa do Povo em 1981, peguei no assunto. Deu-se-lhe orientação, deu-se-lhe ritmo, organizou-se, está a perceber? Em vez de ser livre sem qualquer intervenção de ninguém a organizar, passou a ser a Casa do Povo a assumir as custas. Da sua originalidade não perdeu nada, deu-se-lhe foi mais um bocado de orientação, de organização para que os media tirem mais proveito deste trabalho. Porque o princípio que nos rege é particularmente os mesmos. (…) O objectivo foi preservar uma das mais ricas tradições de Lazarim que foi e é, a tradição mais rica. O objectivo é cultural, mas hoje já tem um peso comercial tremendo.

A promoção e divulgação do património cultural tem obviamente contrapartidas económicas, sobretudo para os pequenos comerciantes locais e para os artesãos das máscaras de madeira, mas tem igualmente uma contrapartida simbólica que não pode ser ignorada, o prestígio dos agentes culturais. O prestígio é observável ao nível da presença dos representantes do poder local e regional, de investigadores e museólogos, como roteiro cultural de elites urbanas, e pela presença de representantes da comunicação social à escala regional e nacional. Contudo, a reinvenção da tradição revela esquecimentos, que permanecem nas memórias de alguns membros da comunidade, como recordou Isabel Loureiro9:

Perdeu-se a semanas das amigas e dos amigos porque as pessoas esqueceram-se um bocado e a vida também mudou. Nesses dias e nessas semanas havia comidas associadas e era uma forma da mulher que não podia aparecer, nem podia dar a cara e então castigava o homem em casa, para ele ter cuidado com aquilo que fazia depois. Era engraçado e eu já nem me lembro como era bem, os meus pais é que têm isso escrito lá em casa.

Alberto Correia (2003) elaborou um calendário do ciclo do Carnaval em Lazarim, associando as relações de poder entre os grupos de género, com as comidas confeccionada à base de carne do porco. O calendário iniciava-se no quinto domingo anterior ao domingo gordo, assinalando a Semana dos Amigos. Durante esta semana a mulher exercia o poder sobre o homem, através da comida que confeccionava, “o homem era castigado com a apresentação de alimentos de pouca valia, como um caldo de farinha com moira”. Na semana subsequente, a Semana das Amigas, “as mulheres como donas do lar não prescindem de iguarias, como a chouriça, um enchido nobre que desafia a magreza da moira”. No domingo seguinte iniciava-se a semana dos Compadres, com os homens ainda subalternizados e condicionados ao consumo da moira. Por oposição, na semana sequente, a Semana das Comadres, as mulheres deliciam-se com salpicão (CORREIA, 2003, pp. 18-19). Durante as semanas dos Compadres e das Comadres os grupos realizavam peditórios para angariar fundos para a construção das suas mascotes, que hoje são encomendadas pela Casa do Povo a um artesão local. As relações de poder entre os grupos de género traduziam a submissão da mulher durante a vivência quotidiana na comunidade. A festa criava o espaço de excepção, e a utilização de práticas catárticas que permitiam ao grupo a criação de um mundo alternativo.

TODOS OS ANOS SAIAMOS MASCARADOS

Os estudos etnográficos sobre festas de Inverno no Norte de Portugal classificam o mascarado como um representante do diabo, da morte, do riso, do vício, gozando de uma impunidade a todos os níveis, em que “os mascarados da festa dos rapazes, tal como todas as personagens do Nordeste Transmontano, são veículo de um discurso mais ou menos simbólico e ritualizado ligado à transgressão, à licenciosidade e à liminaridade” (NETO JACOB, 1995, p. 386). A máscara é a expressão das transferências, das metamorfoses, das violações das fronteiras naturais e da ridicularização, baseada numa peculiar inter-relação da realidade e da imagem, característica das formas mais antigas dos ritos e espectáculos (BAKHTIN, 2002, p. 35). Como nos diz Lévi-Strauss (1981), “uma máscara não existe em si (...) não é aquilo que representa mas aquilo que transforma, isto é: que escolhe não representar. Como um mito, uma máscara nega tanto quanto afirma; não é feita somente daquilo que diz ou julga dizer, mas daquilo que exclui” (LÉVI-STRAUSS, 1981, p. 124).

Em Lazarim, três gerações de artesãos, com diferentes expressões artísticas, transfiguram um tronco de amieiro, árvore que nasce nas margens do rio Varosa, em figuras representativas da tradição local. Cada um destes homens regista simbolicamente nas suas máscaras, o seu universo cultural e o seu imaginário. Afonso de Almeida e Castro nasceu em Lazarim, em 1926, descendente de uma das famílias mais antigas da vila. O seu pai foi Regedor durante vários anos, e com a família aprendeu a arte de trabalhar o campo:

Os meus pais viviam do campo e ajudava-os quando era pequeno. Naquele tempo não havia dinheiro para comprar máscaras de plástico, nem plástico havia que eram de cartão. Mas já existia isto, sem ser eu, isto não vem de mim, já vem de tradição antiga. E como eu não tinha dinheiro e queria brincar ao Carnaval resolvi fazer de madeira. Eu tinha os meus dezasseis, dezassete anos quando comecei a fazer as máscaras, mas era como calhava, era dois buracos e uma boca, pronto, e um nariz. Umas saíram mal, outras começaram a sair menos bem, e outras a sair bem. Quando regressei do Brasil, esses rapazes que já sabiam que eu as fazia pediram-me para fazer. Vendia-as a 25 tostões.


FIG.1. Afonso de Almeida e Castro trabalhando*        FIG. 2. Máscaras de Afonso de Almeida e Castro*

Afonso de Almeida e Castro é o mais antigo artesão de máscaras de madeira, mas faz questão de afirmar não ser o primeiro, outros houve antes dele, enunciados nas narrativas dos mais idosos. As máscaras de Alberto Costa, Miguel Matança e do tio Mansinho do Travasso serviram de modelo para se iniciar na arte, mas foi sem dúvida a experimentação o elemento fundamental de aperfeiçoamento que lhe permitiu construir mais de mil e quinhentas máscaras. A sua máscara de um diabo, pintada de vermelho, foi cartão-de-visita do Carnaval de Lazarim durante a década de 1980, e sempre pintou as máscaras, até ao dia em que a “reinvenção da tradição” lhe impôs a cor natural da madeira, como modelo a reproduzir. As máscaras do diabo continuam a ser as mais solicitadas, mas também constrói figuras míticas do seu imaginário.

Segundo as narrativas dos mais idosos era comum pendurarem nas máscaras do diabo cobras do rio, sardões, sapos e sardaniscas que se contorciam, conferindo ao mascarado um aspecto ainda mais assustador. Estas memórias tomam forma nas máscaras de Adão de Castro Almeida, um dos artesãos de máscaras mais conhecido de Lazarim.

FIG: 3. Máscara de diabo, de Adão de Casto Almeida*

FIG: 3. Máscara de diabo, de Adão de Casto Almeida*

Adão nasceu em Lazarim em 1962, é calceteiro de profissão na Câmara Municipal de Lamego, e constrói máscaras há aproximadamente vinte anos. As suas mãos, hábeis na colocação da pedra, potenciam outras técnicas que a experiência foi aperfeiçoando ao longo dos anos, dedicando os seus tempos livres à construção das máscaras. Este gosto, incorporado, remete para as práticas carnavalescas da sua infância, tornando o seu trabalho tão misteriosamente personalizado. A máscara do diabo, construída por Afonso de Almeida e Castro, despertou em Adão de Castro Almeida o gosto pelas máscaras, quando tinha catorze anos de idade:

Todos os anos saíamos mascarados … então o Leonel aparece lá com um diabo pintado, era uma máscara das mais antigas. … A partir daí comecei a fazer, gostei daquilo, por acaso foi, foi mesmo um gosto. (Adão de Castro Almeida)10

José António da Silva Costa, mais conhecido por Costinha, nasceu em 1974 em Vila Nova de Gaia e é carpinteiro. Com 7 anos de idade veio para Lazarim, e aprendeu com o pai, carpinteiro de profissão, a arte de transformar a madeira. Mas foi na escola que apreendeu outras técnicas e o gosto pela construção de máscaras:

 

Comecei na Telescola a fazer máscaras de papel. Depois de madeira, uma coisa simplezinha, e daí para a frente fui-me incentivando, e o próprio Presidente da Junta foi-nos incentivando para fazermos, e estou a fazer máscaras para aí há dezassete anos. (Costinha)11

A madeira utilizada é o amieiro, por ser mais fácil de trabalhar, segundo nos diz: o amieiro é uma árvore que ensopa muita água, permitindo trabalhar a madeira enquanto está molhada. Mas depois de secar pode estalar. Os instrumentos são os mesmos que lhe são familiares na arte da carpintaria. Costinha é o único construtor que reúne na produção do seu trabalho os saberes aprendidos institucionalmente, através da escola e da família e o saber-fazer, resultante da sua incessante experimentação. As suas máscaras representam figuras humanas, ou bruxas do imaginário colectivo, mas recusa-se a construir máscaras de diabos. Costinha não incorporou, da mesma forma que os outros artesãos, o sistema simbólico do Carnaval local. O seu gosto incide sobre caricaturas de figuras públicas, reproduzindo nos seus trabalhos a influência dos meios de comunicação social. Mas o processo de institucionalização e o concurso de máscaras organizado pela Casa do Povo, obrigando-o à criação de figuras representativas da “tradição”. Como exemplo paradigmático do trabalho de Costinha, é interessante referir que utilizou uma caricatura de Vítor Baía, guarda-redes do Futebol Clube do Porto, como modelo para a execução da sua máscara de bruxa de 2003.

FIG. 4. Máscara da bruxa de Costinha*

FIG. 4. Máscara da bruxa de Costinha*

Os Caretos de Lazarim exibem através das suas máscaras representações de figuras históricas como bispos, reis e romanos, de figuras místicas como bruxas e diabos, de figuras grotescas, e ainda figuras de animais, como o burro, a corsa, o mocho e o porco. Os elementos que constituem as máscaras têm o valor de um signo, na medida em que reúnem em si um significante, ao nível da expressão plástica e um significado, ao nível do seu conteúdo, como elementos constitutivos de uma linguagem apreendida no sistema simbólico da comunidade. Para os visitantes, a leitura será certamente diferente, resultante dos seus sistemas de valores culturais. Como assinalava Umberto Eco, “cada um preencherá com os significados que lhe forem sugeridos pela própria situação antropológica, pelo seu modelo de cultura” (ECO, 1986, p.127). Neste sentido, o sistema de significação das máscaras só pode ser interpretado, traduzido ou descodificado como um discurso, por referência a uma estrutura sociocultural, entendendo-se por estrutura o contexto local onde o discurso é produzido.

Os Caretos completam a máscara com outros elementos de vestuário, como fatos confeccionados de palha, ou de barba de milho entrançado, capas vermelhas ou negras com debruados. Na mão, transportam quase sempre um objecto de uso agrícola, como uma enxada ou uma forquilha, havendo alguns que usam um cajado de nogueira, que nos remetem para o sistema simbólico do mundo rural.

FIG. 5. Máscara de Costinha, 2003* FIG. 6. Máscaras da colecção da Casa do Povo*

FIG. 5. Máscara de Costinha, 2003* FIG. 6. Máscaras da colecção da Casa do Povo*

Os Caretos de Lazarim, outrora elementos de desordem no seio da comunidade, transformaram-se em peças de artesanato local, para consumo dos mais abonados. Contudo, para as pessoas de Lazarim, as máscaras são motivo de orgulho e são uma referência cultural simbólica, não pelo que hoje representam, mas pelas memórias que suscitam. As máscaras, como sistema de signos, podem não ter a mesma leitura por parte de toda a audiência, mas, parafraseando Lévi-Strauss, “as máscaras também servem para pensar”.

 

O SIGNIFICADO DESTE RITUAL É MAIS UM GLADIAR ENTRE HOMENS E MULHERES

O ritual é uma actividade orientada por normas, com carácter simbólico, que chama a atenção dos seus participantes para objectos de pensamento e de sentimento, que estes pensam ter um significado especial (LUKES, cit. em CONNERTON, 1999, p. 22). O início do ritual é sinalizado pelo ribombar dos foguetes às três horas da tarde de terça-feira gorda. No Largo do Padrão começam a afluir os primeiros Caretos, lançando farinha e jactos de água sobre os forasteiros e os locais. Os forasteiros respondem com disparo de câmaras fotográficas, tentando registar tudo aquilo que foi anunciado como tradicional. No Largo da Casa do Povo, homens e mulheres preparam “ o banquete”, a confecção da feijoada, em grandes panelas de ferro, que no final do ritual será partilhada pelos visitantes e locais. Os homens carregam lenha, ateando o fogo, e as mulheres aprontam os ingredientes da feijoada, composta de feijão branco, enchidos, entrecosto e orelha de porco. No centro da Vila, outro grupo de mulheres prepara o caldo de farinha, composto de farinha de milho, couves e enchidos de porco, que têm a mesma finalidade, a de serem consumidos depois do ritual do testamento. Entretanto, soam as primeiras batidas dos bombos que ecoam no Largo do Padrão. O grupo de tocadores é constituído por quatro elementos, um par de bombos e um par de caixas que vão percorrendo as ruas de Lazarim, seguidos pelos Caretos, nas suas inocentes tropelias, e pelos representantes dos grupos das Comadres e dos Compadres. O cortejo vai até ao lugar de Valverde, onde o Sr. Hélio Fernandes, artesão dos bonecos carnavalescos, lhes entrega uma espécie de andor, com a mascote do grupo de género, um boneco, para o grupo das Comadres e uma boneca, para o grupo dos Compadres, feitos de papel colorido com uma instalação pirotécnica. Longe vai o tempo em que os grupos rivais procuravam apoderar-se destas mascotes como trunfo, e os seus esconderijos eram alvo do maior secretismo (OLIVEIRA, 1984, p. 54). Actualmente o secretismo é conservado apenas ao nível da criação dos testamentos e à identificação de quem os vai ler à praça pública, e desta forma representar os grupos de género.

Este testamento é envolvido num grande secretismo para que ninguém saiba. O principal objectivo é brincar com os da nossa idade por isso é que fazemos o testamento. (Paulo Loureiro)12.

Tentamos saber umas pelas outras o que eles andam a fazer. Eles fazem tudo em cima do joelho e também têm muito secretismo, mas também têm linguareiros. (Isabel Loureiro).

O cortejo atravessa a vila, desde Valverde até ao Padrão, e os participantes concentram-se no Largo da antiga Casa do Povo. Os Caretos dançam ao som dos bombos e caixas, em volta da fogueira onde se cozinha a feijoada, enquanto os Compadres e as Comadres se concentram no cimo das escadas da Casa do Povo. Esta pausa, no processo ritual, pretende satisfazer as solicitações de fotógrafos da imprensa regional e de outros representantes da comunicação social que todos os anos acorrem a Lazarim. Também os estudantes universitários e investigadores, estudiosos de festas populares e práticas performativas, provenientes de vários pontos do país e do estrangeiro, contribuem para a heterogeneidade dos observadores da festa, justificando o “capital simbólico” reivindicado pelo poder local.

FIG. 7. Largo da Casa do Povo* FIG. 8. As Comadres e os Compadres*

FIG. 7. Largo da Casa do Povo* FIG. 8. As Comadres e os Compadres*

O grupo das Comadres e dos Compadres são representados por duas raparigas e por dois rapazes, solteiros. Um representante de cada grupo será escolhido para leitor do testamento, e o outro, transporta a mascote; o boneco simbolizando o Compadre e a boneca simbolizando a Comadre. O significado atribuído à representação dos géneros, através da figura dos bonecos, é particularmente relevante, na medida em que as cores das suas roupas e adornos são de uma exuberância que contrasta com o vestuário comum dos membros da comunidade. O que vem reafirmar não se tratar de uma representação simbólica das categorias presentes, mas da utopia, a imagem de um estado futuro (CONNERTON, 1999, p. 50).

O significado deste ritual é mais um gladiar entre homens e mulheres. Nesta altura própria do ano, de se enfrentarem. Do homem se por ao nível da mulher e a mulher ao nível do homem, do rico ao nível do pobre e do pobre ao nível do rico. Ali naquele dia toda a gente muda a sua máscara. Toda a gente se inverte e acho que é esse o significado principal. (Amândio Lourenço)

A ordem que assinala o início do ritual é dada pelos bombos, organizando-se um novo cortejo até ao Largo do Padrão, onde serão lidos os testamentos da Comadre e do Compadre. Os Caretos seguem à frente, seguidos dos representantes dos grupos, e por fim os tocadores e os acompanhantes, população e forasteiros.

O testamento que fazemos às Comadre é deixar-lhes uma peça do burro, … Há partes que a gente gosta mais de dar, ou seja, as partes mais sexuais do burro. (Paulo Loureiro).

E é nesta época que vão ser descritos os defeitos, qualidades não. (Márcia Castro Almeida)13.

No Largo do Padrão foi montado um palco improvisado, onde os Compadres e as Comadres tomam os seus lugares dando início à leitura dos testamentos. O texto do testamento é composto por três partes; a introdução, composta por quadras alusivas ao ciclo do Carnaval e pela identificação da(o) testamenteira(o); as “deixadas” ou quadras dedicadas a todos os rapazes e raparigas solteiras e o final, alusivo ao fim da Comadre e do Compadre, anunciando a morte e rebentamento pelo fogo.

 

Com a fome que trazeis

Passais a vida a ladrar

Comeis a burra inteirinha

Nem a rata vai escapar.

Para manter a tradição

E o Carnaval não findar

Vamos repartir a burra

Para a boca vos calar.

O final de cada verso é sempre sinalizado com o rufar dos bombos. O texto é sarcástico, jocoso e vernáculo, recorrendo ao uso de alguns palavrões e abordando sobretudo os defeitos de carácter e de comportamento, tendo como acentuação a vertente sexual.

Tudo o que a gente diz é verdade, não estamos a inventar nada. Mas eles não têm dificuldade nenhuma em chamar nomes e dizer tu és isto e tu és aquilo. (Isabel Loureiro).

Nós às vezes também exageramos um bocadinho, tudo o que a gente diz não é verdade, às vezes temos de dizer assim umas coisas mais picantes para a gente que vem de fora. Eles só acham graça quando a gente diz coisas picantes mesmo. (Paulo Loureiro).

O texto dos Compadres acentua igualmente os defeitos de carácter e os comportamentos das raparigas, mas tem mais incidência nos aspectos da vida sexual, utilizando uma linguagem mais jocosa, recorrendo ao uso de palavrões e dando-lhe uma forma mais grotesca do que o das Comadres, mas essa construção verbal é construída conscientemente.

Como já estavam há espera

Está cá o fanfarrão

Para dar carninha a todas

E manter a tradição.

A todas vamos dar carne

Pois é isso que elas querem

Não importa de quem seja

Consolar-se elas preferem.

Os testamentos carnavalescos no uso de linguagem jocosa, nas injúrias e nos palavrões, que constituem as “deixadas”, remetem sempre para um paralelismo entre as características do beneficiário e o objecto de partilha. Para os nossos informantes o significado deste ritual é “mais um gladiar entre homens e mulheres”, elegendo como bem de partilha, o burro e a burra, num paralelismo masculino/feminino que acentua as relações sociais e simbólicas entre pares de opostos. A figura do animal parece adquirir um duplo significado: o de símbolo bíblico da humilhação e da docilidade e, a do corpo grotesco cómico decepado, quando valorizadas as partes sexuais, objecto de partilha.

É o Paulo já se vê,

Vai repartir a burrinha,

Fica com a melhor parte,

Essa será a ratinha.

A audiência, composta por pessoas de vários grupos etários, reage pelo riso ao desfilar dos versos, contrastando com a postura séria dos leitores. Os grupos de rapazes e raparigas vão partilhando entre si cumplicidades através da troca de olhares. Também é possível observar que o testamento dos Compadres provoca quase sempre mais gargalhadas na assistência que o das Comadres. Outro aspecto interessante nos textos é a referência a “manter a tradição”, presente em ambos os testamentos, reforçando por fixação e repetição a ideia de continuidade por incorporação, em que os ritmos da poesia oral são os mecanismos privilegiados de recordação (CONNERTON, 1999, p. 88). Após a leitura dos textos é organizado um cortejo, durante o qual a solenidade e contenção são assumidas pelos participantes que se dirigem para o sítio da Cruzinha, em Valverde, onde os bonecos serão consumidos pelo fogo. Os Caretos tomam a dianteira, seguidos dos Compadres e das Comadres. Os tocadores impõem uma batida lenta e compassada, como num cortejo fúnebre, seguidos pela população local e pelos forasteiros.

FIG. 9. Cortejo funebre* FIG. 10. Queima das mascotes*

FIG. 9. Cortejo funebre* FIG. 10. Queima das mascotes*

 

No lugar da Cruzinha, em Valverde, os bonecos armadilhados por efeitos pirotécnicos, vão rodopiando, produzindo ruído e chamas acompanhadas de sucessivas explosões e batidas dos tocadores, até ao estoiro final, provocando na assistência, sobretudo nas crianças, uma enorme alegria e algazarra que perduram na memória.

Recorda-me de gostar de ver o Compadre e a Comadre a andarem a rabiar num arame ou num pau. Logo a seguir ao Natal começávamos a brincar ao Carnaval. Marcou muito a nossa infância em Lazarim. (Norberto Carvalho)

Quando rebentam, para mim representa o encerramento do que de bom se tinha passado para trás, é a morte do Compadre e da Comadre, quer dizer que a partir desse momento a vida volta à normalidade, o Carnaval acaba ali. (Paulo Loureiro)

Em Lazarim a imolação dos bonecos assinala o término do ritual da festa carnavalesca, seguindo-se-lhe o “banquete”, espaço de confraternização entre os membros da comunidade e os forasteiros, através da comensalidade. O rito de passagem está concluído, mas o processo de reinvenção da tradição inseriu novos elementos à festa, o concurso de máscaras. O concurso é organizado pela Casa do Povo para premiar e incentivar os artesãos de máscaras de madeira, e manter a continuidade e a tradição. Este é um dos momentos da festa em que a audiência é essencialmente composta pelos membros da comunidade, artesãos e seus familiares. O júri do concurso é constituído por pessoas convidadas, exteriores à comunidade. Os prémios atribuídos contemplam a melhor máscara no seu conjunto (fato e máscara), a melhor máscara de madeira, a primeira máscara, e prémios de participação, como incentivo e reconhecimento pelo trabalho desenvolvido. Durante o concurso a maior parte dos visitantes dispersa-se pelos lugares onde são oferecidos os “banquetes”.

No Largo da Vila saboreia-se o caldo de farinha, e no Largo da Casa do Povo a feijoada. A história a que remete a origem do banquete comunitário celebra a abundância do grupo social, de tal forma que se permitem a convidar os vizinhos e os forasteiros para o seu banquete. Segundo Bakhtin (1969), o triunfo do banquete é universal, representando o triunfo da vida sobre a morte, sendo nesse aspecto, o equivalente da concepção e do nascimento, em que o corpo vitorioso absorve o corpo vencido e se renova. Desta forma, o Carnaval de Lazarim remete-nos para um contexto rural de formação cristã, e o seu ritual para uma pândega libertadora, onde rapazes e raparigas cumprem o seu papel de herdeiros de uma paródia burlesca.

PARA MANTER A TRADIÇÃO

Ao elegermos como objecto de estudo a festa de terça-feira gorda, recriada como modelo de autenticidade e tradição, correspondemos às expectativas dos organizadores do evento, relativamente ao público-alvo. Os habitantes de Lazarim, sobretudo os agentes culturais e participantes, sabem que a festa atrai uma diversidade de visitantes, fascinados pelas festas populares no mundo rural, para além de investigadores nacionais e estrangeiros, de estudantes universitários e da comunicação social. A afluência de forasteiros constitui motivo de orgulho para a população, justificando que antropólogos e jornalistas sejam reconhecidos como importantes aliados, pelos seus trabalhos contribuírem para a divulgação e legitimação da tradição, e para o prestígio da comunidade à escala nacional e global. Os homens e mulheres que investem persistentemente na transmissão de rituais do passado têm consciência da sua importância para a sua construção identitária, como testemunha Norberto Carvalho:

A terça-feira de Carnaval queríamos conservar, porque é uma identidade própria é alguma coisa que faz parte da nossa identidade e que nos dá algum valor. Somos reconhecidos também por isso. Estamos a tirar alguma riqueza social e intelectual deste tipo de eventos e vamos aproveitá-los dando conhecimento do que se passa aqui em Lazarim ao País e ao Mundo, para deixarmos uma referência para as pessoas que vierem mais tarde.

O discurso institucional justifica as razões que levaram à reinvenção da tradição como património cultural, e a sua importância para a projecção da comunidade. Apesar de haver cada vez menos jovens que garantam a continuidade das práticas carnavalescas em Lazarim, tudo indica que o interesse dos poucos que restam é cada vez maior. Este fenómeno foi igualmente identificado por Paula Godinho (1995), relativamente aos Caretos do Nordeste Transmontano, que após um interregno de alguns anos, e querendo retomar as práticas carnavalescas, recorreram às memórias dos mais velhos, para reconstituir ou “reinventar a tradição”. Além disso, tal como os intervenientes na construção da Festa dos Rapazes, também os jovens de Lazarim “se orgulham de ter presentes na sua festa investigadores, antropólogos portugueses e estrangeiros, museólogos e representantes da comunicação social” (GODINHO, 1995, p. 88). A divulgação da festa, sobretudo nos meios de comunicação social, serve para reforçar a identidade colectiva, projectando a comunidade local no mundo global.

 

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FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

* Fotos da autora realizadas durante o trabalho de campo

FONTES ORAIS:

Adão de Castro Almeida

Afonso de Almeida e Castro

Agostinho Ramalho

Amândio de Castro Lourenço

Elvira Fernandes

Hélio Fernandes

Isabel Loureiro

Joaquim Simões

Joaquim de Almeida Lino

José António da Silva Costa (Costinha)

José Lourenço Rua

Laurinda Vaz Lino

Márcia de Castro Almeida

Maria de Lurdes Castro Lourenço

Norberto Castro Carvalho

Paulo Fernandes

Paulo Loureiro

 

FONTES DOCUMENTAIS

Biblioteca Municipal de Lamego

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Hucitec, Annablume Editora, 5ª Edição. 2002

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Algés: Difel. 2001.

CONNERTON, Paul. Como as Sociedades Recordam, Oeiras: Celta Editora. 1999.

COSTA, Gonçalves M. 1977. História do Bispado e Cidade de Lamego, Vol. I. Lamego. 1977.

CORREIA, Alberto. Máscaras de Carnaval em Lazarim. Lamego: Edição da Câmara Municipal de Lamego. 2003.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas, Rio de Janeiro: Zahar Editores. 1978

GODINHO, Paula. 1995. “Ser rapaz e ir à Festa”, in Actas do Congresso, A Festa Popular em Trás-os-Montes. Bragança, pp. 81-92

HALBWACH, Maurice. A Memória Colectiva. São Paulo: Centauro Editora. 2004.

HOBSBAWM E. & T. RANGER. The Invention of the Tradition. Cambridge: Cambridge University Press. 1983.

LÉVI-STRAUSS, Claude. A Via das Máscaras. Lisboa: Editorial Presença. 1981.

OLIVEIRA, Ernesto Veiga de. Festividades Cíclicas em Portugal, Lisboa: Publicações D. Quixote. 1984.

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[1] Dulce Simões integra a Associação Mural Sonoro, doutorada em Antropologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH/NOVA) e bolseira de Pós-Doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). É investigadora integrada no INET-md e colaboradora do Instituto de História Contemporânea (FCSH/NOVA). É membro fundador do Grupo de Estudios Sociales Aplicados da Universidad de Extremadura (GESSA) e da Red(e) Ibero-Americana Resistência e(y) Memória (RIARM). Realiza investigação em Portugal e Espanha sobre fronteiras, movimentos sociais, usos políticos da memória e práticas da cultura. Participa em projectos de investigação internacionais e multidisciplinares

1  Agostinho Ramalho nasceu em Bigornes em 1964. Os pais eram naturais de Lazarim. É Pároco de Lalim e de Lazarim há cinco anos, onde reside. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 3 de Março de 2003.

2  Norberto Carvalho nasceu em Lazarim em 1961, filho de lavradores e comerciantes. É comerciante e o actual presidente da Junta de Freguesia de Lazarim. Pertenceu ao grupo dos Compadres. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 3 de Março de 2003.

3  José Rua nasceu em Lazarim em 1920 e frequentou o Ensino Primário. O pai foi Juiz de Paz em Lazarim. Dedicou-se à agricultura e aos 24 anos foi trabalhar para Lisboa, na empresa ROMAR, mas regressou a Lazarim para desempenhar as funções de encarregado geral de obras na Câmara Municipal de Lamego, de onde se reformou. Ainda pertence à Tuna de Lamego. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 2 de Março de 2003.

4  Depoimento de Afonso Almeida e Castro. Notas de campo de Março de 2004.

5  Amândio Lourenço nasceu em Lazarim em 1953, filho de lavradores. Tem o Curso Geral de Administração e Comércio é Funcionário Público na Segurança Social de Lamego. Foi Presidente da Junta de Freguesia de Lazarim entre 1983 a 2002. É presidente da Casa do Povo de Lazarim. Excerto da entrevista realizada em sua casa, em Lazarim, a 2 Março de 2003.

 

6  Elvira Fernandes nasceu em Lazarim em 1923, filha de lavradores. Em 1944 casou com José Rua e teve 9 filhos, mas só seis chegaram à idade adulta. Trabalhou no grupo familiar e é doméstica. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 2 de Março de 2003.

 

7  Afonso Almeida e Castro nasceu em Lazarim em 1921, filho de lavradores. O pai foi Regedor em Lazarim. Em 1944 emigrou para o Brasil, trabalhou na pesca, e viveu em Caju, no Rio de Janeiro, onde vivem actualmente os filhos e netos. Regressou a Lazarim em 1970 e dedicou-se à construção de máscaras. É o mais antigo artesão de máscaras de madeira. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 3 de Março de 2003.

 

8  Joaquim Simões foi professor de Educação Visual e Tecnológica (EVT) na Telescola de Lazarim durante 23 anos. Vive em Lamego e é Subdirector da região norte da Telescola. Foi responsável pela recuperação das práticas carnavalescas nas escolas de Lazarim. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 4 de Março de 2003.

 

9  Isabel Loureiro nasceu no Lazarim em 1978, mas migrou com os pais para Lisboa, onde vive actualmente. É escriturária de profissão. Faz parte do grupo das Comadres e todos os anos se desloca a Lazarim para participar na feitura do testamento. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, dia 4 de Março de 2003.

 

10  Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 3 de Março de 2003.

 

11  Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 3 de Março de 2003.

 

12  Paulo Loureiro nasceu em Lazarim em 1977. É filho de comerciantes locais e empresário no ramo de lavandarias em Lamego. Faz parte do grupo dos Compadres desde os 15 anos de idade. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 3 de Março de 2003.

13  Márcia Castro Almeida nasceu em Lazarim em 1981, e é empregada de comércio em Lamego. Faz parte do grupo das Comadres. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 3 de Março, de 2003.


 

 

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Terra dos Pássaros: a permanência de elementos da contracultura na produção de Toninho Horta nos anos de 1970, por Thaís Nicodemo e Rafael Santos

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Terra dos Pássaros: a permanência de elementos da contracultura na produção de Toninho Horta nos anos de 1970, por Thaís Nicodemo e Rafael Santos

por Thaís Nicodemo e Rafael dos Santos

 

 

RESUMO

Esse artigo apresenta uma análise da produção do compositor e instrumentista Toninho Horta, com enfoque em sua atuação ao longo dos anos 1970 e no processo de elaboração de seu disco inaugural, Terra dos Pássaros, lançado de forma independente, em 1979. Tendo como ponto de partida a MPB e os festivais da canção, em fins dos anos 1960, em um contexto marcado pelo regime autoritário e pela consolidação da indústria cultural, procuramos discutir a permanência de elementos ligados à contracultura na produção de Toninho Horta, perceptíveis em seu discurso, em seu processo criativo e no conteúdo de suas canções, durante os anos 1970. Levamos em consideração a correspondência entre sua concepção musical, ligada a uma dimensão lúdica e "informal", com outras produções, como a do chamado Clube da Esquina e do coletivo de poesia Nuvem Cigana, com os quais Toninho Horta estabeleceu relações. O estudo dessas produções pode contribuir para a compreensão de transformações da canção popular brasileira, durante os anos 1970.

Palavras-chave: MPB; Toninho Horta; Clube da Esquina; guitarra; violão; contracultura.

ABSTRACT

This article presents an analysis of the production of the composer and player Toninho Horta, with emphasis on his performance throughout the 1970's and on the process of elaboration of his inaugural record Terra dos Pássaros, which was released independently in 1979. Starting from MPB (Brazilian Popular Music) and the song festivals of the late 1960's, in a context marked by the politics of an authoritarian regime and by the consolidation of the cultural industry, we have attempted to discuss the permanence of elements of counterculture in the production of Toninho Horta. These elements were noticeable in the artist's creative discourse and in the content of his songwriting during the 1970's. We have taken into account the correspondence between his musical conception, linked to a ludic and informal dimension, and other productions such as Clube da Esquina and the poetry collective Nuvem Cigana, with which Toninho Horta established relationships. The study of these production shall contribute to the understanding of the transformations of Brazilian popular song during the 1970's.

Keywords: Brazilian Popular Music; Toninho Horta; Clube da Esquina; eletric guitar; acoustic guitar; counterculture.

 

Thaís Lima NicodemoI; Rafael dos SantosII

IUnicamp, Campinas, SP. thaisnicodemo@gmail.com
IIUnicamp, Campinas, SP. rdsantos@unicamp.br

1- Introdução

Esse artigo1 tem como ponto central o estudo das canções do primeiro disco autoral de Toninho Horta, Terra dos Pássaros2, gravado de forma independente. Buscamos, desse modo, refletir sobre aspectos relativos a seus hábitos composicionais e à sua atuação no cenário da música popular brasileira, durante os anos 1970. Esse foi um período de intensa produtividade artística na trajetória profissional de Toninho Horta e, também, um momento de transição entre sua atividade como músico acompanhador e artista solo.

De modo geral, percebemos que em sua prática musical, tanto como compositor, quanto como instrumentista, há o predomínio de determinados valores ligados à contracultura, tais como a artesanalidade, a espontaneidade e a informalidade. Discutiremos sobre a permanência desses aspectos em sua produção na década de 1970, procurando trazer a lume o panorama de transformações que perpassam a canção popular brasileira desse período, em meio a um regime político autoritário e à consolidação da indústria cultural. Devido ao estreito vínculo que Horta estabeleceu com uma produção cancional consolidada em torno dos festivais televisivos, propomos, primeiramente, analisar particularidades dessa relação, assim como de seu contexto.

 

2- Toninho Horta nos festivais da canção X MPB "engajada"

Toninho Horta despontou profissionalmente em fins dos anos 1960, como guitarrista e violonista, em Belo Horizonte, sua cidade natal. Sobressaiu-se como compositor ao se apresentar em festivais da canção promovidos por emissoras televisivas. Após ter concorrido com duas composições3 no II Festival Internacional da Canção (FIC), da TV Globo, em 1967, o artista ampliou sua projeção, visto que, em um curto intervalo de tempo, outros intérpretes, como Joyce, Roberto Menescal e Nana Caymmi, começaram a gravar suas canções e que logo passou a ser requisitado para atuar como instrumentista em discos e apresentações.

Desde meados dos anos 1960, os festivais da canção foram um dos principais polos de difusão da música popular brasileira, que passou então a ser designada MPB e, como assinala NAPOLITANO (2007, p.94), tornaram-se "o espaço de convergência entre os interesses do mercado e as tarefas ideológicas assumidas pelos músicos engajados e nacionalistas". O ideário nacional-popular que orientava a esquerda4 transpunha-se de certa forma para o conteúdo poético-musical das canções, refletindo a busca pela construção de uma identidade nacional através de uma arte participante. O repertório de canções promovido nos festivais passou, também, a desempenhar o papel de porta-voz da resistência ao regime autoritário5. Esses aspectos coexistiam com a ascensão de uma cultura de consumo, resultante da consolidação da indústria cultural como um todo, em meio ao processo de internacionalização do capital no país, impulsionado pelo governo militar. A MPB se articulou, portanto, em um jogo ambíguo, no qual representava os ideais de oposição e conscientização política através da cultura, ao mesmo tempo em que se firmava como um produto privilegiado no mercado de bens simbólicos.

Embora participasse de festivais, concorrendo com canções de sua autoria, Toninho Horta mostrava-se aparentemente avesso às questões político-ideológicas que balizavam a MPB. É possível notar essa característica tanto no conteúdo de suas composições desse período, como Litoral (Toninho Horta/ Ronaldo Bastos) e Yarabela (Toninho Horta), nas quais prevaleciam temas ligados à natureza e ao amor, com referências musicais preponderantemente bossanovistas, assim como em seu discurso: "(...) naquela época, tinha essa efervescência cultural, uma coisa política. Política eu nunca dei bola. Até naquela em 1968, que teve a Passeata dos Cem Mil. 'Aí, Toninho, vai na passeata?' 'Não, vou dormir' "6. Sua atitude de "descaso" pode ser relacionada com as reverberações da contracultura no Brasil, que ecoavam, principalmente, através do surgimento de uma movimentação cultural jovem, contrária ao "universo da cultura canonizada oficial, e dos comportamentos socialmente sancionados" (RISÉRIO, 2005, p.29). A contracultura repercutiu em diversos setores da produção cultural, como na imprensa alternativa, com os jornais O Pasquim, Flor do Mal e Bondinho, no Cinema Novo, nas artes plásticas, em obras de Hélio Oiticica e Cildo Meireles, na literatura, na música, com os grupos Os Mutantes e os Novos Baianos.

Essas produções tinham em comum a busca por uma "nova forma de pensar o mundo", rompendo com "a lógica racionalizante da esquerda e da direita (HOLLANDA, 2004, p.78). Conforme destaca RISÉRIO (2005, p.26), o movimento contracultural se distinguia pelo anticapitalismo, pelo anti-intelectualismo, pelo antitecnicismo e pela recusa aos padrões de bom comportamento social. Nesse sentido, a contracultura refletiu, em escala mundial, uma reação às condições impostas pelas transformações estruturais ligadas ao desenvolvimento capitalista e ao processo de modernização. Assim, a recusa explícita da fala de Toninho Horta, como aparente "alienação", não deixa de ser uma forma consciente de assumir um posicionamento crítico, opondo-se em relação aos espectros significativos da MPB.

No que se refere ao círculo dos festivais, a produção tropicalista trouxe à tona os ideais da contracultura e dos movimentos jovens que irradiavam dos EUA e Europa. O tropicalismo sinalizava, também, a crise do referencial nacional-popular que norteava a MPB, incorporando, sobretudo por meio de procedimentos satíricos, paródicos e alegóricos, a crítica ao discurso populista, além de elementos da cultura de massa (HOLLANDA, 2004, pp.63, 64), repudiados então pela esquerda anti-imperialista.

A crença nos ideais de transformações sociais e políticas se contrapunha a um distanciamento cada vez maior do acesso direto aos segmentos populares da sociedade, ao mesmo tempo em que os sinais de "engajamento" da MPB se diluíam em seu caráter de produto de consumo. O questionamento em relação a esses aspectos crescia, também, à medida em que se acentuavam o autoritarismo e a institucionalização do governo militar, agudizados com o recrudescimento da repressão após o decreto do AI-5, em 1968. Como aponta HOLLANDA (idem p.99), surgia, nesse período, uma geração que passava a recusar "os pressupostos do engajamento populista e vanguardista e mais exposta à influência pós-tropicalista, sem contudo identificar-se com essa tendência". Podemos considerar Toninho Horta um personagem chave desse processo, que transitou à margem do "sistema", engendrando uma produção de caráter "alternativo", atrelada a um conceito mais artesanal de criação, como veremos mais adiante. Essa característica se torna mais evidente ao longo dos anos 1970, com sua participação no LP Clube da Esquina (Milton NASCIMENTO, Lô BORGES, 1972), assim como em outros discos lançados por Milton Nascimento e, principalmente, no processo de elaboração de seu disco inaugural, Terra dos Pássaros.

 

3- Milton Nascimento e o Clube da Esquina nos anos 1970

No final da década de 1960, Milton Nascimento, convidou Toninho Horta para acompanhá-lo, tocando violão e guitarra, no disco Milton Nascimento (Milton NASCIMENTO, 1969), além de ter gravado seu samba Aqui, Ó! (Toninho Horta e Fernando Brant). No decorrer de toda a década seguinte, Horta atuou como instrumentista em shows e discos desse artista e teve canções de sua autoria gravadas por ele. Em 1972, Horta participou da gravação do álbum Clube da Esquina, que simboliza um dos marcos iniciais de uma proposta coletiva de criação, promovida por Milton Nascimento. O nome de duas canções que esse último escreveu em parceria com Lô e Márcio Borges, e de dois discos - Clube da Esquina e Clube da Esquina nº2 - foi utilizado com o passar dos anos para se referir a um grupo de compositores, arranjadores, letristas, instrumentistas e intérpretes, que produziu um significativo repertório de canções ao longo da década de 1970. Musicalmente, o Clube da Esquina incorporou as novas tendências trazidas pelo tropicalismo, assimilando diferentes vertentes culturais como o rock, o rock progressivo, a bossa nova, o psicodelismo, a sonoridade orquestral, a música mineira de origem africana, a música sacra e a música hispânica.

A concepção conjunta do álbum Clube da Esquina se deu desde sua pré-realização, durante uma temporada em uma casa na praia de Piratininga (Niterói, RJ), onde seus integrantes compunham e ensaiavam as canções, até sua gravação nos estúdios da EMI-Odeon. Apesar de ter permanecido por apenas um dia na casa de praia, durante as gravações, Toninho Horta tocou guitarra, violão, percussão, contrabaixo e cantou no coro de algumas canções. O artista esclarece que durante as gravações havia instrumentistas que estavam no bar, ou que ainda estavam dormindo e, assim, os músicos presentes no estúdio tocavam seus instrumentos principais e, também outros, conforme a necessidade do momento7. Como é possível notar nessas descrições, o processo de criação do Clube da Esquina é ligado à características contraculturais, relativas à grande importância conferida ao senso coletivo de elaboração musical e à espontaneidade que a envolvem. A atividade musical desse grupo se relaciona, de maneira geral, a uma dimensão lúdica, que foge do modelo mercadológico de produtividade, conforme observa GARCIA (2000, pp.113, 114), sublinhando o referencial de práticas musicais "informais" diversas, ligadas ao ritual, à tradição oral, ou à improvisação, transposto para essa produção:

Genericamente, a distância crítica do Clube em relação a certas estratégias discursivas dos meios de massa não se deu através de ironia e auto-ironia, como fariam os Beatles ou os Mutantes. Sua recusa explícita da eficiência produtivista vinha através da afirmação da dimensão lúdica e informal da música. Suspeito que se trata aqui de "tradições" que informam o trabalho dos músicos de dimensões sociais que se recusam à diluição no fetiche da mercadoria. Pode-se pensar em seu papel ritual (ligado à tradição religiosa), em sua dimensão lúdica e desinteressada, ligada à jam session jazzística, às serenatas e rodas de violão, em seu caráter narrativo (próprio das músicas populares) (...).

Entretanto, é importante frisar que apesar de se afastarem por meio de seus discursos e atitudes dos modelos de criação e produtividade capitalistas, enfatizando o caráter grupal e artesanal de sua obra, havia por trás desses artistas grandes esquemas de produção, endossados por gravadoras multinacionais. O disco Clube da Esquina foi lançado como um álbum duplo pela EMI-Odeon, representando um investimento ousado para a gravadora, registrado em estúdio de grande porte, com a participação de orquestra e de um elevado número de instrumentistas8.

É importante lembrar que, desde meados dos anos 1960, as gravadoras passaram a constituir elencos fixos de artistas ligados à MPB, que mantinham uma vendagem regular de discos, gerando um lucro mais garantido e duradouro em comparação à faixa de artistas considerados "comerciais", que obtinham sucesso explosivo, porém efêmero. Por essa razão, músicos da MPB gozavam de maior autonomia em suas produções, beneficiando-se com investimentos de alto custo por parte das gravadoras, como é o caso de Milton Nascimento. Nesse sentido, havia uma certa "liberdade" de criação, que resultava em álbuns "mais acabados, complexos e sofisticados" (NAPOLITANO: 2002, p.5). Tanto o elevado custo de produção do LP Clube da Esquina, como a relevância de sua vendagem9 denotam uma contradição na relação recusa X inserção de seus integrantes diante do funcionamento da indústria cultural.

Toninho Horta também não estava fora da lógica da indústria fonográfica, basta atentar para sua atuação como instrumentista nos anos 1970. Isso fica evidente, tendo em vista sua elevada e frequente produtividade discográfica, nessa década, como músico acompanhador em álbuns de artistas de prestígio da música popular brasileira, ligados à grandes gravadoras, como Elis Regina, Milton Nascimento, João Bosco, Edu Lobo, Airto Moreira, Taiguara, Sidney Miller, Flora Purim, Nana Caymmi, Gal Costa, Simone, Sérgio Mendes, Boca Livre, dentre outros. Horta teve, também, suas canções gravadas por artistas como Nana Caymmi, Paulo Moura, Simone, MPB-4 e Sueli Costa. Toninho Horta possuía considerável inserção nos grandes esquemas de gravação, como instrumentista, em discos de MPB, ao mesmo tempo em que, ao decidir gravar seu primeiro álbum autoral, Terra dos Pássaros, experimentou as consequências da nova dinâmica de estruturação da indústria fonográfica que se estabelecia.

 

4- Terra dos Pássaros e a cena independente

Ao longo dos anos 1970, a indústria de discos passou por uma crescente racionalização de seu funcionamento, que envolveu a divisão e a especialização de diversas áreas, como produção, marketing e distribuição, além de seu significativo aperfeiçoamento tecnológico. Esse novo perfil de gestão empresarial buscava reduzir cada vez mais a imprevisibilidade do mercado e otimizar o lucro (MULLER, 2005, p.19), o que implicou no estreitamento do espaço destinado a novos artistas. Esses deviam ser avaliados por produtores e pelo departamento de marketing, e passaram a ser considerados investimentos arriscados por essas empresas. Em reação a esse novo contexto, começaram a despontar atitudes independentes de artistas que não obtinham o aval das grandes gravadoras, como observa TATIT (2007, p.123):

Marginalizados por este panorama fortemente cristalizado e rendoso para os grupos financeiros e, ao mesmo tempo cômodo e farto para os artistas já eleitos, alguns novos compositores e músicos, depois de muito tempo de trabalho (alguns com mais de dez anos) sem a possibilidade de registro e divulgação, iniciaram um processo de contra-ataque à ação das gravadoras.

Ao longo dos anos 1970 e, principalmente no final da década, um considerável contingente de artistas, como Antônio Adolfo, João Donato, Danilo Caymmi, Arrigo Barnabé, Luli & Lucinha, Marlui Miranda, o grupo Boca Livre, Joyce, Maurício Maestro e Tom Jobim, optou por gerir a produção de seus próprios trabalhos. No caso de Toninho Horta, o processo de elaboração de seu primeiro disco autoral teve início com sua participação como instrumentista nos álbuns Milton (Milton NASCIMENTO, 1976) e Promises of the Sun (Airto MOREIRA, 1976), nos Estados Unidos. As gravações do álbum Milton terminaram antes do tempo previsto, com horas de estúdio e fitas de gravação já pagas a serem utilizadas. Milton Nascimento cedeu o material remanescente a Toninho Horta, que começou a registrar suas canções. O letrista Ronaldo Bastos, produtor do disco de Milton Nascimento, associou-se a Horta na idealização e na produção de seu disco. Os mesmos músicos que tocaram no álbum Milton, como Raul de Souza (trombone), Robertinho Silva (bateira/ percussão), Airto Moreira (bateria/ percussão), Laudir de Oliveira (percussão), Novelli (contrabaixo) e Hugo Fattoruso (piano/ órgão/ sintetizadores), gravaram as bases de Terra dos Pássaros. Além dos músicos citados, Milton Nascimento cantou em duas faixas. Com essa ajuda inicial, Toninho Horta registrou as bases das canções e, junto com Ronaldo Bastos, retornou ao Brasil para apresentar o projeto a algumas gravadoras, que recusaram a proposta, devido à imprevisibilidade lucrativa da produção. Mesmo assim, decidiu dar continuidade à gravação de forma independente, entre julho de 1976 e setembro de 1979, destinando, paulatinamente, seus recursos financeiros para a realização do disco e acrescentando, aos poucos, instrumentos e detalhes às músicas10.

Como era comum a muitos produtores independentes, Toninho Horta participou de todas as etapas de concepção de seu álbum, desde a composição e a execução das músicas, arranjos e regência, até registro de fotos, concepção da capa e mixagem. Em quase todas as faixas, sobrepôs-se tocando mais de um instrumento, como violão, guitarra, baixo elétrico, piano elétrico, órgão, percussão e vocais. Esse método de produção reforça um caráter artesanal, se distanciando da racionabilidade do funcionamento da indústria fonográfica. Nesse sentido, pode-se considerar que a postura autônoma assumida por Horta e outros artistas remete à atitude contracultural que marcou o início da década, como chama a atenção NAPOLITANO (2006, p.125):

Culturalmente falando, os independentes seguiam a tradição dos malditos e do desbunde, marcas da cultura jovem underground do início dos anos 1970. A abertura para o humor, as ousadias formais e a recusa dos grandes esquemas de produção e distribuição do produto cultural foram incorporadas como herança do início da década.

A permanência do caráter contracultural na produção inaugural de Toninho Horta se evidencia, tanto na maneira como seu disco foi concebido, quanto no conteúdo poético e musical de suas canções. É possível perceber a valorização da espontaneidade, da experiência de criação artesanal e grupal, de elementos ligados ao um universo bucólico, idílico e sentimental. Esses aspectos são reforçados no texto escrito por Toninho Horta para o encarte de Terra dos Pássaros, no qual o artista procura poetizar a vivência em torno da confecção do disco, subentendendo a busca da "arte pela arte". Vale reproduzir o texto completo para uma melhor compreensão desses aspectos:

Este disco conseguiu povoar meus pensamentos nestes últimos três anos e sobreviver a todo tipo de alegrias e dificuldades, mas a variedade de condições de trabalho não impediu o desejo de realizar um disco como sempre idealizei. Com muita liberdade, ele se desenvolveu paralelo à minha maturidade como ser humano. As canções cantadas no final de uma juventude podem hoje representar apenas o registro de um sonho que custou a se realizar: a voz em Diana era só de guia e ficou definitiva com o passar do tempo. Não havia razão para tentar cantar outra vez, anos depois, mesmo que viesse melhorar a qualidade técnica, a dicção e o volume de som. Toda a emoção do início do disco, o Bituca [Milton Nascimento] dando as fitas pra gente, a porta sempre aberta, o mar através dos janelões do estúdio, cachorros entrando e saindo, todo esse clima estava na voz de Diana. Eu comecei despretensiosamente a gravar uma fita onde tocava e cantava minhas músicas, sem pensar que seria o princípio de uma aventura. Os amigos apareciam para visitar e acabavam gravando, as ideias iam fluindo e a gente estava partindo naturalmente para fazer um disco com produção própria sem cogitar as dificuldades que viriam pela frente. [grifos nossos]

Nota-se que Toninho Horta utiliza palavras como "sonho", "liberdade" e "aventura" para se referir à gravação do disco, ressaltando a espontaneidade e a informalidade que a envolveram, como na escolha por manter a "voz guia" na versão definitiva da canção Diana (Toninho Horta/ Fernando Brant), por conter a emoção do momento em que foi registrada. Descreve o ambiente do estúdio, como um lugar em que a porta estava sempre aberta, com cachorros entrando e saindo, de onde se via o mar, onde recebia a visita de amigos que acabavam gravando por "acaso", em um processo "despretensioso" e "natural". Horta foge de elos de ordem profissional, vinculando seu fazer musical à relações informais e espontâneas. Muitas dessas características se traspõem para o conteúdo das canções gravadas, como Diana, Pedra da Lua (Toninho Horta/ Cacaso), Viver de Amor (Toninho Horta/ Ronaldo Bastos), Beijo Partido (Toninho Horta), Serenade (Toninho Horta/ Ronaldo Bastos) e Céu de Brasília Toninho Horta/ Fernando Brant).

Não por acaso, as atitudes contraculturais de Toninho Horta se alinhavam com outras produções desse mesmo período. Além da já mencionada relação com o Clube da Esquina, chamamos a atenção para a ligação com o coletivo de literatura Nuvem Cigana. Esse grupo trazia em seus textos poéticos uma linguagem associada à experiência imediata, ao cotidiano, à artesanalidade, independente de comprometimentos programáticos (HOLLANDA: 2004, p.109). Ronaldo Bastos, poeta, letrista e produtor, e Cafi, fotógrafo, membros do Nuvem Cigana, tiveram, também, uma significativa participação no disco Terra dos Pássaros e na produção ligada ao Clube da Esquina. Conforme destaca HOLLANDA (2004, p.107), essas produções buscavam atuar no modo de produção, procurando subverter as relações estabelecidas pela indústria cultural. No poema a seguir, de Chacal (COHN, 2007, p.163), membro do Nuvem Cigana, é possível notar alguns desses propósitos:

in-constante

a 1

a 2

a 3x 4

20 anos recolhido

 

chegou a hora de amar desesperadamente

  apaixonadamente

  descontroladamente

chegou a hora de mudar o estilo

 

de mudar o vestido

chegou atrasada como um trem atrasado

mas que chega

O poema é marcado pela linguagem informal, pela valorização da experiência imediata e cotidiana, e da fruição do amor.

Vale ressaltar ainda, a presença do poeta Antonio Carlos de Brito, conhecido como Cacaso, um dos principais representantes da poesia chamada marginal, como letrista no Clube da Esquina e como parceiro de Toninho Horta em suas canções. No poema abaixo, Cacaso lança os propósitos que permeiam sua produção artística evidenciando o elo entre a vivência e o próprio ato de escrever poesia - esses se confundem, trazendo a poesia para o plano da experiência cotidiana.

Na corda bamba

Poesia
Eu não te escrevo
Eu te vivo
E viva nós!

Essas convergências evidenciam a correspondência existente entre diferentes formas de expressão artística que marcaram a cultura jovem dos anos 1970 que, desde a virada da década, passou a mobilizar-se em circuitos marginais, consolidando formas de produções alternativas à cultura oficial e à cultura ligada ao ideal nacional-popular, como observa HOLLANDA (idem, p.107):

No teatro aparecem os grupos "não empresariais", destacando-se o Asdrúbal Trouxe o Trombone; na música popular, os grupos mambembes de rock, chorinho, etc.; no cinema surgem as pequenas produções, preferencialmente os filmes em "Super-8" e, em literatura, a produção em livrinhos mimeografados. Todas essas manifestações criam seu próprio circuito - não dependem, portanto, da chancela oficial, seja do Estado ou das empresas privadas - e enfatizam o caráter de grupo e artesanal de suas experiências.

Ainda que tenha realizado seu disco de forma independente, após ter finalizado as gravações de Terra dos Pássaros, Horta conseguiu um acordo com a gravadora EMI-Odeon, que propôs a gravação de um novo álbum, comprometendo-se a prensar, distribuir e licenciar seu disco inaugural. O desenvolvimento das tecnologias de gravação e a redução de custos desses recursos permitiram que a qualidade do produto final de produções autônomas se equiparasse com o padrão de qualidade previsto pelo mercado. No entanto, os independentes encontravam dificuldades, principalmente, na reprodução, marketing e distribuição de seus produtos. As grandes gravadoras encarregaram-se destas etapas, passando a incorporar a diversidade musical excedente, ao estabelecer associações com artistas ou selos independentes. Nessa relação, de certa forma, contraditória, artistas e pequenas empresas se transformaram em provedores de produtos acabados às grandes gravadoras, que encontraram uma maneira de testar as produções, assumindo investimentos de forma mais segura e diminuindo suas despesas. Assim, pode-se falar em um quadro de complementaridade que passou a existir entre a produção independente e as grandes gravadoras (DIAS, 2000, p.129)

 

5- Concepção musical

Embora tenha se aprimorado tecnicamente ao longo dos anos que ultrapassam as demarcações desse trabalho, notamos que desde seu primeiro disco autoral, Toninho Horta possui uma concepção integrada de composição, podendo-se considerar a pluralidade uma das principais marcas distintivas de seu processo criativo. Suas composições possuem harmonias elaboradas, longas introduções instrumentais e interlúdios, e são permeadas por improvisos e contracantos, que dialogam, também, com os arranjos de base e orquestrais e com o conteúdo poético das letras. Essa particularidade é bastante aparente no álbum Terra dos Pássaros pelo fato de Horta ter participado de todas as etapas de criação, tocando diversos instrumentos, elaborando os arranjos de base e orquestrais e cantando.

Essa característica também se alinha, de modo geral, com a concepção que perpassa a produção ligada ao Clube da Esquina. Apesar de serem produções marcadamente cancionais, possuem um forte vínculo com a música instrumental. Nos álbuns de Milton Nascimento e, também, dos demais integrantes do Clube da Esquina, percebemos essa relação através da presença constante de arranjos com formações orquestrais, seções instrumentais e seções de improvisos. Em sua dissertação sobre a sonoridade específica do Clube da Esquina, NUNES (2005, p.97) discute a inseparabilidade dos elementos instrumentais nas canções produzidas pelo grupo:

No grupo, composição e arranjo estão bem interligados. Recursos do tipo modulação, ampliação harmônica, contraste entre seções, geralmente utilizados por arranjadores para incrementar composições são características musicais recorrentes nas composições do grupo. Para o intérprete que pretende gravar este repertório, esta forte ligação entre composição e arranjo apresenta uma série de dificuldades, pois restringe as possibilidades de alteração da versão original. Um outro fator limitante diz respeito ao timbre. Violão, guitarra, viola caipira, órgão, piano, baixo, bateria, voz, vocais, percussão, orquestra criam cores e combinações que, somadas a superposições instrumentais, resultam em uma grande densidade sonora (...).

Tanto a integração da canção com o arranjo, como a alta densidade sonora, proporcionada pela soma de timbres diversos, que demarcam a produção do Clube da Esquina, distinguem a concepção composicional de Toninho Horta. Outro aspecto relevante de seu pensamento musical é a forte ligação com a canção, embora tenha adquirido grande reconhecimento de público e mídia por seus atributos de instrumentista. Horta dedicou-se à música instrumental em discos lançados durante o período em que viveu nos Estados Unidos, entre o final da década de 1980 e o final dos anos 1990, no entanto, a canção predomina como opção estética em seus discos autorais. Esse aspecto pode estar relacionado com sua maneira de compor. Conforme sua própria descrição, toca os acordes e o acompanhamento rítmico ao violão, enquanto canta as melodias em vocalize:

Nunca desenvolvi o lado de violão solo, sempre preferi utilizar a voz. Para compor eu canto as melodias junto com os acordes, então acabei virando cantor. Acho que isso virou uma marca do meu trabalho, esses vocalizes que faço. (HORTA, Toninho. In: GOMES & CARRILHO, 2007, p.25)

O uso da voz no ato da composição restringe o contorno das melodias às possibilidades técnicas vocais. Notamos que nas músicas gravadas no disco Terra dos Pássaros, o âmbito das melodias corresponde, possivelmente, à capacidade vocal do compositor, limitando-se ao máximo em duas oitavas de extensão. Além disso, o uso recorrente da mesma região harmônica nas tonalidades empregadas nas canções pode estar relacionado com sua região de abrangência vocal. No entanto, essas características não reduzem sua inventividade melódica em suas composições, que são, muitas vezes, de difícil execução técnica devido ao emprego frequente de dissonâncias, que geralmente são extensões dos acordes utilizados no acompanhamento, além de modulações, saltos intervalares e cromatismos.

O emprego de recursos idiomáticos ao violão representa um significativo componente da concepção musical de Horta. Ele utiliza aberturas de acordes pouco comuns e um pensamento harmônico ligado à condução de vozes, que contribuem para escolhas de caminhos inesperados, combinados a movimentos cadenciais mais comuns. A harmonia de suas músicas é predominantemente constituída por acordes que, geralmente, possuem cinco ou seis vozes, tocados com o uso de pestanas específicas e por acordes com cordas soltas, com o emprego constante de 7as, 9as, 11as e 13as e caracteriza-se pelo uso de campos harmônicos ampliados, com acordes não-diatônicos, provenientes de empréstimos modais, de meios de preparação secundários e estendidos, modulações, além do uso recorrente de dominantes substitutos.

Para uma melhor compreensão dos elementos que demarcam a produção de Toninho Horta, propomos a análise musical e poética de uma das canções gravadas no disco Terra dos Pássaros.

5.1 - Análise de Céu de Brasília (Toninho Horta/ Fernando Brant)

A canção Céu de Brasília (Toninho Horta/ Fernando Brant), primeira faixa de Terra dos Pássaros, ilustra poética e musicalmente as perspectivas contraculturais e a concepção criativa que caracterizam a produção de Toninho Horta nos anos 1970. Nessa canção, que pode ser considerada um rock progressivo, prevalece a imagem onírica de um personagem, que em um arroubo de "bebedeira louca, ou lucidez", sobrevoa Brasília, deixando de lado a cidade grande e o mundo solitário e produtivista do trabalho, indo ao encontro da vida bucólica, da natureza, conforme a letra a seguir:

A cidade acalmou
Logo depois das dez
Nas janelas a fria luz
Da televisão divertindo as famílias
Saio pela noite andando nas ruas parte A

  

Lá vou eu pelo ar
Asas de avião
Me esquecendo da solidão
Da cidade grande do mundo dos homens
Num voo maluco que eu vou inventando parte A

  

E voo até ver nascer
O mato, o sol da manhã
As folhas, os rios, o azul
Beleza bonita de ver parte B

  

Nada existe como o azul sem manchas
Do céu do planalto central
E o horizonte imenso aberto
Sugerindo mil direções
E eu nem quero saber
Se foi bebedeira louca ou lucidez parte C

A temática dessa canção, escrita em 197411, converge para os ideais difundidos pela contracultura no que se refere ao "retorno à natureza" que, conforme destaca RISÉRIO (2005, p.27), retomou o romantismo literário dos séculos XVIII e XIX, exaltando a contemplação e a harmonia e celebrando "o mito da pureza do ser humano em contato com o mundo natural (...)". Esse imaginário se opunha à "alienação trabalhista" e ao "pragmatismo cientifista", como fica evidente na letra, na qual o eu lírico exprime a busca pelo mundo idílico: "me esquecendo da solidão/ da cidade grande do mundo dos homens/ (...) voo até ver nascer/ o mato, o sol da manhã (...)".

Alguns elementos musicais também podem ser associados ao caráter de "liberdade" da canção, como a estrutura formal irregular, constituída por parte A, com 10 compassos, parte B, com 8 compassos e parte C, com 11 compassos. Há ainda o uso de mudanças de fórmula de compasso, na introdução e na Coda, de 4/4 para 7/8 e ao longo da composição, de 4/4 para 2/4. Essas mudanças contribuem para uma "quebra" da expectativa da regularidade rítmica da canção, como pode-se observar no Ex.1 abaixo:

 


Ex. 1 - Clique para ampliar

 

A harmonia possui uma relação intrínseca com a afinação específica das cordas do violão. Horta lança mão do recurso da scordatura, utilizando uma afinação pouco comum, ao mudar o som da segunda corda, si, para sol sustenido, um tom e meio abaixo, gerando um intervalo de segunda menor entre a segunda e a terceira cordas. O uso constante da corda mi solta, somado à mudança da afinação, proporciona acordes de cinco e seis vozes, com a presença frequente de intervalos de segundas, maiores ou menores, como é possível perceber no Ex.2, a seguir12:

 

A atipicidade das aberturas empregadas ao violão se equipara ao pensamento antitecnicista e à valorização da espontaneidade de criação, recorrentes em sua atividade musical. Se por um lado o autodidatismo pode limitar o conhecimento musical e técnico, por outro permite a criatividade e o desenvolvimento de linguagens peculiares. A recusa às formas tradicionais de conhecimento na prática musical de Toninho Horta se alinha aos ideais da contracultura, que prezam pelo distanciamento do pensamento acadêmico e intelectual. É possível perceber em seu discurso a ênfase dada à liberdade de criação e à "autenticidade", que perpassam, de modo geral, sua produção:

exatamente porque eu queria ser meio liberto (...) de estudar as mesmas coisas que todo mundo, então eu sempre fui muito solto. (...) Eu desenvolvi a harmonia e uma concepção muito própria em cima de tudo o que eu gostava, que eram as orquestras, que era a improvisação, a liberdade de criar (...). [grifos nossos] (Violões de Minas, 2007, 1DVD, 9'12" - 11'40")

No que se refere ao arranjo, a orquestra desempenha ora função contrapontística, ora de sustentação sonora, sobressaindo-se nos momentos mais conclusivos da letra, como na parte C, onde a dinâmica atinge seu ápice. Nesse momento, as linhas melódicas, em frequências agudas, executadas em dinâmica forte pela orquestra, unem-se à melodia principal e correspondem ao conteúdo poético da letra, que sugere imagens do céu, da imensidão, do horizonte. Esse arranjo revela, também, a alta densidade sonora que distingue a produção de Toninho Horta, assim como a do Clube da Esquina, mencionada anteriormente. Sobrepõem-se os sons de bateria, contrabaixo, guitarra elétrica com distorção, violão, sintetizador, voz, oboé, flauta e orquestra de cordas, formada por violoncelos, violinos e violas.

A melodia de Céu de Brasília é marcada por indicativos passionais, segundo a sistematização sugerida por TATIT (2002, p.23), na qual define a passionalização pela continuidade melódica, decorrente do prolongamento das vogais, da desaceleração do andamento, da extensão da melodia, dos saltos intervalares e da exploração das frequências agudas.

A dominância da passionalização desvia a tensão para o nível psíquico. A ampliação da frequência e da duração valoriza a sonoridade das vogais, tornando a melodia mais lenta e contínua. A tensão da emissão mais aguda e prolongada das notas convida o ouvinte para uma inação. Sugere, antes, uma vivência introspectiva de seu estado. Daqui nasce a paixão que, em geral, já vem relatada na narrativa do texto. Por isso, a passionalização melódica é um campo sonoro propício às tensões ocasionadas pela desunião amorosa ou pelo sentimento de falta de um objeto de desejo.

De todas as canções do disco Terra dos Pássaros, essa é a que possui a maior extensão melódica, com o âmbito de duas oitavas. Sua melodia é de difícil execução vocal devido à presença de notas não harmônicas que sublinham as extensões dos acordes, de saltos intervalares ascendentes e descendentes e de tríades e tétrades arpejados. Esses elementos correspondem ao conteúdo da letra e se evidenciam, principalmente, na parte C da canção - o momento de maior exaltação do sujeito ao encontrar a natureza acontece ao mesmo tempo em que a extensão melódica atinge seu ápice. No Ex.3, é possível notar o uso de recursos passionais, na parte C, com saltos intervalares e arpejos de acordes, além do prolongamento das vogais nos finais das frases e do alcance da nota mais aguda (lá), percorrendo toda a extensão melódica da canção, até chegar na nota (si), no final da seção:

A integração dos elementos musicais e poéticos passionalizantes de Céu de Brasília somada à cumplicidade interpretativa de Toninho Horta, traduzem ao ouvinte seu caráter tensivo, que, segundo Tatit, busca trazer "o ouvinte para o estado em que se encontra" (idem, p.10).

 

6- Elementos contraculturais em outras canções

A realidade simbolizada nas canções de Toninho Horta faz alusão à vida familiar, cotidiana, figurando uma representação nostálgica da vida, figurando um mundo idílico e sentimental. Essas características estão presentes em todas as composições do disco Terra dos Pássaros, como pontuamos brevemente, a seguir13:

Diana (Toninho Horta/ Fernando Brant): o interlocutor se dirige a uma cachorra, que faleceu: "velha amiga, eu volto à nossa casa/ já não te encontro alegre, quase humana". O ambiente da casa e a vivência cotidiana de seus frequentadores são tomados pelo vazio decorrente de sua ausência: "almoço aos domingos, a velha farra/ (...) fica a ausência branca e marrom/ e uma tristeza milenar".

Dona Olímpia (Toninho Horta/ Ronaldo Bastos): no arranjo, tocado ad libitum, Horta coloca em primeiro plano a gravação do discurso de Olympia Angélica de Almeida Cotta, D. Olímpia, personagem abandonou sua vida economicamente privilegiada para viver nas ruas de Ouro Preto, nos anos 1960. Em seu discurso nostálgico, D. Olímpia descreve ter escolhido viver como uma mendiga, buscando cumprir uma promessa, com a qual pretendia "socorrer os pobres" e "fazer valer" a sua pessoa. No final de seu depoimento emociona-se e chora.

Pedra da Lua (Toninho Horta/ Cacaso): seu conteúdo poético fragmentado imprime ce em à figura da mãe e à infância do interlocutor, como é possível notar nos versos "minha mãe calma e serena", "minha mãe no seu piano", "menino levante cedo/ menino não chegue tarde".

Serenade (Toninho Horta/ Ronaldo Bastos): nessa canção sentimental, o enunciador faz um convite para o amor impulsivo e livre: "vem comigo/ você pode até se arrepender", "deixa o coração bater".

Falso Inglês (Toninho Horta/ Fernando Brant): a letra dessa canção apresenta um personagem cantor, que, incapaz de compreender o idioma inglês, inventa à sua própria maneira palavras que imitam o som dessa língua. A organização do texto corresponde a um tipo de metalinguagem da canção, na qual seu conteúdo poético é utilizado para explicar os procedimentos empregados na elaboração da própria canção. No refrão e no final da gravação, apresentam-se versos sem significado, que evidenciam as experiências narradas pelo enunciador ao longo da canção: "no rádio eu sempre ouvi/ mas não entendia nada de inglês/ mas eu guardava o som/ toda a melodia sem poder cantar/ eu tinha que inventar um jeito de cantar inglês".

Beijo Partido (Toninho Horta): essa uma canção ligada ao sentimentalismo. Seu conteúdo poético trata da desilusão amorosa.

No Carnaval (Caetano Veloso/ Jota): nessa letra de Caetano Veloso, a temática se volta para a história de um amor efêmero de Carnaval: "no coração, meu tamborim/ o amor cresce em samba assim", e quando o amor chega ao fim, modifica os versos para: "no coração, meu tamborim/ o amor chora um samba assim".

Além das canções do disco Terra dos Pássaros, diversas composições de Horta são marcadas por um conteúdo ligado ao sentimentalismo, à natureza e às experiências do cotidiano. Alguns exemplos são: Manuel, o Audaz (Toninho Horta e Fernando Brant), sobre as viagens a bordo de um jipe, em busca da natureza; Meu Canário Vizinho Azul (Toninho Horta), sobre a morte de um canário; Minha Casa (Toninho Horta), que retrata cenas do cotidiano; Caso Antigo (Toninho Horta, Ronaldo Bastos e Fernando Brant), que trata sobre a espontaneidade do amor. Como mencionamos, os temas abordados nas canções de Horta pertencem a um universo comum, ligado ao cotidiano e a um mundo idílico.

 

6- Considerações finais

A atuação de Toninho Horta ao longo dos anos 1970, ajuda a elucidar o surgimento de vertentes contraculturais, sobretudo pós-tropicalistas, que demarcaram uma nova produção cultural brasileira. Na âmbito da canção popular, essas produções distanciavam-se dos pressupostos de engajamento político que orientavam a MPB, consagrada na segunda metade dos anos 1960. O "desbunde" e a aparente "alienação", que demarcam sua produção e outras formas de expressão ligadas à cultura jovem dos anos 1970, como o Clube da Esquina e o grupo Nuvem Cigana, refletem um pensamento crítico, ligado a uma geração que passou por um processo de descrença, em um contexto marcadamente repressivo e de severas transformações econômicas e sociais. Os ideais da contracultura perpassaram a produção de Toninho Horta durante toda a década de 1970 e sobressaem em seu processo criativo, ligado à confecção de seu primeiro álbum autoral Terra dos Pássaros, trazendo à tona peculiaridades de sua concepção artística e os conflitos de uma produção de caráter alternativo em convívio com a consolidação de uma dinâmica cada vez mais racionalista e tecnicista, que se impunha sobre a produção cultural no Brasil.

 

Referências de texto

COHN, Sérgio (org). Nuvem Cigana - poesia e delírio dos anos 70. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2007.         

DIAS, Márcia Tosta. Os Donos da Voz - Indústria Fonográfica Brasileira e Mundialização da Cultura. São Paulo: Boitempo Editorial, 2000.         

GARCIA, Luiz Henrique Assis. Coisas que ficaram muito tempo por dizer: o Clube da Esquina como formação cultural. 2000. 154 p. Dissertação (Mestrado) - História, UFMG, Belo Horizonte, 2000.        

GOMES, Vinícios & CARRILHO, Fábio Entrevista com Toninho Horta. ViolãoPro, M&M Editorial, fevereiro de 2007, nº 9, pp.22-26.         

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de Viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/ 70. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2004.        

MORAES, Renato de. "A voz da esfinge". Veja . São Paulo: Abril, 3/05/1972, p.56       

MULLER, Daniel Gustavo Mingotti. Música Instrumental e Indústria Fonográfica no Brasil: A Experiência do Selo Som da Gente. 2005. 191 p. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Artes, UNICAMP, Campinas, 2005.       

NAPOLITANO, Marcos. A música popular brasileira (MPB) dos anos 70: resistência política e consumo cultural. In: Anais do IV Congreso de la rama latino-americana del IASPM, 2002.        

Cultura Brasileira - utopia e massificação (1950-1980). São Paulo: Contexto, 2006.       

A síncope das ideias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.       

NICODEMO, Thaís Lima. Terra dos Pássaros: uma abordagem sobre as composições de Toninho Horta. Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP, 2009.        

NUNES, Thais dos Guimarães Alvim. A sonoridade específica do Clube da Esquina. 2005. 130 p. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Artes, UNICAMP, Campinas, 2005.         

RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000.         

RISÉRIO, Antonio (vários autores). Anos 70: trajetórias. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2005.        

TATIT, Luiz. O Cancionista - Composição de Canções no Brasil. São Paulo: Edusp. 2002.         

Todos Entoam: Ensaios, conversas e canções. São Paulo: Publifolha, 2007.        

 

Referências de áudio

HORTA, Toninho & Orquestra Fantasma. Terra dos Pássaros. Brasil: EMI, 1980 (LP 064 422855); Dubas Música, 2008 (CD).         

MOREIRA, Airto. Promises of the Sun. Brasil: Arista/EMI-Odeon, 1976 (LP ARL 33209).       

NASCIMENTO, Milton. Milton Nascimento. Brasil: EMI-Odeon, 1969 (LP MOFB 3492)       

Milton. EUA: A&M Records; Brasil: EMI-Odeon, 1976 (LP XEMCB 7024).        

Clube da Esquina. Brasil: EMI-Odeon, 1972 (2 LP MOAB 6005/6), 1989 (2 CD).         Clube da Esquina 2. Brasil: EMI-Odeon, 1978 (2 LP 164 422831/2), 1988 (2 CD).        

Referência em vídeo

VIOLÕES de Minas. Roteiro e direção Geraldo Vianna. Documentário. 2007, 1 DVD. Duração: 101 min.    

Entrevista

HORTA, Toninho. Por email, no dia 20/03/2012.        

 

Notas

1 Tal pesquisa apresenta alguns excertos de minha dissertação de mestrado: NICODEMO, Thaís Lima. Terra dos Pássaros: uma abordagem sobre as composições de Toninho Horta. Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP, 2009.

2 HORTA, Toninho. Terra dos Pássaros. Brasil: EMI-Odeon, 1980, LP.

3 Concorreu com a marcha-rancho Nem é Carnaval (Toninho Horta e Márcio Borges), defendida pelo cantor Márcio José, e com a valsa Maria Madrugada (Toninho Horta e Junia Horta), interpretada pelo grupo paulistano O Quarteto.

4 Como ressalta RIDENTI (2000, p.17), nesse contexto, o termo esquerda é empregado para: "designar as forças políticas críticas da ordem capitalista estabelecida, identificadas com as lutas dos trabalhadores pela transformação social".

5 Conforme argumenta NAPOLITANO (2007, pp.85, 86), a identidade nacional-popular que antes orientava a produção cultural com um sentido reformista, passa a se tornar o centro de uma construção ideológica em torno da resistência ao regime militar, após o golpe de 1964.

6 Conforme HORTA, Toninho. In: http://www.museuclubedaesquina.org.br/museu/depoimentos/toninho-horta/. Acesso no dia 23/02/2012.

7 Conforme depoimento de Toninho Horta ao site www.museudapessoa.net/clube, acesso em 05/03/2012.

8 Músicos que participaram do disco: Milton Nascimento, Lô Borges, Tavito, Wagner Tiso, Beto Guedes, Toninho Horta, Robertinho Silva, Luiz Alves, Rubinho, Nelson Ângelo, Paulo Moura (maestro), Eumir Deodato, Paulo Braga, Gonzaguinha, Alaíde Costa. Letristas: Márcio Borges, Ronaldo Bastos, Fernando Brant.

9 Conforme MORAES, Renato de. In: "A voz da esfinge". Veja . São Paulo: Abril, 3/05/1972, p.56., o LP Clube da Esquina havia vendido cerca de 10.000 cópias em apenas dois meses.

10 Cf. informações do site www.toninhohorta.com.br/pt/terra-dos-passaros/a-guitarra-e-o-disco, acesso em 14/03/2012.

11 Conforme Toninho Horta, por email, no dia 20/03/2012.

12 Aberturas de acordes escritas por Toninho Horta, cedidas a autora.

13 Não comentamos sobre o conteúdo das composições Viver de Amor (Toninho Horta e Ronaldo Bastos) e Aquelas Coisas Todas (Toninho Horta) por apresentarem-se como músicas instrumentais no disco Terra dos Pássaros.

 

 

 

Thaís Lima Nicodemo é doutoranda pelo Departamento de Música, no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas. Sua pesquisa, que se iniciou em 2010, tem como enfoque principal a produção do compositor brasileiro Ivan Lins, entre os anos de 1970 e 1990. Tem no prelo em co-autoria com Soraia Simões, Investigadora/Presidente da Associação Mural Sonoro, um livro baseado no percurso do músico Ivan Lins. Thaís é Mestre em Música pela mesma instituição, onde desenvolveu a dissertação "Terra dos Pássaros: uma abordagem sobre as composições de Toninho Horta", defendida em 2009. Além de pesquisadora, possui bacharelado em Piano Popular, pela Faculdade Santa Marcelina e atua como musicista no cenário da música instrumental e da canção popular na cidade de São Paulo.

Rafael dos Santos é Doutor em Música/Piano pela Universidade de Iowa - EUA, sob a orientação do Prof. Daniel Shapiro. É Docente do Departamento de Música, Instituto de Artes da UNICAMP, onde participou da criação do curso de Música Popular. Coordena juntamente com o Prof. José Roberto Zan o Grupo de Pesquisa "Musica Popular: História, Produção e Linguagem" (CNPq).

 

 
  

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Jean Marc Pablo (construtor, autor, intérprete «contrabacia»)

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Jean Marc Pablo (construtor, autor, intérprete «contrabacia»)

92ª Recolha de Entrevista

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BI: Jean Marc Pablo, nasceu em Champigny sur Marne, França, subúrbios de Paris, no ano de 1968. É um músico, construtor e cenógrafo actualmente a residir em Almada. Integra o grupo OqueStrada sobretudo como executante de contrabacia, embora por vezes também toque contrabaixo, o seu primeiro instrumento musical.

Nesta recolha de entrevista explica como começou a tocar contrabaixo, de ouvido especialmente através do que escutava nos discos de jazz que comprava quando ia a Londres, expressando de igual modo em que medida o teatro de rua em França, onde a institucionalização da actividade é prática comum há um longo período de tempo (e onde a dramaturgia para o espaço público é disciplina nos currículos escolares), difere da realidade que encontrou em Portugal, primeiramente na cidade do Porto, onde apresentou um espectáculo, em que música, cenografia e teatro de rua (os três universos onde Jean Marc Pablo tem gravitado quer como autor/produtor, quer como intérprete) no âmbito da «captital europeia da cultura». Nesta recolha de entrevista, da qual que se disponibiliza uma parte neste acervo online, Jean Marc refere, entre outros aspectos, algumas das especificidades do instrumento musical ao qual tem dedicado mais tempo e estudo desde a criação do projecto musical OqueStrada. Não deixando de fora da sua visão tanto o modo como a contrabacia se relaciona com os outros instrumentos musicais em OqueStrada (a voz, a viola, a guitarra de Coimbra e o acordeão) ou com um estúdio de gravação.

 

© 2014 Jean Marc Pablo à conversa com Soraia Simões, Perspectivas e Reflexões no Campo

Som, Pesquisa, Texto: Soraia Simões

Fotografias: Helena Silva

Recolha efectuada no espaço Tasca Beat em Alfama

 

 

 

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Ciclo: Conversa ao Correr das Músicas. 3ª Convidada — Luanda Cozetti

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Ciclo: Conversa ao Correr das Músicas. 3ª Convidada — Luanda Cozetti

O Ciclo ''Conversa ao Correr das Músicas'’, da Associação Mural Sonoro em parceria com o Museu da Música, teve como convidada na Sessão da noite de 14 de Novembro a brasileira Luanda Cozetti, acompanhada do baixista Norton Daiello , que com ela forma o grupo Couple Coffee


A mediação da conversa musicada esteve como habitualmente a cargo da investigadora Soraia Simões. Mais uma vez, além das canções interpretadas na voz e no baixo, falou-se, atravessando o percurso da convidada, além dos temas, versões e noções musicais que se escondem por trás de alguma da obra musical, em que medida a convivência com a situação de exílio dos pais foi determinante na escolha de algum do seu repertório musical e na sua perspectiva como indivíduo e como música.
O Ciclo "Conversas ao Correr das Músicas" originará uma colecção de vídeos documentais realizados pela Associação Mural Sonoro


Ouça aqui um excerto da primeira sessão, com o músico e compositor brasileiro Ivan Lins:

Assim como a recolha de entrevista realizada à intérprete para o Arquivo e Documentação Mural Sonoro.

Produção: Associação Mural Sonoro

Parceria: Museu da Música

Pesquisa, Apresentação, Condução: Soraia Simões

Fotografias: Helena Silva

Cameras: Marta Reis, Carlos Gomes



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Eugénia Melo e Castro (Intérprete, Compositora, Letrista)

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Eugénia Melo e Castro (Intérprete, Compositora, Letrista)

90ª Recolha de Entrevista

Quota MS_00073 Europeana Sounds

 

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BI: Eugénia Melo e Castro é uma intérprete e compositora portuguesa nascida na Covilhã no ano de 1958.


Filha dos escritores E. M. de Melo e Castro e de Maria Alberta Menéres, cedo conviveu com poesia e, através das frequentes idas do pai ao Brasil e os discos que trazia, com o trabalho de inúmeros músicos brasileiros, alguns dos quais com quem curiosamente mais tarde, quando se profissionaliza na música, acabaria por trabalhar.


Conta nesta recolha de entrevista maior realizada em Junho deste ano, da qual disponibilizamos um excerto de cerca de cinquenta minutos no acervo online, que não só o seu pai como José Nuno Martins, primeiramente através de um programa de rádio da sua autoria, foram determinantes para o conhecimento e desenvolvimento do seu gosto por determinados repertórios e compositores-intérpretes, relembra que frequentou a London Film School, estudando cinema, e que entre os anos de 1977 e 1978 foi acumulando experiências como actriz de teatro, com o grupo Ânima (que fundou e onde desenvolveu trabalhos de poesia experimental encenada) e com o grupo de Teatro A Barraca. No cinema participou em filmes de Joaquim Leitão e Djalma Limonge Batista. Na televisão, como autora e produtora musical, compositora e apresentadora Eugénia deixaria também a sua marca ao receber no programa o mais vasto naipe de protagonistas da Música Popular. 


Da sua tentativa como realizadora de cinema, fotógrafa (fotografaria profissionalmente o escritor Gabriel Garcia Marques quando estudava na A.R.C.O.) aos convites para fazer filmes como actriz, passando pelo grupo de Teatro de Poesia Experimental que ajudaria a fundar, Eugénia circulou nos mais diversos espaços do domínio artístico.

Curiosa e com uma forte vontade que chamaria a atenção de diversos autores.
A partir da década de 1980, período em que começa a intensificar as suas parcerias, do ponto de vista autoral e vocal, com alguns dos mais consolidados músicos e autores brasileiros, como Tom Jobim, Chico Buarque, Simone, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Eugénia rasga e aproxima as fronteiras, do ponto de vista cultural e musical, entre Portugal-Brasil e assume-se como uma das figuras que nos anos de 1980 mais intercâmbio entre estes dois países possibilitou, assim como se vai afirmando no panorama musical brasileiro, muito embora a sua ''residência base'' fosse até hoje Portugal, como o denota o seu legado fonográfico todo gravado no seu país de origem.


Entre um conjunto de outros aspectos desvendados nesta conversa, explica algumas das histórias que foram envolvendo as suas relações não só com a gravação de discos em Portugal, o estúdio, os técnicos e empresários, como as mudanças a que mais tarde assistiu nesse meio: dos músicos que desempenhavam esse papel aos empresários que passaram a liderar as trocas de experiências e difusão entre autores e músicos.


No ano de 2007 Eugénia Melo e Castro seria distinguida com o prémio Qualidade Brasil pelo conjunto da sua obra musical, integralmente lançada no Brasil. E no ano de 2008 o seu programa de televisão Atlântico foi considerado um dos 50 melhores programas de sempre de televisão em Portugal, ocupando o 23º lugar. No ano de 2009 seria premiada como Dama da Ordem do Infante D. Henrique.


O seu relacionamento com a composição musical e a escrita de canções foi ganhando força ao longo dos anos, nesta recolha explica a importância de alguns dos compositores que admirava e com quem, fruto de grande persistência sua, passou a trabalhar e trocar ideias, as relações nem sempre pacíficas com as etiquetas que suportavam as obras musicais, as ânsias e aspirações que foi travando ao longo da sua afirmação no seio da cultura popular não só em Portugal como no Brasil, etc.


Do seu legado fonográfico fazem parte os seguintes trabalhos: Terra de Mel (LP, Polygram, 1982), Águas de Todo O Ano (LP, Polygram, 1983), Eugénia Melo e Castro III (LP, Polygram, 1986), Coração Imprevisto (LP, EMI, 1988), Canções e Momentos (Compilação, Polygram, 1989), Amor é Cego e Vê (LP, Polygram, 1990), Lisboa Dentro de Mim (CD, BMG, 1993), O Melhor de Eugénia Melo e Castro (Compilação, Polygram, 1993), Canta Vinicíus de Moraes (CD, Megadiscos/Som Livre, 1994), Eugénia Melo e Castro Ao Vivo Em São Paulo (CD, Som Livre, 1996), Eugénia Melo e Castro  Canta Vinicíus de Moraes (CD, Sony, 2000), Ao Vivo Em São Paulo (CD, Som Livre, 2000), A Luz do Meu Caminho (CD, MVM, 2000), Eugénia Melo e Castro.com - Duetos (Compilação, Eldorado, 2001) - Brasil, Recomeço (CD, Som Livre, 2001), Dança da LUZ - EDP - 2004 (CD), Motor da Luz (CD, Som Livre, 2001), "PAZ" - CD- Som Livre - 2004 // Universal - 2007, "DESCONSTRUÇÃO" - (2004) Duplo CD - 2007 - Universal, "POPORTUGAL" - CD - Universal - 2007, "DUETOS x 16 - CD - Atração / Brazilmusica 2009, as colectâneas: A música em Pessoa (1985) - Emissário De Um Rei Desconhecido, Bocage - O Triunfo do Amor (1998) - Liberdade, Songbook Chico Buarque (1999) - Tanto Mar (c/ Wagner Tiso), O melhor de Eugénia Melo e Castro - Universal 2004 e participações nos fonogramas de Sérgio Godinho - Pano Cru, Jorge Palma - Até já, Júlio Pereira - "Lisboémia" e "Fernandinho vai ao vinho", Adriano Correia de Oliveira, Zeca Afonso, Fausto - "A Preto e Branco" e "Histórias de Viajeiros", Carlos Lyra - Carioca de algema, Sérgio Basbaum - Tanto Mais ou Fábio Tagliaferri - Pela manhã.

À data em que esta recolha foi realizada Eugénia Melo e Castro encontrava-se no processo de finalização de um CD infantil, baseado no livro "Conversas Com Versos" da sua mãe.

© 2014 Eugénia Melo e Castro à conversa com Soraia Simões, Perspectivas e Reflexões no Campo

Som, Pesquisa, Texto: Soraia Simões

Fotografia: Rodrigo Souza

Recolha efectuada em LARGO Residências

 

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Fred Martins (Músico, Compositor brasileiro)

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Fred Martins (Músico, Compositor brasileiro)

88ª Recolha de Entrevista

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Fred Martins nasceu no Rio, mas vive hoje em Santiago de Compostela. É um dos mais destacados compositores da sua geração na actualidade.

Intérprete e compositor, nesta recolha expressa o modo como se profissionalizou na música, o significado de algumas das suas músicas cantadas por intérpretes brasileiros já consolidados (Renato Braz gravaria ''Por um Fio", Ney Matogrosso: "Novamente" e "Tempo Afora", Maria Rita: "Sem Aviso" e "Perfeitamente" ou, entre outros, Zélia Duncan: "Hóspede do Tempo" e "Flores"), da distinção que a sua actividade na Música Popular, especialmente no domínio da composição musical, assumiu nos últimos anos (e lhe faria ganhar o Prémio Visa de Música Brasileira/9 ª edição, 2006 para melhor compositor por votação unânime do júri e do público). Reflecte também sobre algumas especificidades dos universos musicais que fazem parte da cultura popular brasileira: seja no Rio de Janeiro, São Paulo ou no Nordeste brasileiro.

Nas suas composições encontram-se algumas das influências e referências que apontam para algumas das expressões culturais do seu espaço geográfico de origem como o samba, a bossa nova e o que designa (e explica porquê) de 'nordeste modal', que mistura com outras características da Música Popular no mundo, fora destes universos.


Fred Martins desenvolveu uma relação muito próxima com a música popular que preenche um lado da História do Brasil ao transcrever, durante dez anos, partituras de compositores como Chico Buarque, Noel Rosa, Tom Jobim, Caetano Veloso e Gilberto Gil para os conhecidos Songbooks produzidos por Almir Chediak e tal facto servir-lhe-ia como uma escola influenciadora do papel que mais tarde, já como músico e compositor, veio a traçar.

O músico participou, entre outros, nos festivais internacionais "Lula World 2014" (Canadá), ''Músicas Portuárias", "Cantos na Maré" (Espanha), no "Festival de Verão de Músicas do Mundo de Vila Real" (Portugal) e no "Festival Jawhara" (Marrocos).

Colaborou também, como compositor e intérprete, no mais recente espectáculo de María Pagés (ballet/ flamenco) de nome "Utopia", inspirado na obra de Óscar Niemeyer.

À data em que esta recolha foi efectuada (Julho de 2014) Fred Martins encontrava-se no processo de gravação do seu primeiro álbum a solo a ser lançado na Europa, com músicas representativas dos seus 20 anos de carreira. No disco participam músicos do Brasil, Galiza, Portugal e Argentina.

Do seu legado fonográfico fazem parte os seguintes trabalhos:

GUANABARA
2009
Sete Sóis

ACROBATA
2011
Em dueto com
Ugia Pedreira
(Galiza)

TEMPO AFORA
CD e DVD
2008
Eldorado/
Canal Brasil

RARO E COMUM
2005
Universal/
MPB

JANELAS
2001
Deckdisc

© 2014 Fred Martins à conversa com Soraia Simões, Perspectivas e Reflexões no Campo
Som, Pesquisa, Entrevista realizada em 18 de 0utubro de 2014, Texto: Soraia Simões
Fotografia: Conversa ao Correr das Músicas de Soraia Simões (Museu Nacional da Música)
Mais aqui.

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António Pinto Basto (Intérprete de Fado)

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António Pinto Basto (Intérprete de Fado)

87ª Recolha de Entrevista

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BI: António João Ferreira Pinto Basto nasceu na cidade de Évora, Alentejo, no ano de 1952.

Cedo se destacou no Alentejo, entre os da sua geração, como um dos mais populares intérpretes de fado.

Tinha apenas 13 anos quando os pais o levaram a uma noite de fados na Feira dos Salesianos de Évora. Feira essa que lhe determinaria o gosto pelo universo do Fado.

O seu avô, João de Vasconcellos e Sá, teria de igual forma um papel importante no percurso que acabou por fazer. Autor de diversos poemas, António Pinto Basto acabaria por cantar letras originais nos fados tradicionais. A par do repertório deixado pelo avô, que o fadista acabou por não conhecer em vida, o seu tio, José de Vasconcellos e Sá, apreciando as interpretações do seu sobrinho, resolve levá-lo a Lisboa.

Nesta recolha de entrevista, da qual se disponibiliza uma parte no arquivo online, o fadista conta que com apenas 16 anos participou na Grande Noite do Fado, como representante da Casa do Alentejo e cantou em algumas casas de fado, fala dos primeiros fonogramas que gravou, da importância e do modo como lida com as diferenças que assumem os espectáculos ao vivo, o contacto com o estúdio  de gravação, com a casa de fados e com o registo televisivo e o playback. Nesta conversa é também crítico relativamente a algumas mudanças, fruto do avanço das sociedades, no universo do Fado exemplificando-as.

De ressalvar ainda desta conversa de cerca de três horas, que foi de facto por intermédio desse tio que grava o primeiro disco, em 1970. Um EP editado pela Alvorada, com letras do avô e do tio e músicas do fado tradicional (“Fado Franklin”, “Fado Vitória”, “Fado Dois Tons” e “Fado das Horas”). Sendo aos 17 anos, e por causa deste primeiro fonograma, que inicia a sua carreira como fadista. Nos anos de 1972 e 1973 gravou mais dois EPs. Depois foi estudar para Luanda e voltou um mês depois do 25 de Abril. Na conversa atenta também como o pré e pós revolução influenciariam o Fado e a actuação/impressão dos vários agentes sociais externos à sua prática em torno dele. Sobretudo os papéis assumidos pelo meio de publicação e difusão nestes períodos.

António Pinto Basto conta que fez o curso de Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico, estabeleceu-se nessa profissão, mas os espectáculos ao vivo que foi fazendo, em Portugal e no estrangeiro, actuando nos Estados Unidos, Brasil, Espanha, França e Angola, acabaram por se sobrepor à sua formação académica.  Em 1988 gravou o LP “Rosa Branca”, cujo tema título era um poema do seu avô. As vendas atingiram o disco de platina. Nos 3 meses que se seguiram deu 73 entrevistas e nesse ano realizou cerca de 120 espectáculos. Tornou-se incomportável manter a actividade profissional como engenheiro, que acabou por abandonar no final de 1989. 

Trabalhava como engenheiro na Siderurgia Nacional quando foi contactado pela Polygram para gravar. A sua ideia era pôr em disco as coisas que cantava há muitos anos mas que não eram conhecidas do grande público. A ideia da editora era concorrer com o sucesso de Nuno da Câmara Pereira, editado pela EMI, acabando por provocar um afastamento de Nuno da Câmara Pereira, que deixaria de lhe falar por este motivo.

Com a edição do primeiro LP o fadista recebeu vários prémios, caso do Grande Prémio "Revelação" da Rádio Renascença, do "Sete de Oiro - Revelação" e do "Sete de Oiro - Fado". No ano seguinte, 1989, receberia o Grande Prémio "Popularidade" e “Disco-Revelação” da Rádio Renascença, e o prémio "Popularidade" atribuído pela Casa da Imprensa. No final desse ano edita o álbum duplo “Maria” que, tal como o antecessor, atingiu números significativos de vendas. Dois anos mais tarde, em 1991, sairia “Confidências à Guitarra”.

Após o sucesso granjeado nestes anos, a Polygram decide no ano de 1993 editar a compilação “Os Grandes Sucessos de António Pinto Basto”. No final de 1995, na esteira de um concerto realizado na sua cidade natal, é editada uma vídeo-cassete intitulada "António Pinto Basto em Évora".

Na década de 90 sucedem-se os espectáculos fora de Portugal. Em 1992 faz espectáculos em quatro continentes, apresenta-se em Toronto (Canadá), em Macau e Hong-Kong, em Angola e em Sevilha, no âmbito da Expo’92. Ainda nesse ano volta ao Canadá para mais quatro concertos e alguns mais nos Estados Unidos da América.

No ano de 1994, é convidado pelo Instituto Cultural de Macau para ser solista numa digressão que a Orquestra Chinesa de Macau efectuaria em Portugal, onde se incluem dois espectáculos em Lisboa, um no Teatro S. Luís, no âmbito da Lisboa’94, Capital Europeia da Cultura e outro, de gala, no Teatro Nacional de S. Carlos. Novamente como solista apresenta-se, no ano seguinte, no VI Festival de Artes de Macau. Ainda em 1995 efectua dois concertos em Goa, na Índia, actua em Palermo e Sicília, na Itália, representando Portugal num Festival de Música Mediterrânica, e vai a Caracas, integrado no grupo de artistas que realizam o espectáculo da Festa das Comunidades Portuguesas promovido pela R.D.P.I.

Grava o CD “Desde o Berço”, em 1996, para a BMG. Continuam a chegar-lhe inúmeros convites para apresentações ao vivo e nesse mesmo ano volta ao Canadá e actua para a comunidade portuguesa em Londres. Em 1997 destacam-se dois concertos na Turquia, por intermédio da Comissão Europeia e da Embaixada de Portugal em Ancara, e as actuações em Bruxelas e, novamente, no Canadá.

No ano de 1998, António Pinto Basto realiza uma pequena digressão pelas comunidades portuguesas na Europa, actua na EXPO’98 e tem a seu cargo, como produtor, a programação do palco de fado durante cinco semanas. É o primeiro fadista a ter um espaço em nome próprio na Internet, que hoje (à data em que esta recolha é feita: Março de 2014) não existe. Ainda no ano de 1998 a Casa da Imprensa atribui-lhe o “Troféu Neves de Sousa".

Faz uma digressão pela América do Norte, com actuações em Montreal, Toronto, Ottawa e Newark, e alguns espectáculos em S. Paulo e no Rio de Janeiro, durante 1999. No ano seguinte integra o grupo “Land of Fado”, organizado por João Braga, que se apresenta em Newark, nos Estados Unidos.

Ainda em 2000, António Pinto Basto é convidado a produzir e apresentar, por convite da Radiotelevisão Portuguesa, um programa semanal dedicado ao Fado, nos canais R.T.P.I. e R.T.P. África, intitulado “Fados de Portugal”. 

O disco “Rendas Pretas”, editado em 2001, afasta-se do fado, apresentando músicas compostas por José Campos e Sousa para poemas seleccionados pelo compositor. No fonograma que se lhe seguiu, “Letras do Fado Vulgar”, o fadista interpreta poemas de Vasco Graça Moura, novamente com músicas compostas por José Campos e Sousa.

Paralelamente, António Pinto Basto concorre à presidência da Câmara Municipal de Estremoz e toma posse como vereador, pelo Partido Social Democrata, em 2002.

Na celebração dos seus 35 anos de carreira António Pinto Basto edita o CD “Bodas de Coral”, pela Zona Música, com apresentação de um espectáculo no Casino Estoril, a que se seguem actuações um pouco por todo o país. 

O disco “Bodas de Coral” marca a estreia de António Pinto Basto como autor de poemas, com o tema “Madrigal para Amália”, escrito em homenagem à fadista. Anteriormente, António Pinto Basto havia já composto algumas músicas, como é o caso de “Nobre Cidade Évora”, editada no disco “Rosa Branca”, ou de “Já Vives dentro de mim”, esta integrada no álbum “Maria”. Neste CD António Pinto Basto volta apresentar músicas de sua autoria nos temas: “Gostava”, com poema de Vasco Telles da Gama, e “O Castanheiro”, com poema do seu avô, João Vasconcellos e Sá.

Em  2004  António Pinto Basto integrou o projecto “Quatro Cantos”. Ao lado de Maria Armanda, Teresa Tapadas e José da Câmara,  interpretando alguns êxitos da história do Fado que foram já registados nos CDs e DVDs: “5 Décadas de Fado”, em 2004, e “Do Presente ao Passado no Fado”, em 2006.

Actualmente diz-se 'conformista' e 'adaptado' fase a algumas das mudanças a que tem assistido, nem sempre com agrado, no universo do Fado. Continua a ser nos espectáculos ao vivo que sente melhor aquele que é a actividade da qual escolheu viver há já quatro décadas.

 

© 2014 António Pinto Basto à conversa com Soraia Simões, Perspectivas e Reflexões no Campo

Recolha efectuada no Museu do Fado

Som, Pesquisa, Texto: Soraia Simões

Fotografias: Helena Silva

 

 

 

 

 

 

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1/2 Palavra Basta: Apresentação Associação Mural Sonoro

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1/2 Palavra Basta: Apresentação Associação Mural Sonoro

No dia 2 de Outubro, quinta-feira, pelas 19h30 Soraia Simões esteve, a convite da Associação Renovar A Mouraria, mais especificamente no espaço com o nome Mouradia no  ''1/2 Palavra Basta’’, a explicar o que é o Projecto Mural Sonoro, existente desde o ano de 2011, e a Missão que está ligada à criação da Associação Mural Sonoro, formada em Fevereiro deste ano para estudar a Música Popular em Portugal, mas não só.

Crédito Fotografias: Carla Rosado (Associação Renovar a Mouraria)

Vídeo e Montagem: Carlos Gomes

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Violeiros nos Açores

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Violeiros nos Açores

No texto que aqui escrevi acerca da viola de corações referi que em breve lhe deixaria  um levantamento acerca de alguns violeiros, artesãos desta ilha, que até finais do século XIX construíram e transmitiram a arte de construir a viola da terra de modo ora profissional ora amadorístico. 

 

Convém não esquecer que a viola açoriana tem hoje uma representação em Museus, Colecções particulares, tanto da região autónoma dos Açores como em várias regiões de Portugal continental. Museu de Vila Franca do Campo, Museu Carlos Machado em Ponta Delgada, Casa-Museu Dr Armando Côrtes-Rodrigues em Ponta Delgada, Museu de Angra do Heroísmo, Museu de Arte Sacra e Etnografia da Ribeira Chã,  Museu Etnográfico das Flores ou coleccionadores e tocadores com considerável espólio pessoal como Miguel Braga Pimentel em Ponta Delgada ou, em exemplo,  José Lúcio Ribeiro d’Almeida e Luís Manuel Carreira Garcia ambos em Lisboa.

 

Por sentir que a maioria dos nomes divulgados no campo da construção e organaria no que respeito dizia a estas violas se concentram nos século XX e XXI e por temer que os artesãos que contribuíram para a sua transmissão permanecessem, salvo algumas pequenas excepções, no esquecimento, na minha pesquisa para este item usei algumas fontes bibliográficas, catálogos de Museus, na minha pesquisa anterior baseei-me na interpretação de  impressões sobre instrumentos musicais e sua feitura de coleccionistas privados com quem conversei durante o trabalho no Mural Sonoro, seja presencialmente: como quando o fiz em Coimbra com o médico-psiquiatra Louzã Henriques, seja por via electrónica com pessoas como Maria Fraga ou o formador e tocador Rafael Carvalho. 

Como prometido, destaco então nesta área do Portal alguns dos dados que vou acumulando neste trabalho, ou seja os seguintes violeiros, bem como as respectivas fontes através das quais fui tendo acesso a alguma informação relevante especialmente no ano de 2013 :

.‘’Catálogo da Exposição de Arte, Ciências e Letras Micaelenses’’ inaugurada a 7 de Maio de 1882 no extinto edifício Convento da Graça: Linhares (violeiro em Ponta Delgada — uma rabeca, Luís A.B Arruda), Luís José Nunes Jr. (uma guitarra — Licínio Tavares), Luís José Nunes Jr. um cavaquinho — António M. de F.Mais). 

.Luís José Nunes, construtor de instrumentos de corda, distinguido co uma menção honrosa de primeira classe na Exposição Distrital de Ponta Delgada do ano de 1895 e premiado com uma medalha de ouro na Exposição de Indústrias Artes e Ciências de Ponta Delgada do ano de 1901. De ressalvar que no ano de 1989 Maria Luísa Vasconcelos Van-Hoof doou ao Museu Carlos Machado uma guitarra deste fabricante onde consta alguma desta informação.

.Joseph S.Castanha&Sons, All Kind of String Instruments, Fan&Silva of the best quality, Brass and Nickel Plating, em Boston — onde se concentra uma  considerável comunidade de violeiros oriundos do arquipélago dos Açores, cujo nome aponta a sua possível origem.

.Mariano Jacinto de Melo, Miguel Jacinto de Melo (conhecido por ‘’mestre Charuto’’ e filho de Mariano Jacinto de Melo), Adelino Vicente (1935 — 15 de Dezembro de 1999), João Vieira Pacheco (conhecido como ‘’mestre Formiga’’), António José de Sousa Melo (filho de Miguel Jacinto de Melo — emigrado) todos da Ilha de São Miguel, Vila Franca do Campo mais concretamente.

.José de Medeiros, António de Medeiros (filho de José de Medeiros — emigrado), Manuel de Medeiros (filho de António de Medeiros, conhecido por ‘’Breta’’) todos da Ilha de São Miguel, mais concretamente São Roque.

.José Luís Nunes, Miguel de Braga Pimentel, Fernando Manuel Oliveira Raposo, Dinis Raposo, Jacinto d’Oliveira (conhecido por ‘’Galocha’’) todos oriundos de Ponta Delgada.

.Nemésio José Pimentel da Silva e o seu pai João Barbosa da Silva (conhecido por ‘’mestre João Miguel’’) de Bretanha.

. Amorim de Sousa Massa de Arrifes

.António Pombal de Lagoa

.Manuel Viveiros Rego (conhecido por ‘’Marcolino’’) de São Vicente Ferreira

.Hugo Raposo de Pico da Pedra

.Manuel Flora Mendonça de Lomba da Fazenda

 

Mas, não só a ilha de São Miguel concentra um número de construtores-fabricantes, unidos pelas relações de fortes laços familiares e aprendizagens que foram passando através da oralidade sobretudo entre pais e filhos,  de cordofones característicos no arquipélago açoriano, também as Ilhas Terceira, Faial, Pico e Graciosa concentram nomes importantes neste capítulo, a saber:

.Manuel Augusto Lobão (10 de Abril de 1908 — 5 de Agosto de 2006), João de Sá e Silva, José Augusto Lobão (filho de Manuel Augusto Lobão. 30 de Julho de 1937 — 12 de Julho de 2004), Carlos Rodrigues, Ernesto da Costa da Ilha Terceira.

.Manuel Goulart Garcia, Francisco Pinheiro, Guilherme Henrique Bettencourt da Ilha do Faial.

. ‘’Caniço’’, epíteto para Manuel Rodrigues Amaral (nome real) da Ilha do Pico.

.Citrino da Cunha Santos e Juventino Ávila (‘’mestre ou professor José Juventino’’ como é carinhosamente apelidado da, ambos da Ilha Graciosa.

 

outras referências bibliográficas e documentais usadas na pesquisa: Documentação, Monogramas, Museu Machado Castro, Leite de Ataíde, Etnografia, Arte e Vida dos Açores, Vol II, pág.  327, 328 e 329, Documentação/Colecção de Maria António Esteves — Vila Franca do Campo, Dicionário de Música, Almanach Popular dos Açores para 1870, Ponta Delgada, Typographia da Rua do Frias, número sete.

Fotografia usada na capa deste texto correspondente a encontro de violas em Ponta Delgada promovido pela RTP Açores. De Luciano Barcelos, publicada online no site RTP em 23/08/2011.

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Uma experiência do rap no Brasil na primeira pessoa. Breve consideração, por Dom Billy

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Uma experiência do rap no Brasil na primeira pessoa. Breve consideração, por Dom Billy

[ ver RAProduções de Memória Cultura Popular e Sociedade]

*Sou Brasileiro, de São Paulo, nasci num hospital da zona leste da capital.

Fui um dos pioneiros do hip hop no Brasil, fiz parte do conhecido grupo Funk Cia, ao lado de Nelson Triunfo no início da década de 1980.

Sou músico, compositor, dançarino, integrante do Projeto Preto Véio, um grupo musical que criei e que alberga vários ritmos brasileiros regionais, aliados a elementos musicais de cariz urbano como o rap

Nesse momento me encontro escrevendo um livro e preparando um Documentário sobre minha trajetória dentro da cultura hip hop no Brasil,  desde os ''bailes negros'' na cidade de São Paulo dos anos de 1970 até aos dias de hoje. 

De certo modo essa cultura mexeu com a auto-estima do jovem negro que vivia nas periferias da cidade, e buscava um meio de se integrar na juventude da sua época, encontrando o que dizemos hoje de 'identidade cultural' dentro de uma sociedade minada de preconceitos, e que vivia num regime de ditadura.

Segue aqui um pequeno trecho desse meu livro que em breve estarei lançando: 

Esta é a fase em que eu comecei a curtir os bailes mais nervosos de São Paulo. Chic Show no Palmeiras e Zimbabwe no Guilherme Giorgi eram os bailes que eu mais freqüentava. Vi inúmeros shows no Palmeiras. Foram muitos e inesquecíveis. 

 A Chic Show foi um verdadeiro império na produção de bailes e shows, no seguimento de Baile Black, aqui no Brasil. Realmente ela ditou uma tendência desde a sua criação nos anos 70. A princípio era apenas um hobby entre irmãos que curtiam dar bailes na casa dos amigos, e se tornou uma empresa de linha de frente. Trouxe para o Brasil alguns dos nomes do primeiro time da música negra norte americana: Jimmy “Bo” Horne, Cheryl Lynn, Chaka Khan, James Brown, Glória Gaynor, Roger Troutman, Koll Moe Dee, Kurtis Blown, Whodini, Cash Money, Too Short, só para citar alguns internacionais.

Seus DJ’s foram verdadeiras lendas e são lembrados, até hoje, com saudade e respeito. Kitão e Natanael Valêncio foram personagens que embalaram uma geração de amantes da música negra.  E tudo isso acontecia numa época em que o DJ ficava escondido - dentro da cabine. Ele tinha que ter um extremo bom gosto aliado a um alto conhecimento musical. Não fazia performances como hoje vemos. Ele era um ilustre desconhecido. Houve uma época anterior aos anos 80, na qual os DJs eram simples executores de músicas. Os mais famosos eram os que trabalhavam nas rádios como locutores. 

Com suas vozes bonitas entravam nos lares, e faziam a alegria das empregadas domésticas, dos taxistas, das donas de casa em seus afazeres ou simplesmente para as pessoas que ouviam os programas de rádios a fim de ouvir uma música que lhes agradasse o coração. Nos bailes o papel do DJ também era o de tocar as músicas, mas de uma forma que mantivesse o público animado com a seqüência musical, ou seja, a pista não poderia esvaziar. 

Hoje, a pista ainda tem que continuar cheia, mas o conceito de DJ mudou e muito. Atualmente o DJ é um show-man, uma celebridade. Ele se tornou uma atração a mais num baile, são mestres de cerimônia, verdadeiros especialistas na arte de manter a pista cheia, com suas exibições performáticas e equipamentos de última geração. Creio que seja por isso que esta dupla Kitão e Natanael Valencio são reverenciados até os dias atuais. 

O perfil da massa, que curtia esses bailes, era muito especial. Os bailes eram muito esperados, pois, aconteciam uma vez por mês. Tínhamos de ter uma roupa exclusiva. No dia do baile os salões de cabeleireiros afro da Rua 24 de Maio, (no centro de São Paulo), bem como os dos bairros, lotavam de clientes. À noite, os ônibus que vinham dos bairros em direção à Rua Turiassu, 1840 (endereço do Ginásio do Palmeiras) eram tomados especialmente por essa Massa Black, muito animada, com seus cabelos afro “redondinhos” e elegantemente trajada para uma noite de sonhos, de embalos e de conquistas. Todos com a auto-estima nas nuvens e embalados por timbres lindos, grooves fantásticos e puro soul (...)

Links disponíveis:

 Nélson Triunfo: do Sertão ao Hip-Hop

 

*Dom Billy é rapper, escritor, compositor e foi dançarino de break-dance. Vive em Itaquera, um dos bairros periféricos distrito da zona leste cidade de São Paulo, no Brasil.

 

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Camané

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Camané

86ª Recolha de Entrevista

Quota MS_00069 Europeana Sounds

 

Nesta conversa maior, da qual se disponibiliza uma parte no formato online deste Arquivo, explica que começou a cantar muito cedo, incentivado pelos pais, da sua primeira relação com as casas de fado e posteriormente com os palcos, os teatros musicais e o estúdio de gravação, reflecte sobre algumas características deste domínio musical e acerca das diferenças de relacionamento entre espaços sonoros distintos como o estúdio, o palco, a casa de fados, explicando também que a sua evolução como fadista, quer na escolha de repertórios como na perda paulatina da sua timidez em palco se deveu em grande parte à sua ligação ao Teatro da Comuna num período específico e ao conhecimento travado, que dura até hoje, com a actriz e letrista Manuela de Freitas e o músico-compositor José Mário Branco. entre outros. Aflora a importância dos contactos que foi mantendo com a engenharia de som, através de um dos mais reconhecidos engenheiros de som, Tó Pinheiro da Silva (que também fez parte de uma das Sessões de Conferência Mural Sonoro no Museu da Música ao lado de Fernando Abrantes para falar de ''Tecnologias da Produção Sonora e Musical em Portugal" e que se encontra registada neste arquivo) e expressa a sua ligação não linear com a gravação discográfica ao longo do seu caminho no Fado e de que modo isso o influencia.

Perspectivas e Reflexões no Campo
Fotografias: Helena Silva
Recolha efectuada no LARGO Residências, Lisboa

 

 

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Carlos do Carmo (intérprete de fado)

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Carlos do Carmo (intérprete de fado)

84ª Recolha de Entrevista

Quota MS_00067

Europeana Sounds

 

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BI: Carlos Alberto do Carmo Almeida é presentemente um dos intérpretes de Fado mais reconhecidos em todo o mundo. Filho único da  fadista Lucília do Carmo e do livreiro e empresário Alfredo Almeida, nasceu em Lisboa no mês de Dezembro do ano de 1939.

 

Nesta recolha de entrevista, de que disponibilizamos uma parte do registo áudio neste Arquivo online, o fadista lembra a importância primeira que as referências musicais que cultivou, fora do universo do Fado, tiveram para si e do mergulho dado posteriormente nas suas origens e nos fados tradicionais e nomes que a eles estavam ligados, quando toma o lugar do seu pai no ano de 1962, após a sua morte, como gerente da célebre Casa de Fados Faia, aberta pelos seus pais quando tinha apenas oito anos e onde a sua mãe foi a principal protagonista e por onde passaram praticamente todos os fadistas emergentes da sua época, reflecte também sobre a importância que a passagem pela Escola Alemã e o Curso Superior de Hotelaria na Suiça vieram a assumir não só nessa tarefa como mais tarde na facilidade com que, quando assumiu o seu percurso como fadista, se veio a expressar fluentemente em francês, inglês, alemão, italiano e espanhol pelos diversos palcos que percorreu pelo mundo a cantar. Mas, fala também do primeiro Fado que começou por cantar, o único que sabia na íntegra, "Loucura" da autoria de Júlio de Sousa, Fado esse que no ano de 1963, e pelo facto de ser elogiado ao cantá-lo e não comparado quando o fez à sua mãe («mas tu não cantas como a tua mãe» disseram-lhe quando o cantou pela primeira vez) que marcou a sua entrada no circuito de gravação, ao ser-lhe pedido para gravar essa faixa, editada num EP do seu amigo, figura bastante popular à época neste domínio, Mário Simões; explica a projecção que este Fado passou a ter na rádio, e que fruto dessa intensa e inesperada aceitação o levaram logo no ano seguinte à gravação de um EP em nome próprio (o fonograma «Carlos do Carmo com Orquestra de Joaquim Luiz Gomes»), mas reflecte também sobre outros lados do seu percurso como a passagem «acidental» pelo Festival RTP da Canção no ano de 1976 onde foi o intérprete escolhido para dar voz a alguns dos temas que ainda hoje canta nos palcos um pouco por todo o mundo (da autoria de, entre outros, José Luís Tinoco ou José Carlos Ary dos Santos), sobre as relações hostis geradas dentro de quadrantes políticos e intelectuais relativamente ao Fado, das interculturalidades que ele tem patenteado nas últimas décadas, da sua fraca relação com os novos dispositivos electrónicos de armazenamento e difusão da música que se faz, entre outros aspectos.

Carlos do Carmo continua a actuar, a gravar e a ser referenciado por um leque grande de músicos e autores da Música Popular no geral e do Fado em particular.

No ano de 1967 a Casa da Imprensa distinguiu-o com o prémio “Melhor Intérprete” e, em 1970, atribuiu-lhe o prémio Pozal Domingues para “Melhor Disco do Ano”, para o seu primeiro álbum, intitulado "O Fado de Carlos do Carmo", editado pela Alvorada em 1969.

 

Entre um número grandioso de EPs e LPs fazem parte do seu legado  fonogramas indispensáveis para uma melhor compreensão da história do Fado como “O Fado em Duas Gerações, Carlos do Carmo e Lucília do Carmo”, “Por Morrer uma Andorinha” ou “Carlos do Carmo”, "Um Homem na Cidade", editado em 1977 pela etiqueta Trova,  de que fala nesta conversa e onde o fadista interpreta poemas de José Carlos Ary dos Santos ligados a um grupo de criativas e intemporais composições, de vários autores  como José Luís Tinoco, Paulo de Carvalho, António Vitorino de Almeida, Frederico de Brito, Joaquim Luís Gomes, Fernando Tordo, Moniz Pereira ou Martinho d’Assunção; "Um Homem no País" de 1984 que se destaca como a primeira edição em formato Compact Disc de um músico português.

Os seus espectáculos têm, nestes últimos 51 anos de actividade, sido regulares e além-fronteiras em espaços como: Olympia de Paris, Óperas de Frankfurt e de Wiesbaden, Canecão do Rio de Janeiro, Savoy de Helsínquia, Auditório Nacional de Paris, Teatro da Rainha em Haia, Teatro de São Petersburgo, Place des Arts em Montréal, Tivoli de Copenhaga ou  Memorial da América Latina em São Paulo e é no palco que continua a sentir-se vivo e em contacto com as pessoas que o gostam de ouvir e lhe seguem o caminho na música e no fado em especial.

Até ao final do ano de 1979, o fadista juntou à gestão do Faia  o percurso artístico e passou a actuar com a sua mãe diariamente na sua casa de fados.  

As primeiras digressões foram realizadas no início da década de 1970, com espectáculos em Angola, Estados Unidos e Canadá estreando-se no Brasil em 1973 onde cantou ao lado de Elis Regina, no Copacabana Palace do Rio de Janeiro.

A sua passagem pela televisão seria marcada no ano de 1972 por um programa semanal na RTP que produziria e apresentaria de nome "Convívio Musical" onde acolheu figuras reconhecidas do panorama musical português e internacional.

No ano em que representou Portugal no Festival da Eurovisão na Holanda ( ano de 1976) com a canção "Uma Flor de Verde Pinho", poema de Manuel Alegre com música de José Niza, Carlos do Carmo foi o único intérprete do Festival RTP da Canção desse ano, tendo posteriormente editado o fonograma "Uma Canção Para a Europa", onde se incluíam, para além da canção vencedora, temas como "Estrela da Tarde" (Ary dos Santos – Fernando Tordo), "No teu Poema"(José Luís Tinoco) ou "Lisboa, Menina e Moça"( Ary dos Santos e Joaquim Pessoa – Paulo de Carvalho e Fernando Tordo).

O fadista realizou espectáculos comemorativos, com forte impacte, dos aniversários da sua actividade nomeadamente nos 25, 30, 35, 40 e 50 anos de percurso. 

Na comemoração dos seus 30 anos de actividade na música editaria com as Selecções do Reader's Digest a colecção "O Melhor de Carlos do Carmo", onde apresentava um depoimento sobre cada um dos seus discos.

Nos 35 anos de actividade de Carlos do Carmo como fadista edita um CD correspondente ao espectáculo ocorrido para marcar essa data no grande auditório do Centro Cultural de Belém, na soma de 40 anos de actividade o palco escolhido para a apresentação é o do Coliseu dos Recreios em Lisboa, com posterior lançamento de CD e DVD do espectáculo. O Museu do Fado aliou-se a esta celebração apresentando a exposição "Carlos do Carmo: Um Homem no Mundo".

Em 2013 Carlos do Carmo completou 50 anos de actividade e editou «Fado é Amor», fonograma para o qual convidou um conjunto de fadistas de gerações posteriores à sua, como Mafalda Arnauth, Camané, Mariza, Raquel Tavares, Ana Moura, Aldina Duarte, Marco Rodrigues ou Ricardo Ribeiro entre outros. Reuniu do seu vasto repertório onze fados e regravou-os, juntando às vozes escolhidas para o acompanhar de  gerações mais recentes, a da sua mãe Lucília do Carmo através de uma antiga gravação procurando, desta forma, prestar-lhe uma homenagem.

As comemorações que assinalaram as cinco décadas de percurso do fadista foram festejadas com dois concertos esgotados no Centro Cultural de Belém, nos quais participou a Orquestra Sinfónica Portuguesa.

Carlos do Carmo sofreu um acidente durante um espectáculo em Bordéus no início do ano de 1990, uma queda de uma altura equivalente a um andar, que obrigou o fadista a uma longa recuperação. Em Março de 1991 o seu regresso foi feito no Casino Estoril com um espectáculo intitulado "Vim Para o Fado e Fiquei". Nesse  ano, a Casa da Imprensa, entrega-lhe o prémio “Prestígio”.

No dia 7 de Novembro de 2007,  o fadista apresentou no Museu do Fado o fonograma "À Noite", que reúne textos inéditos de Nuno Júdice, Fernando Pinto do Amaral, Maria do Rosário Pedreira, Júlio Pomar, Luís Represas, José Luís Tinoco e José Manuel Mendes para as músicas de Fados tradicionais da autoria de Armandinho, Joaquim Campos e Alfredo Marceneiro. Um lançamento que seria acompanhado de uma pequena mostra descritiva em torno do álbum.

A participação  como intérprete no filme de Carlos Saura  valeu-lhe a atribuição, em 2008, do prémio Goya "Melhor Canção Original", para o tema "Fado da Saudade", distinção da Academia Espanhola das Artes Cinematográficas.

O seu sucesso é inquestionável e da História do Fado fazem parte alguns temas célebres popularizados na sua voz. 

À data em que esta recolha é efectuada decorre a exposição dedicada à sua obra "Carlos do Carmo - 50 Anos". Exposição promovida pelo Museu do Fado patente desde dia 17 de Abril de 2014 até  28 de Setembro do mesmo ano na Cordoaria Nacional na cidade de Lisboa.

Na exposição, o diversificado percurso do fadista congrega um vasto acervo documental que engloba várias áreas, das artes plásticas aos filmes.

© 2014 Carlos do Carmo à conversa com Soraia Simões de Andrade, Perspectivas e Reflexões no Campo

Som, Pesquisa, Edição, Texto: Soraia Simões de Andrade

Fotografias: Helena Silva

Recolha efectuada em Lisboa na casa de Carlos do Carmo

 

 

 

 

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André Mehmari (músico, compositor brasileiro)

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André Mehmari (músico, compositor brasileiro)

83ª Recolha de Entrevista

Quota MS_00052 Europeana Sounds

 

André Mehmari nasceu em Niterói no ano de 1977 é um músico, compositor, instrumentista e arranjador fluminense cujo instrumento primeiro é o piano, onde habitualmente compõe.

As suas obras foram executadas por vários agrupamentos e Orquestras Sinfónicas como, em exemplo, as Orquestra Sinfónica do Estado de São Paulo (OSESP), Orquestra Petrobras Sinfónica ou Orquestra Amazonas Filarmónica, entre outras.

A sua paixão e desenvolvimento no universo da «música clássica» não o fizeram distanciar-se da música e cultura popular brasileira, gravou discos com o bandolinista Hamilton de Holanda, a cantora Ná Ozzetti, compôs, produziu e escreveu para vários músicos, alguns próximo da sua geração, como Leandro Maia e Adriana Calcanhoto e colaborou com muitos mais como, entre outros, Ivan Lins ou Mário Laginha.

No dia 12 de Abril de 2014 André Mehmari daria um concerto em Lisboa para o qual convidou o músico Leandro Maia, do qual é produtor, para um público que encheu o auditório do Museu da Música, esta recolha de entrevista foi realizada um dia depois do concerto do músico em Lisboa antes do seu regresso ao Brasil. Na parte da recolha que disponibilizamos no arquivo online, expressa algumas das relações que sente existirem na actualidade entre os músicos e compositores brasileiros e a indústria cultural, algumas das dinâmicas do seu trabalho quer no estúdio como em palco, o apreço que nutre e desenvolveu na sua pesquisa pela engenharia de som, o registo sonoro e a gravação, bem como algumas considerações acerca da relação nem sempre pacífica, tanto de poder como de resistência, entre música e política local e cultural.

Em 2010, André Mehmari assinou contrato com uma das mais prestigiadas etiquetas italianas EGEA, que viria a representar o músico na Europa e para a qual lançaria cinco discos solo 4 . O primeiro deles ("Miramari") foi gravado no Oratorio Santa Cecilia, no centro histórico de Umbra (Itália) e lançado nesse país.

Foram também alguns já os reconhecimentos públicos do músico: Prémio Nascente (USP-Editora Abril) - categoria Música Popular-Composição (1995) e categoria Música Erudita-Composição (1997). 1° Prémio Visa de MPB Instrumental (1998) são disso exemplo.


Fotografias: Ana Carolina. Fotografia de capa, concerto com Leandro Maia no Museu da Música
Recolha de entrevista efectuada no Chiado, Lisboa, ao ar livre

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Música Popular e Cultura

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Música Popular e Cultura

Partindo da ideia «A música Comprometida com uma realidade social», abordada por José Mário Branco no decorrer de uma conversa registada  para este trabalho, juntou-se um ciclo de três debates  com agentes distintos para discutir respectivamente os temas: «Músico Profissional que Futuro?» (Fernando Girão, Tozé Brito, Carlos Barretto, Fevereiro de 2013), «Música e Sociedade» (José Mário Branco, Sebastião Antunes, Maio de 2013), «Música e Política» ( Ruben de Carvalho, Manuel Rocha, 24 de Maio de 2014) e uma palestra sob o título (em jeito de pergunta retórica) «Estará a Música Popular sempre comprometida com uma realidade social?».

Destas sessões de entrada livre registadas para o Arquivo, que justificaremos no fim do ciclo confinado a esta directriz de base, salientam-se para já as seguintes questões e noções levantadas:

A tentativa de explicar os discursos contidos em domínios musicais no âmbito da cultura popular, a forma como estes se organizam à luz de determinados  valores que enformam as suas práticas, se representam nas suas músicas e textos, abrem por si mesmo espaço para a discussão acerca da cultura em geral e da prática musical em concreto na sociedade portuguesa.

As relações quer de poder como de proximidade e distância impressas pelos grupos sociais no seio da Música Popular[0] revelam indícios sobre os valores a negociar e os elementos contrastantes com a ordem social. Como acontece, de um modo explícito, com as designadas «músicas de protesto» ou com o «rap» ou de um modo implícito com músicas onde o recurso à metáfora em períodos socialmente, economicamente e politicamente fracturantes é intenso.

 «Uma canção de amor pode ser uma canção de protesto (…)  a luta que faço é uma luta por amor ao meu povo, porque eu quero ver os meus amigos bem, os meus filhos a crescer num mundo melhor (…) na melhoria, na melhoria», diz o rapper Chullage[1].

 

Paulo de Carvalho celebrizou o tema que seria usado por João Paulo Diniz na rádio no momento em que a ‘’Revolução de Abril’’ acontecia «E depois do Adeus», com música de José Calvário e letra de José Niza, tema com o qual o intérprete ganharia no ano de 1974 o Festival RTP da Canção, apesar de para este músico, longe de imaginar «no uso que iria ser dado a esta cantiga», o «cantor da revolução ser José Afonso, eu se estou na história é por acaso», assevera numa das nossas longas conversas no decorrer do trabalho publicado a 18 de Outubro de 2012 [2], ainda que para si «Uma canção de amor pode ser de protesto». Tanto o seu trabalho de compositor como as interpretações a que ficou ligado acabam por clarificá-lo em, a título exemplificativo, «Com uma Arma e uma Flor», «Quando um Homem Quiser» que interpretou ou «Recado para o Chico» de 1977 que representa uma resposta sua à canção «Tanto Mar» de Chico Buarque de Hollanda escrita em homenagem à ‘’Revolução dos Cravos’’.

«A música nunca inventou a política, é a política que inventa a música» diz José Mário Branco[3]. Mas, estiveram as perspectivas «neoliberais», os discursos dominantes, os agentes de promoção e difusão da música que foi sendo feita em Portugal, especialmente na viragem da década de 1980 para a de 1990, receptivos para a apreensão de um discurso diferente, uma música que se distanciava de uma retórica monolítica, ou de uma música atenta e crítica ao panorama social? «Quando eu estive na Polygram e na BMG, na função de A&R, eu tinha de ter música que vendia senão fechava a companhia (…) mas naqueles anos 80 o facto de ter discos que vendiam davam-me obrigação moral de gravar outros que eu sabia que apesar de bons músicos não venderiam tanto comparativamente com outros que vendiam muitíssimo bem (…) eu sabendo que o António Pinho Vargas era o músico brilhante que era vendia muito pouco, mas tinha obrigação de o gravar», diz-me Tozé Brito[4]. O facto de ter alguns nomes nessa companhia discográfica que vendiam permitia que outros que não eram tão conhecidos pudessem ser lançados reflecte o seu comentário, mas será que esse papel agregador, assumido pela indústria fonográfica, das «minorias» que à partida não iam vender terá sido claro para outros autores? José Mário Branco, que teria os primeiros discos de autor apoiados em pré-venda pelos movimentos associativos de emigrantes em França refere-se ao facto de «quando mostrei o ‘Ser Solidário’[5] ao Tozé Brito ele disse-me que já lá tinha um Sérgio Godinho» o que deixa antever um outro aspecto: o de que com a velocidade que a música foi sendo gravada («porque tinhas de ter um produto sempre novo no dia seguinte» diz Paulo de Carvalho a respeito do papel da indústria fonográfica no seu percurso primeiro como intérprete e depois como intérprete e compositor)  e difundida nos anos de 1980 muita coisa terá ficado pelo caminho.  

As relações de contacto e afastamento, do contornar a indústria cultural num processo delimitador frequente que tem na sua essência a fixação primeira de interesses económicos e posteriormente culturais é também uma relação com os públicos e as sociedades[6]. Se o «modo pelo qual uma sociedade ensina a sua música é um factor de grande importância para o entendimento daquela música» (NETTL,1992: 3), o modo pelo qual a música explica a sua sociedade é de grande importância para o entendimento daquela sociedade.

As abordagens e estudos da música como cultura cingem-se a uma  não separação da música e sociedade. 

No universo académico e de investigação, se por um lado longe parecerá que está o tempo em que no contexto das músicas de cariz tradicional, entre países com ligações à Europa e ao resto do mundo o conceito de mudança representou uma ameaça para a Etnomusicologia, onde se imaginava que o papel da música não ocidental era estático e o papel do investigador era preservá-lo sem questionar as mudanças socais, atitude que negligenciou uma série de comportamentos e mudanças nas músicas de todo o mundo (na primeira metade do século XX, para vários investigadores antes dos anos de 1950,  na sua maioria oriundos de uma cultura que colocava a música erudita num patamar distante e superior olhava-se com desconfiança tanto para as suas origens como para as músicas cujos contextos de transmissão e mudança eram recentes, devido não só à presença das rádios e editoras discográficas como das próprias mudanças culturais e extensão de metrópoles pluriculturais [7]), por outro lado a partir da segunda metade dos anos de 1980 que cresceu o número de teses e abordagens sobre práticas culturais em contexto urbano oriundas de outros pontos geográficos. As redefinições do papel da cidade e da sua ligação a novas culturas passou a fazer parte dos currículos académicos a uma crescente velocidade, tal qual a mutabilidade dessas culturas e do contexto novo que as recebe, com políticas para a promoção da interculturalidade que têm sido tão aplaudidas como severamente criticadas.

No universo de disciplinas ou áreas de estudo como a sociologia, antropologia social, estudos sobre música popular em contexto migratório aspectos como «gentrificação urbana», «políticas interculturais», «relações de paridade no universo da ‘lusofonia’» e o próprio conceito de «lusofonia» têm gerado o mais diverso tipo de argumentos e controvérsias  assim como um leque variado de opiniões desiguais entre intervenientes da música, incluindo a actividade cultural relacionada com algumas práticas tradicionais de países diversos espalhados por cidades um pouco por todo o mundo, e o discurso veiculado pelos meios de comunicação convencionais de massas [8].

A abordagem dos acontecimentos políticos, culturais e de indústria considerados relevantes, das suas práticas e repertórios musicais num determinado período e espaço geográfico e dos seus agentes têm sido os assuntos abordados no decorrer destes encontros de entrada livre, que têm contado com a presença de investigadores, músicos e autores, produtores e agentes discográficos.

 

[0]«Música Popular» é um conceito alargado que congrega todos os domínios musicais num contexto urbano, de gravação, de espectáculo, com públicos. Grande parte da música que conhecemos é popular. A não ser que seja feita para não estar em cima de um palco, não passar no cinema, na rádio, nos fonogramas (EP, single, LP, CD), não ser veiculada em quaisquer plataformas a que os públicos, comunidades, sociedades diversos tenham acesso.

 

Os Popular Music Studies, para nós Estudos de Música Popular, têm maior força a partir da década de 1980, mas a Música Popular existe desde que existe gravação sonora. Embora ela também existisse e exista tanto escrita como ágrafa. Seja no «swing», «jazz», «rap», no «fado», no «pop-rock» ou qualquer outro domínio ou género. Assim, quando alguém no âmbito comunicacional exprime na ligação de uma ideia, que é comum aliás, «o 'jazz' e a música popular» ou «o fado e a música popular» não faz sentido, porque estes domínios são também populares. Todos estes domínios na verdade o são. As elites que os formam é que são tratadas pela recepção musical de modos diferentes. É o papel da recepção, não o do interveniente na música, que cria tal confusão. «A gravação sonora está para a Música Popular, em qualquer um dos domínios que conhecemos, como a partitura está para a erudita» é uma afirmação também discutível, porque a gravação sonora atravessou já os dois universos. Presentemente não faz, dita assim, sentido. Por outro lado, esta confusão que  considero propositada levar-nos-á sempre à interminável discussão de uma «alta» e «baixa» cultura e dos códigos assimilados superficialmente dessa discussão por alguma da recepção. A Música Popular, o conceito em si, passa a ser mais significativo com a gravação porque simplesmente é ela que 'multiplica' as obras, as leva às pessoas, até porque a partitura limitava quem não sabia ler música. Hoje, no campo da «música improvisada e contemporânea» são usados nos processos de aprendizagem tanto um como outro método: quer o disco, o suporte sonoro, como a pauta. Na entrevista feita ao músico e compositor Filipe Raposo (disponível em arquivo) isso fica patente. Se (ou) virmos as composições de José Luís Tinoco no âmbito de uma Música Popular e o seu discursar sobre eles, (em arquivo Mural Sonoro) atentaremos outro aspecto: ela tinha características de «música clássica»  muito embora ele não lesse música e se inspirasse incialmente nos discos de musicais americanos.

[1] Recolha de Entrevista, Julho de 2012, Arquivo Mural Sonoro, disponível online

[2] «Passado Presente. Uma Viagem ao Universo de Paulo de Carvalho», Simões, Soraia, Chiado Editora, 2012

[3] Recolha de Entrevista, Maio de 2013, Arquivo Mural Sonoro, disponível online

[4] Recolha de Entrevista, Outubro de 2012, Arquivo Mural Sonoro, disponível online

[5] Sessão de Debate «Música e Sociedade», Maio 2013, Museu da Música, disponível online, Secção ‘Iniciativas Mural Sonoro’, portal: muralsonoro.com

[6] Vargas, António Pinho, « A ausência da música portuguesa no contexto europeu: uma investigação em curso», Revista Crítica de Ciências Sociais, 2007

[7]  Edgar Morin, p.26. 24, Cultura de Massas no Seculo XX

[8] Cidade: palco de cultura e comunicação, espaço de reflexão sobre turismo, Denise da Costa Oliveira Siqueira - UERJ, Euler David de Siqueira - UFRJ

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