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Recepção Musical 1

A ELEIÇÃO QUE NUNCA VAI TERMINAR PORQUE UM PAÍS ASSIM O QUER, por Wagner William

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A ELEIÇÃO QUE NUNCA VAI TERMINAR PORQUE UM PAÍS ASSIM O QUER, por Wagner William

[1] por Wagner William

Bolsonaro é fácil de entender.

Difícil é compreender o Brasil.

Descrever o que se passou no país nos últimos dez anos não é um exercício fácil. De 2008 para cá, viramos capa de revista em todo o planeta como exemplo de economia, pelo sucesso... e pelo fracasso. Sediamos uma Copa do Mundo em que a população reclamou muito mais do que vibrou, mas acabou orgulhosa de sua organização... e humilhada pelo 7 a 1. Realizamos até Jogos Olímpicos na cidade brasileira mais conhecida no exterior, pela beleza... e pela violência. Sentimos medo... de rolezinhos e de black blocs

Rolezinho? Black blocs? (Aqui atingimos um ponto de caos. Neste texto e na vida). Definitivamente, explicar rolezinhos – o encontro de jovens das regiões pobres nos elegantes centros comerciais até então (ah, que país) só frequentados por uma hermética classe média alta – e black blocs brasileiros – que surgem em tempos de liberdade e prosperidade econômica e desaparecem (ah, que país) em tempos de crise e repressão – ultrapassa o pretensioso objetivo deste texto. 

Nossa quimérica análise começa por 2008. Foi nesse ano – você deve se lembrar, amigo português – que um maremoto sacudiu a economia mundial. Uma crise que abalou os Estados Unidos, atravessou o Atlântico para atingir Portugal, devastar a Espanha e espalhar-se por toda a Europa. E o Brasil? Ah, aqui sempre é diferente. O presidente Lula, “o cara” conforme classificou Barack Obama, avisou: “vai ser uma marolinha”. E foi. Neste ano de sofrimento no planeta, os números do IBGE apontaram que no Brasil houve expansão em volume do Produto Interno Bruto (PIB) de 5,2% em relação ao ano anterior. É, parceiro, ninguém segurava esse país.

No início deste artigo, o autor já se rendia e garantia que explicar esses dez anos de Brasil não seria fácil. Assim, será necessário apelar e criar agora um brasileiro de ficção, mas tão real que seu nome não poderia ser outro. Vamos chamá-lo de João. Sua profissão não exige uma formação acadêmica. Pode ser um pedreiro ou mecânico. João, que sabia ler apenas palavras mais simples, vive com a esposa e três filhos na periferia de São Paulo, a maior cidade do país, mas sua moradia não possuía encanamento. A casa de banho era uma fossa aberta no quintal. Seu bairro não recebia cuidado do Estado. Não havia transporte, nem saneamento, e muito menos segurança.

Apesar disso, João gostava do presidente. Esse sim, repetia aos amigos, que concordavam com ele. João, homem honesto, não parava de trabalhar. Nunca tivera tanto serviço e juntara tanto dinheiro em sua vida. Decidira-se. Iria pagar do próprio bolso o encanamento e comprar material de construção para melhorar a vida da família. No dia combinado com a loja, o caminhão chegou. Os carregadores desceram e trouxeram a escolha de João. Uma moderna televisão com tela de 50 polegadas.

A casa de banho que esperasse. Afinal, João, que antes só prestava atenção em futebol, passou a ouvir e – até a entender – o seu presidente. Identificava-se com aquele homem. E Lula falava de economia. De um jeito fácil, explicava como as pessoas mais simples, como o João, poderiam agora comprar, comprar, comprar e até viajar de avião. E João acreditou. E assim seguiu. O que Lula pediu, João fez. Comprou tudo que pôde. Trabalhava de domingo a domingo. Um dia, chegou lá. Estava lá. Pela primeira vez, incluído. Não educacional ou socialmente, mas incluído pelo consumo. A onda surfada por Lula seguiu até os primeiros anos de Dilma Rousseff, a nova presidente para quem Lula pediu voto. João obedeceu. Afinal, agora sim, estava incluído. Não sabia, mas entrara para a Classe C, junto com seus amigos e milhões de brasileiros. Segundo o Instituto Data Popular, em 2013 a faixa 25% mais rica da população obtivera um crescimento real na renda de 12%; enquanto a faixa 25% mais pobre aumentara sua renda em 50%.

A inclusão pelo consumo. A lição de Lula. O aprendizado de João. Não só dele. A classe média que contratava os serviços de João foi ao paraíso. A Disney ficava na esquina. Uma vez, João, que conseguiu financiar uma passagem para visitar os parentes no Nordeste, encontrou seu patrão no aeroporto. João notou que isso causou um certo estranhamento, mas não se importou.

Contudo, no mesmo de 2013 em que João e seus vizinhos elevaram os rendimentos em 50%, uma série de protestos, a princípio contra o aumento da passagem de ônibus nas capitais, depois… contra a corrupção, depois… “contra tudo”, e depois… “contra tudo que estava aí”, marcou o fim do crescimento econômico. Surgiram os black blocs em verde-amarelo (aqueles que confundiriam os originais alemães ao protestar na hora errada e desaparecer na hora certa). Houve quem chamou de coincidência, mas não havia como negar. Os protestos marcaram o começo do fim do sonho brasileiro. Para mantermos o PIB como referência: em 2013, o crescimento foi de 2,3% em relação ao ano anterior. Em 2014, o número despencou para 0,1%.

João não soube desses números, mas os sentiu. Teve dificuldade para pagar o smartphone que comprara em dez prestações na livraria do centro comercial em que seu filho fazia rolezinho (com a crise, o número de rolezinhos diminuíra muito). Ao amigo português, uma outra explicação: as livrarias no Brasil vendem smartphones, videogames, notebooks e outros produtos com nome em Inglês. Vendem também livros, porém, refletindo o interesse da população e do estímulo que recebia de seu governo, cultura não era prioridade. Irritado e sentindo-se traído, João acompanhava as notícias sobre a corrupção na sua TV de 50 polegadas. Também assistia à programas populares de debates e entrevistas que, vira e mexe, convidavam um deputado que atacava o governo e defendia a ordem e o combate à corrupção.

E como esse deputado aparecia na televisão! João passou a gostar daquele homem. Ria de seu jeito exagerado e até, vá lá, concordava com algumas de suas ideias. Vibrava ao ouvir o deputado, um ex-militar, criticar a roubalheira do governo e dos deputados e defender uma radicalização na política de segurança. Os patrões de João, que agora o contratavam para serviços esporádicos, também reclamavam. João mesmo já havia sido assaltado duas vezes. O dinheiro que os ladrões levaram fez falta. Já não havia muita oferta de trabalho. Enfim, João percebera que estava de volta àquela linha que os economistas classificam de “da miséria” e por lá ficaria nos anos seguintes, informando-se pela TV (não mais a de 50 polegada, qe eu tivera de vender, mas uma outra bem menor) e confiando nas denúncias que recebia dos amigos pelo Whatsapp. Em uma livraria, nunca mais pisou.

Cada vez mais decepcionado, João ficou inconformado de vez quando sua TV lhe contou que Lula era dono de um sítio no Guarujá e de um tríplex em Atibaia. Ou algo assim, já que não entendeu direito, mas como a TV falava que aquilo era ruim, era melhor acreditar. Nem se abalou quando seu ex-ídolo foi preso. Porém, não se esquecia era daquele deputado, Jair Bolsonaro, cidadão honesto, correto, direito, religioso, um patriota defensor da moral, dos valores da família, dos bons costumes. João nunca entendeu porque algumas pessoas falavam tão mal daquele homem. Quando soube que ele seria candidato a presidente, decidiu-se na hora. Seu voto era dele.

A visão pueril e simplista apresentada até agora cobre apenas uma faceta do enorme e variado eleitorado de Bolsonaro, mas, acredite, baseia-se em uma pessoa real e foi escolhida porque nele se concentra a mais profunda mudança, não de ideologia, mas de sentimento. Isso aqui não é um país feliz. Há muito mais atrás dos votos de Bolsonaro. Está tudo lá, gritando nas urnas que o elegeram. Bolsonaro explica-se por ter vomitado tudo isso na cara do eleitor. Das mais racionais decisões ao pior do ser humano. 

Na escolha de quem rejeitava totalmente o PT a quem simplesmente defendia uma política de livre mercado sem interferência do Estado. 

De quem fez campanha por Lula contra os velhos donos do poder e sofreu ao descobrir que esses donos do poder estariam em seu governo.

De quem se desencantou ao perceber que seus antigos ídolos – dessa vez, aqueles que combatiam Lula - eram os primeiros a ter conta na Suíça. 

De quem não recebeu um estímulo de cultura e conhecimento a quem achava que estava informado ao ler seu Whatsapp. 

De quem estava cansado de ter medo de sair de casa e ser assaltado.

De quem até não queria Bolsonaro, mas via a presença de Lula em qualquer outro candidato. 

De quem adorava ver um juiz dando ordens (corretas ou não, pouco importa)… e como o brasileiro gosta de receber ordem…

De quem  pensava que políticas de inclusão social faziam mal a um país. 

De quem não sabia o que dizia, mas se dispunha a lutar pela própria ignorância.

De quem votou em Jânio Quadros e arrependeu-se. De quem aplaudiu o Golpe Militar e arrependeu-se. De quem votou em Fernando Color e arrependeu-se. De quem achou que a saída de Dilma iria consertar o país e arrependeu-se.

De quem - estava lá no Whatsapp - acreditava que o Brasil poderia ser dominado pelo Comunismo.

De quem até gostava de sua empregada doméstica (fenômeno social tão brasileiro), mas almoçar na mesma mesa com ela já era demais.

De quem cevava um sentimento de ódio a homossexuais, mas reprimiu sua opinião até encontrar naquele  candidato tudo que desejava.

De quem achava que a minha autoridade era ruim , mas a dele era ótima.

De quem ama arma de fogo.

De quem concordava que a ditadura militar matou muito pouco.

De quem sempre quis ser torturador.

De quem pedia a morte como solução.

Como toda tragédia brutal que se preza, Bolsonaro presidente é resultado de uma conjunção perfeita de uma série de inúmeros  desastres, tolerados costumes, adversidades, fatos concretos, azares e desgraças a que o brasileiro estava cegamente acostumado. 

[1] para citar esta opinião: **William, Wagner «A eleição que nunca vai terminar porque um país assim o quer», plataforma Mural Sonoro, em 3 de Novembro de 2018, https://www.muralsonoro.com/recepcao.

Fotografia de capa: Avenida Paulista, São Paulo no dia da eleição de Bolsonoro, nuvens assustadoras (Wagner William em São Paulo)

*Jornalista e Escritor, Prémio Vladimir Herzog de Jornalismo

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O ódio e suas tecnologias, por Susan de Oliveira

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O ódio e suas tecnologias, por Susan de Oliveira

[1] por Susan de Oliveira

A extrema-direita se impôs no Brasil pela primeira vez através do voto. Levou ao poder Jair Bolsonaro e para isso promoveu não só um fenômeno eleitoral mas uma profunda alteração cultural e política.

A maioria relativa que levou à eleição de Bolsonaro é adepta das ideias do ex-capitão mas se define como descrente nas suas ameaças e se diz, sobretudo, antipetista. Por sua vez, o antipetismo não se reduz ao bolsonarismo que se nutre do racismo e do machismo estruturais, da manipulação do fundamentalismo evangélico e de ideias nazifascistas latentes na sociedade sendo sua resultante a violência racial, de gênero, contra os pobres, a intolerância religiosa e ideológica generalizadas cultivadas sob o rótulo de anticomunismo.

O antipetismo é um fenômeno complexo de várias nuances que abarcam, por exemplo, tanto uma crítica à esquerda, partidária e acadêmica, como a repulsa racista das elites brancas e liberais às políticas de inclusão dos pobres e negros feitas no governo Lula. O vários tipos de antipetismo, no entanto, seguramente têm seu mais enfático pressuposto no discurso anticorrupção. O discurso contra a “corrupção do PT”, principal partido de centro-esquerda que governou o país por três mandatos consecutivos, dois de Lula e um de Dilma (o segundo dela foi interrompido por um golpe jurídico-parlamentar), se tornou um pressuposto amplamente aproveitado eleitoralmente mesmo sendo o PT apenas o 9º partido da lista em que figuram políticos envolvidos em processos e sendo os governos petistas os que mais produziram as condições técnicas e institucionais para o combate à corrupção. Praticamente todos os partidos de direita estão à frente do PT nesta lista.

A propaganda do combate à “corrupção do PT” foi implementada pela Operação Lava Jato, conduzida pelo Juiz Sérgio Moro que será o Ministro da Justiça do governo Bolsonaro, e se tornou famosa com a prisão do ex-presidente Lula que teve sua participação impedida no processo eleitoral o qual, é bom que se diga, ele venceria por larga margem de votos.  Desde então, este se tornou um conhecido processo de lawfare e o mais importante caso de prisão política no Brasil desde a ditadura militar em face da ausência de crime e de provas em sua sentença condenatória e finalmente com a sua exclusão do processo eleitoral.

O PT chegou como sobrevivente à disputa presidencial com Fernando Haddad, um substituto escolhido por Lula, que fez uma campanha de ascensão vertiginosa em pouco mais de 30 dias. Obteve um votação expressiva dentro de um quadro de poucos apoios e muitas fake news que deram um rumo absurdamente violento nos momentos decisivos da campanha eleitoral, tanto nas vésperas do encerramento da primeira volta como da segunda. Mentiras foram criadas e distribuídas em ritmo e proporção industrial para difamar e criminalizar Fernando Haddad de forma abjeta. Milhares de disparos das fake news em grupos no WhatsApp teriam sido pagos ilegalmente por empresários, conforme noticiou o Jornal Folha de São Paulo, no dia 19 de outubro, tendo como consequência o cancelamento pelo próprio WhatsApp de mais de cem mil contas de agentes ligados à tal distribuição.

A estratégia da difamação foi bem sucedida na eleição de Donald Trump e utilizada no Brasil por influência do seu idealizador, Steve Bannon, consultor de estratégia eleitoral da família Bolsonaro e do seu partido, PSL.

A reação moralista às mentiras escandalosas contra Haddad foi estimulada pelo fundamentalismo religioso em longos cultos nas igrejas e visava sobretudo atingir o eleitorado evangélico onde Bolsonaro tem seu principal apoio e cujo máximo expoente é o Bispo Edir Macedo, dono da IURD e da Rede Record, agora chamada de “Fox brasileira”.

O efeito moral das fake news direcionadas ao eleitorado evangélico, no entanto, foi detectado no dia seguinte às gigantescas manifestações do Movimento #EleNão (Mulheres contra Bolsonaro) convocadas por grupos no facebook e ocorridas no dia 29 de setembro. Uma expressiva vantagem numérica nas pesquisas de intenção de votos chamou a atenção para o que se produzia no submundo das redes sociais:  imagens manipuladas de outras manifestações que continham nudez e contestação religiosa foram associadas às manifestações. Tudo absolutamente inverídico para o evento realizado mas devastador para as pessoas mais humildes e conservadoras atingidas pelo dispositivo de manipulação psicológica criado pelos processos de seleção de público da Cambridge Analytica.

Naquele momento, portanto, se deu a irreversível assimilação de segmentos da centro-direita conservadora e das classes populares evangélicas à candidatura Bolsonaro mudando a correlação de forças na disputa eleitoral.

O bolsonarismo que trinfou eleitoralmente junto com Bolsonaro foi forjado pela reunião de fobias, desinformação, mentiras e manipulações vulgares e percebeu-se que o ódio e a violência foram ativados especialmente por questões morais suscitadas no ambiente das obscuras tecnologias de informação e pela manipulação de dados obtidos ilegalmente de perfis pessoais.

Isso se somou ao efeito dramático do atentado à faca sofrido por Bolsonaro ás vésperas do Dia da Independência, um feriado militar que evoca o outro elemento que potencializa a violência e canaliza os moralismos para a memória da ditadura e da “solução final” de todos os “inimigos” internos.

Um mês depois da facada que “humanizou” Bolsonaro, a primeira volta das eleições deu uma expressiva vantagem de votos a qual elevou ao grau máximo as tensões da campanha e deflagrou uma série de ataques, com cinco mortes, contra eleitores de Fernando Haddad e minorias. O primeiro a morrer foi Mestre Moa do Katendê, um artista popular negro, conhecido capoeirista e músico da Bahia. Ele recebeu doze facadas de um bolsonarista por ter declarado voto em Haddad.

A morte de Mestre Moa criou uma comoção nacional mas, ao contrário do que se poderia esperar, não serviu como advertência e estimulou que houvesse mais de oitenta casos de agressões e outras quatro mortes:  três de mulheres transexuais, Priscila, Laysa e Kharoline, assassinadas a facadas, culminando com a execução de outro jovem negro, no Ceará, Charlione Lessa Albuquerque, este com quatro tiros, às vésperas do término das eleições.

Os vencedores estão agora nas ruas prometendo implementar a nova ordem assim que forem liberados a posse e o porte de armas, movidos por ódio e um empenho moral de limpeza política, social e racial vasculhando os porões da escravidão e da ditadura militar reabilitando torturadores e genocidas à história, coisa que o próprio Bolsonaro já fez várias vezes e reiterou recentemente com suas ameaças de eliminação partidos, lideranças e ativistas de esquerda, como Marielle Franco, e dos movimentos sociais, como MST e MTST.

Não se sabe ao certo que medidas serão tomadas contra as liberdades civis e políticas das que foram anunciadas por Bolsonaro, mas restou o bolsonarismo que mesmo sem manifestar-se como uma ameaça real, criou a desconfiança de quem está ao nosso lado, o ódio entre conhecidos e familiares, a ruptura dos afetos e da comunicação, a demonização dos corpos e pensamentos que compõem o cenário de terror ao atravessar a rua.

Como conviver com o fascismo é o nosso desafio. Combinamos de não soltarmos as mãos de ninguém, de não nos deixarmos morrer, mas antes fosse a luta pela própria sobrevivência o que mais importa, embora tenhamos medo. Na verdade, enquanto o fascismo cresce entre nós, são negociados os projetos mais brutais do ultra-liberalismo que serão aprofundados para além do governo Temer e nos farão descer ao pré-sal da colonização com Bolsonaro aos pés de Trump e Netanyahu. E é disso que se trata:  o ódio bolsonarista forjado no antipetismo serve à ganância do sistema financeiro, à guerra e à predação mortal contra todos os seres vivos que levam um governante a ameaçar de extermínio o próprio povo: não haverá Amazônia, segundo o presidente eleito, “nem um centímetro para quilombola ou reserva indígena”. Nos resta atravessar a rua.

[1] para citar esta opinião: * Oliveira, Susan de, «O ódio e suas tecnologias», plataforma Mural Sonoro, em 2 de Novembro de 2018, https://www.muralsonoro.com/recepcao.

*Susan de oliveira, professora de literatura e pesquisadora brasileira (UFSC)

Fotografia de capa: Mestre Moa



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Uma Terra em Brasa, por Pedro Calasso

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Uma Terra em Brasa, por Pedro Calasso

[1] por Pedro Calasso


Nunca imaginei viver um momento como este.

Não desta maneira. Sempre achei que algo crítico aconteceria.

O clima morno, panos quentes e séculos de sujeira varrida pra de baixo do tapete, inevitavelmente seriam trazidos à tona como uma infecção que é expulsa de um organismo que não mais a suporta.

Pensei porém que essa luta seria travada de forma clássica, entre o povo e seus opressores, numa nítida luta de classes onde esses inúmeros brasis de matrizes indígenas, africanas, européias e orientais se uniriam e cobrariam dos menos de 10% da população que detêm a riqueza do país, o fim dessa exploração desmedida ao qual nos submetem há tanto tempo.

O Brasil tem mais de 300 nações indígenas, com línguas e culturas distintas, cerca de 400 ritmos afrobrasileiros, sendo que na África inteira existem por volta de 200. Tem a maior colônia japonesa fora do Japão, tem turcos, libaneses, sírios, portugueses, espanhóis, italianos e alemães entre outros povos e culturas, fazendo com que o povo brasileiro, tão bem descrito nas obras de Darci Ribeiro, seja o povo mais miscigenado e multicultural do planeta.

Na rua e nas massas todo povo é povo.

Somos generosos e donos de uma cultura intensa, plural e viva.

Mas na relação com o Brasil que manda, com o Brasil do poder e do capitalismo propriamente dito, provavelmente somos o país mais injusto do mundo.

O racismo nesse âmbito é cruel e mata.

O descaso, a ganância e a crueldade varrem nações indígenas inteiras do mapa.

O pobre, independente de sua cor ou descendência, representa uma ameaça ao estilo de vida da elite e precisa ser combatido.

Aqui, matar pobre, jovem, mulher, preto e homossexual é institucionalizado.

A fortuna e o conforto de dúzias de famílias sempre ditaram nossa sorte e exatamente contra isso e pela verdadeira libertação do pobre, do preto e do indígena, que ainda vivem sob o cabresto de seus senhores é que achei que lutaríamos juntos, como um só povo.

Mas na contramão à minha crença e usando de toda forma de artifícios, fomos rachados ao meio, numa manobra precisa da extrema direita aliada a um grupo de investidores, tornando possível à alguém como Bolsonaro chegar ao poder através do voto aberto.

Os problemas reais da economia brasileira, o sistema político e financeiro corruptos e o momento delicado da economia mundial foram usados de forma ardilosa por um grupo que representa os interesses de investidores multinacionais, que através a derrubada de Dilma Rousseff (PT) da presidência e a demonização da esquerda brasileira, chegaram ao poder.

Com a ajuda de um especialista de renome internacional em manipulação da opinião pública e de boa parte da “grande mídia brasileira”, plantou-se a ideia de que todos os problemas seculares de nossa nação foram criados ou aprimorados durante os anos do PT na presidência e que vivemos sob a ameaça de uma “ditadura comunista”.

Através de um investimento ilícito e milionário foi desenvolvida uma campanha sofisticada para disseminação de fake news banalizando movimentos populares, promovendo o ódio pela esquerda e o antipetismo que se multiplicou dentro de vários setores da sociedade.

Essa massa no geral é formada por pessoas inconformadas com os problemas no sistema público e a corrupção no país e que foram absorvidas por esse conceito de antipetismo, também por empresários que vêem nesse governo a possibilidade de enriquecimento, além de extremistas, fascistas e fundamentalistas religiosos, que se juntaram num coro quase insano de ódio e intolerância a favor do armamento da população, da diminuição da maioridade penal, da atribuição do poder de execução dado às polícias, da perseguição aos homossexuais, às religiões afro-brasileiras, às nações indígenas e mais uma série de conceitos nazi fascistas.

Meio a tudo isso acabamos polarizados, somos nós e eles, eles e nós e não estou falando dos extremistas ou empresários não, estou falando é do povão mesmo.

Fomos divididos para que eles pudessem conquistar o poder e nessa divisão é que mora o perigo.

Vivemos na iminência de uma guerra civil, um golpe militar e uma cooperação militar entre Bolsonaro e Trump para uma possível invasão na Venezuela.

O armamento pesado “doado” pelo governo norte americano chega aos montes.

Existe ainda o desejo de multinacionais de minerar em plena floresta amazônica e de se ampliar exponencialmente a área utilizada pelo agronegócio brasileiro e para isso será preciso derrubar todas as leis de proteção ambiental, o que está em curso com a “fusão” do Ministério do Meio Ambiente com o Ministério da Agricultura.

Que isso tudo vai dar em algum lugar terrível para o Brasil e o planeta já é certo.
Tendo a acreditar que disso tudo há de nascer algo bom, uma esquerda renovada, uma sociedade mais justa, novas manifestações e movimentos artísticos, pois como resposta à barbárie temos o costume de mostrar o nosso melhor.

O quanto isso irá nos custar?, é o X da questão.

[1] para citar esta opinião: *Calasso, Pedro «Uma Terra em Brasa», plataforma Mural Sonoro, em 1 de Novembro de 2018, https://www.muralsonoro.com/recepcao.

*Músico e compositor brasileiro

Fotografia de capa neste artigo: montagem de Pedro Calasso para Mural Sonoro.




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O que nos resta do regime militar, por Diego Pacheco

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O que nos resta do regime militar, por Diego Pacheco

[1] por Diego Pacheco

Já tarda de muito, o momento em que a Revolução se houvesse institucionalizado realmente, garantindo ao País a segurança de que, numa perspectiva de longos anos, tudo poderá ocorrer sem sucessivos retornos a medidas revolucionárias.

Gen. Golbery de Couto e Silva (Chefe da Casa Civil do governo Geisel, 1974)


O regime autoritário brasileiro distinguiu-se pela prolongada existência e preservação da capacidade de intervenção militar, com a presença no poder de um grupo dirigente voltado para a questão da institucionalização política, seja ao assumir a condução do Estado em 1964, seja ao comandar a lenta transição até à constituição de um governo civil em 1985.  

Assumindo a liderança do regime em 1974, o general Ernesto Geisel que em nenhum momento acenou com a possibilidade de eleições livres e diretas para a escolha do próximo presidente, tal como exigia a oposição democrática, deixou bem claro que os instrumentos de exceção permaneceriam "até que sejam superados pela imaginação criadora, capaz de instituir, quando for oportuno, salvaguardas eficazes dentro do contexto constitucional". O objetivo que se desenhava, assim, continuava a ser o da institucionalização de um regime que anunciava medidas liberais, mas as condicionava à consolidação do projeto autoritário.

A implementação das medidas liberalizantes iniciadas por seu governo estava condicionada à institucionalização de um tipo de regime autoritário com restrições democráticas, o que significa que no projeto de distensão/abertura, a retirada das Forças Armadas da direção do Estado implicava mais do que a sua substituição por um esquema civil de confiança baseado no partido do governo, de modo a preservar os interesses institucionais das corporações.

Como integrantes do aparelho de Estado, os militares deveriam continuar a exercer sua influência sobre as questões em discussão pelos atores do sistema político e da sociedade civil, a fim de garantir a institucionalização de um poder político voltado, sobretudo, para moderar a participação popular tanto na constituição de governos quanto na formação das suas decisões.

Se retirando das instituições de poder político no decorrer da década de 1980, os militares acompanharam a sucessões de governos civis iniciados por um membro da ARENA, José Sarney, seguido por uma intensa crise no novo sistema político brasileiro: o impedimento do primeiro presidente eleito Fernando Collor de Melo em 1992.

Com a estabilização da economia e a contenção do grave problema inflacionário, o sistema polítco brasileiro passou por um período da estabilidade e de ascenção das classes populares, gerando maior distribuição de renda, combate a fome e a miséria, problemas antigos brasileiros, agravados inclusive durante o período ditatorial na segunda metade do século XX.

Com a crise econômica no final da primeira década do século XXI a social democracia brasileira, no governo há mais de uma década, passou a ter dificuldades em manter sua política de atendimento das demandas populares e, ao mesmo tempo, manter as altas taxas de lucros do sistema financeiro e de setores empresariais que ainda sustentavam seus governos. Perdendo o apoio de parte da sociedade, o pacto socialdemocrata se rompe, inviabilizando o governo Dilma Rousseff por meio de um entrave legislativo e uma sistemática campanha mediática que cobrava ao governo por medidas liberais que estancasse o gasto público com programas sociais e de investimento em serviço público.

Assim como em outras partes do mundo, a campanha contra a socialdemocracia passou a relacionar os gastos públicos com a bandeira sempre útil da corrupção, chamando a atenção da sociedade civil para a relação promiscua entre empresas e o estado, onde empreiteiras se beneficiavam de contatos políticos para garantir licitações e aumentar ainda mais seus lucros em troca de apoio político e financeiro.

Com a crescente perda de credibilidade da socialdemocracia, com o profundo fisiologismo dos partidos de centro e com a debilidade política da democracia cristã, a resposta mais imediata da direita brasileira é em revisitar um passado mítico do regime militar. Isso só é possível graças ao projeto bem sucedido de institucionalização do regime, que, além de controlar todo o processo de anistia política, inclusive com a ideia de auto anistia, manteve instituições policiais e jurídicas criadas no periodo autoritário, chamados por muitos de entulhos autoritários.

Tais entulhos jamais foram retirados da sociedade brasileira. O elogio à tortura, a violência política e a ascensão da ultradireita brasileira só é possível devido ao sentimento romantizado acerca de um período que como sociedade nunca fomos capazes de encarar criticamente nas escolas. A discussão sobre Ditadura Militar nunca saiu efetivamente dos muros acadêmicos. O sucesso de sua institucionalização se deu sobretudo por meio de um pacto de silêncio dos mais diversos atores políticos que hoje se tornam vítimas de seus próprios contratos.

[1] para citar esta opinião: *Pacheco, Diego «O que nos resta do regime militar», plataforma Mural Sonoro, em 1 de Novembro de 2018, https://www.muralsonoro.com/recepcao.

*Professor, historiador, pesquisador brasileiro (UFSC)


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Brasil, começar de novo?, por Ivan Lins

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Brasil, começar de novo?, por Ivan Lins


[1] por Ivan Lins

Queridos amigos e queridas amigas em Portugal,

A verdadeira democracia brasileira, moldada na alegria, no pacifismo, na gentileza, na liberdade de expressão, na de gênero, na de religião, acaba de sofrer um baque, que se perpetuará por quatro anos no mínimo.

Avanços em algumas áreas estão prometidas? Mas, vários retrocessos também. O que, de uma certa maneira, segue o que vem acontecendo no mundo. A extrema direita vem se espalhando lentamente. Em minha opinião, muito por incompetência do centro e da esquerda. A esquerda que muitas vezes se abraçou à arrogância, à prepotência e à soberba.

Fala-se em corrupção. Esta existe de qualquer lado, ela naufragou todas as teorias ideológicas, dada a variada natureza humana, que não a levaram em conta. 

A busca do poder, com seus confortos financeiros, levou esses ‘‘espertos’’ a ‘‘lutas’’ que usaram da sedução e de corporações ricas, com seus interesses meramente oportunistas, especialmente o de serem bem sucedidos.

Demagogia, corrupção, má fé, incompetência e ineficiência, levaram o Brasil a uma situação econômica trágica. Desta situação trágica, emergiu o que muitos e muitas julgarão ser o "salvador da pátria", com um discurso duro, de temperamento incendiário, agressivo, reacionário.

Assumiu sua novidade com promessas sedutoras, de forma fanática, se oferecendo como antídoto seguro contra o desastre das administrações anteriores, explorando a imensa e cega raiva e ódio de grande parte da população. Anestesiou raciocínios e o bom senso, explorando a imensa ignorância aflorada no país. Momento certo, no lugar certo, infelizmente. Ajudando a eleger outros novos, que sabemos aqui, dotados de competência e honestidade duvidosa. Tudo em nome da ‘‘renovação politica’’, e ‘‘afastamento de antigas’’, e, convenhamos, também duvidosas, lideranças políticas. 

Gostaríamos de que, ao menos, o menos pior se revelasse. Temos muitas dúvidas quanto a isso. A verdadeira democracia está ameaçada.

O bom é que a oposição popular é bastante grande também. O que pode obrigar ao ‘‘messias de tacape’’ a ter que optar por medidas menos levianas.

O Congresso, agora dividido, não será tão puxa-saco, como foi o da maldita ditadura anterior, de tão triste lembrança? Quando os militares, além da violência, fizeram vista grossa para a imensa corrupção, que já vicejava naquela época?

Tempos bem complicados, neste meu Brasil querido, estão chegando.

Mas jamais derrubarão, no sentimento dos verdadeiros democratas, a eterna esperança pelo sol brilhante a prevalecer sobre as trevas.

[1] para citar esta opinião: Lins, Ivan «Brasil, começar de novo?», plataforma Mural Sonoro, em 29 de Outubro de 2018, https://www.muralsonoro.com/recepcao.

*Músico e Compositor brasileiro

Sugestões de escuta:

1) Sarah Vaughan que também gravou músicas, como esta, de Ivan Lins. «Começar de Novo» foi uma das canções de Ivan Lins e Vitor Martins censuradas no período da ditadura militar brasileira. 

2) Ivan Lins, História Oral, Mural Sonoro, entrevista a Soraia Simões em 2013 aqui

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Banda Filarmónica de Pinhel: da fundação até aos nossos dias, por Ana Pinto

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Banda Filarmónica de Pinhel: da fundação até aos nossos dias, por Ana Pinto

[1] por Ana Pinto

As bandas filarmónicas são dos agrupamentos musicais de índole popular mais disseminados pelo nosso país. Com uma forte tradição na divulgação da arte musical e da cultura popular em geral, têm tido, desde que surgiram, um papel preponderante na formação de miúdos e graúdos e, inclusivamente, na sua integração social.

Há quem as apelide de “conservatórios do povo” por serem verdadeiras escolas de música dita não erudita, mas de onde saem alguns dos maiores nomes da música nacional. Criadas em Portugal há cerca de dois séculos, proliferam por todo o país, em aldeias, vilas e cidades, e são assumidas como verdadeiros veículos de transmissão cultural e de valores.

A Banda Filarmónica de Pinhel, da qual faço parte enquanto instrumentista (clarinete) há quase 17 anos, é uma das centenas de filarmónicas existentes por todo o território nacional e, apesar de interruptos, conta com mais de uma centena de aniversários, assumindo um forte papel de educação cultural e musical dos indivíduos que habitam tanto na cidade como nas aldeias do concelho.

Da sua história, difusa e bastante dispersa, pouco se sabe. Sabe-se que não tem uma existência ininterrupta, tendo passado por várias crises ao longo das décadas que provocaram sucessivos términus e recomeços, com mudança do modo de gestão, organização e, até, da sua denominação.

Até à data, nunca ninguém se debruçou sobre a história desta Instituição pinhelense que, atrevo-me a afirmar, é das mais antigas da cidade, ficando apenas atrás (no que à data de fundação diz respeito) da Santa Casa da Misericórdia e dos Bombeiros Voluntários.

Não obstante o facto de, actualmente, não ser o único grupo musical da cidade, foi um dos primeiros – ou, mesmo, o primeiro – a ser fundado, pelo que merece que lhe seja reconhecida a devida importância e longevidade.

O meu profundo interesse e curiosidade pela história da Filarmónica onde cresci e cresço todos os dias levaram-me a iniciar uma investigação sobre a mesma. Quando comecei, em meados do ano 2015, o projecto era apenas de ordem pessoal, que desenvolvia nos tempos livres com o objectivo de recolher, sobretudo, dados históricos.

Mais recentemente, a vontade de prosseguir a minha formação académica levou-me a procurar um curso através do qual pudesse desenvolver esta investigação numa vertente científica. Deste modo, a investigação que tenho em curso sobre a Banda Filarmónica de Pinhel servirá de tema para a dissertação do Mestrado em Estudos de Cultura que iniciei no presente ano lectivo na Universidade da Beira Interior.

Recuperar, sistematizar e divulgar a história da Banda Filarmónica de Pinhel é o objectivo maior desta investigação. Adicionalmente, espero que a mesma sirva para promover a Instituição e aproximá-la da comunidade pinhelense que, segundo a minha experiência pessoal, não lhe atribui nem reconhece o seu devido valor. Por outro lado, com a realização deste estudo de mestrado, pretendo igualmente inquirir a população de Pinhel com o intuito de avaliar e perceber o seu grau de conhecimento em relação a esta Filarmónica, bem como a valorização e importância que cada um lhe atribui.

Pelos dados que já me foi possível recolher, a origem da música de grupo em Pinhel remonta, sensivelmente, ao século XIX e está relacionada com a presença de unidades militares na cidade. De acordo com essas informações, em finais do século XIX estava aquartelado na cidade o Regimento de Infantaria 24, que teria uma Banda Militar. Mais tarde, sabe-se que também o Regimento de Infantaria 34 (instalado em Pinhel entre 1918 e 1926) teve a sua banda de música e que, esta última, coexistiu com a primeira banda filarmónica civil da Cidade Falcão.

Os músicos e a música militar existentes na cidade acabaram por, invariavelmente, ter influência na criação e manutenção da filarmónica que surgiu em Pinhel nos primeiros anos do século XX uma vez que alguns músicos militares foram músicos da banda civil, tal como aconteceu com alguns dos seus maestros.

A investigação conta já com uma vasta pesquisa em diversas fontes: imprensa local e regional, documentação existente no Arquivo Municipal de Pinhel, bibliografia local, bem como diversas entrevistas realizadas a antigos músicos e ao responsável pela criação da actual versão da Filarmónica, em actividade ininterrupta desde meados de 1986.

A pesquisa em fontes documentais ainda está a decorrer, visto que há alguns jornais e outra documentação a consultar, e a realização de entrevistas a antigos músicos também está por terminar.

Não obstante este facto, a investigação segue a bom ritmo. Já consegui recolher dados bastante importantes e tenciono que o estudo esteja concluído em 2020, altura previsível da apresentação pública dos resultados com a defesa da referida dissertação de mestrado.

Numa altura em que a temática das bandas filarmónicas e da filarmonia ganha cada vez mais espaço no meio académico, considero pertinente a realização deste estudo com suporte científico, dando o meu contributo para o estudo destas matérias no seio das nossas universidades. Ao mesmo tempo, espero que o trabalho possa engrandecer a Instituição aos olhos da comunidade e contribuir para enriquecer a cultura da cidade e do concelho de Pinhel.


[1] para citar este artigo: *Pinto, Ana «Banda Filarmónica de Pinhel: da fundação até aos nossos dias», Plataforma Mural Sonoro em 27 de Outubro de 2018, https://www.muralsonoro.com/recepcao.

Fotografia de capa, Banda da Legião Portuguesa (Pinhel) - Ano de 1948, espólio da Casa do Povo de Pinhel.

*Professora de clarinete e saxofone na Academia de Música de Pinhel. Estudante de Mestrado.


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Hugo Ribeiro (1925 - 2016): narrar e gravar o invisível, por Soraia Simões de Andrade

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Hugo Ribeiro (1925 - 2016): narrar e gravar o invisível, por Soraia Simões de Andrade

 

Amália: repertórios (in) visíveis

«Eu estive lá em casa nessa noite! A Amália, como nunca tinham editado um disco com o nome dela na autoria, metiam o nome de um outro qualquer, convidou o Varela para aparecer como compositor daquele fado, que era da Amália (referindo-se a ''Estranha Forma de Vida''). A Amália fez, mas ainda estava naquela vergonha de aparecer como poetisa. Depois editou livros e tudo, mas naquela altura haver uma mulher que se assumisse como autora não era bem visto».

 

Hugo Alves Fernandes Ribeiro, nascido  em Vila Real de Santo António, na Miguel Bombarda às três da tarde do dia 7 de Agosto, como fez questão de frisar ao longo da nossa conversa ocorrida em Setembro de 2015 na sua casa de Lisboa, um dos nomes incontornáveis da música gravada em Portugal, estando directamente ligado a Amália, Marceneiro e a tantos outros.

Quando falamos de um dos mais importantes espaços para a indústria musical, nomeadamente na gravação e reprodução de fonogramas, a Valentim de Carvalho, falamos invariavelmente do trabalho que desempenhou ao serviço dos estúdios em Paço de Arcos. A história individual de Hugo Ribeiro é uma parte importante da história da música produzida neste país, mas também da sociedade e sistemas organizacionais e políticos que a acolheram, como manifestou o nosso diálogo gravado.

O seu trajecto profissional na editora Valentim de Carvalho começou em 1945, primeiro na secção de músicas e mais tarde na secção de discos. A sua ligação quer laboral como afectiva manteve-se até ao final da sua vida. Mesmo após a sua última gravação, na década de 90, Hugo Ribeiro continuou a ser uma presença assídua  em Paço de Arcos.

Foi precursor de metodologias e técnicas de gravação quando os estúdios ainda contavam com recursos primários, assistindo ao seu desenvolvimento.

Rui Valentim de Carvalho convidou-o para a Valentim de Carvalho, confiou-lhe trabalho e amizade, Hugo Ribeiro tornou-se o primeiro técnico da Valentim de Carvalho com uma produção notável e um dos mais célebres e reconhecidos engenheiros de som portugueses, uma referência para uma geração seguinte de técnicos e engenheiros de som.

Das centenas de músicos  que gravou em distintos formatos físicos destacam-se  referências de vários universos da música popular como Amália e Celeste Rodrigues, Alfredo Marceneiro, Lucília do Carmo, Maria Teresa de Noronha, Carlos Ramos, Tristão da Silva, Hermínia Silva, Beatriz da Conceição, Fernanda Maria, Max, Fernando Farinha, Carlos do Carmo,  Carlos Paredes, António Variações, Rui Veloso, entre tantos outros.

Faleceu no dia 3 de Dezembro de 2016, aos 91 anos, esta conversa, cujo conteúdo sonoro (parte dele) aqui publico pela primeira vez, realizou-se em Setembro de 2015 na sua casa de Lisboa, no Largo Camões, no âmbito de um convite que me foi endereçado pela direcção do suplemento/revista do Jornal do Algarve nesse ano, suplemento que esteve dedicado a várias personalidades algarvias que se destacaram na sociedade portuguesa.

 

Neste excerto, de uma conversa de cerca de quatro horas, Hugo Ribeiro contava como Amália antes do 25 de Abril tinha receio de registar as letras de sua autoria deixando-nos, com esta narração do que presenciou, algumas ideias sobre a conjuntura sociocultural em que Amália gravitava e a partir da qual se notabilizou: «uma mulher que escrevesse não era bem vista no Fado», relataria também o «truque» usado quando gravava Carlos Paredes, sessões de estúdio longas nas quais o som da respiração 'sobre' a guitarra se encontra muito presente, podendo isto 'verificar-se' na respectiva obra discográfica.

 

Amália: repertórios (in) visíveis

Eu estive lá em casa nessa noite! A Amália, como nunca tinham editado um disco com o nome dela na autoria, metiam o nome de um outro qualquer, convidou o Varela (Alberto Varela Silva, autor, director de teatro e cinema e encenador português) para aparecer como compositor daquele fado, que era da Amália (referindo-se a «Estranha Forma de Vida»). A Amália fez, mas ainda estava naquela vergonha de aparecer como poetisa. Depois editou livros e tudo, mas naquela altura haver uma mulher que se assumisse como autora não era bem visto.

 

A inscrição de autorias nos discos até meados dos anos de 1970 não era uma constante, muitas autorias individuais eram remetidas para o colectivo, seja no caso de discos enquadrados em períodos históricos de alguma conturbação político-social (pré 25 de Abril) seja no caso de músicos cujo contexto em que se inseriam e o discurso que os veiculava, e em que se queriam fixar, se situava no espectro do associativismo e/ou sindicalismo na esteira do 25 de Abril e nomeadamente durante o Processo Revolucionário em Curso (PREC).

 

No universo do Fado o papel da mulher como autora não era, segundo Hugo Ribeiro, algo que fosse motivo de orgulho.

«Assisti a coisas verdadeiramente injustas com a Amália, produto de uma sociedade patriarcal e profundamente machista (...).

Quando era autoria dela não aparecia. Mas, a música do Alfredo Marceneiro era mais ou menos conhecida, agora a letra não. E a letra era dela! Ela pediu ao Varela por tudo e ele nem queria, mas ele acabou por assinar como autor da letra. Se uma mulher naquela altura escrevesse para Fado diziam logo mal. Também diziam mal dela por tudo e por nada.

Eu um dia disse-lhe, isso é um sucesso tão grande, os discos vendem-se aos milhares e tu não queres dizer que a letra é tua? Fomos à Sociedade Portuguesa de Autores, apesar dela ir muito contrariada. A Amália não quis que a gozassem. Até diziam, veja lá, que ela tinha ido à Argentina (pausa). Parecia um daqueles filmes da Idade Média. Bem, diziam tudo e mais alguma coisa, até dava vontade de rir. Diziam que ela levava num anel veneno para pôr no copo e matar Humberto Delgado. Há coisas que a gente ainda acreditava, mas há outras que não se acreditava mesmo nada. Ainda mais a Amália, uma medrosa como ela era. O que ri com esse boato».

Hugo Ribeiro foi, e continuará a ser, uma das figuras mais respeitadas por músicos, orquestradores, compositores e outros técnicos igualmente respeitados (à altura em que esta conversa aconteceu, José Fortes, técnico de percurso consolidado no nosso país, ligava-lhe) que integram a História da Música e ainda o contactavam à altura em que decorreu esta nossa última conversa para trocar ideias e pormenores daquele e deste período da gravação musical e sonora.

O estúdio de gravação de música no qual desenvolveu a sua profissão foi responsável pelas mais variadas edições discográficas de sucesso ao longo de cerca de seis décadas, no ano de 1991, quando muda a sua fixação geográfica, Rui Veloso é quem estreia as novas instalações registando aí Auto da Pimenta  (1991), numa altura em que as instalações originais seriam reconvertidas para estúdio de televisão.

 

Várias foram as orquestras de destaque a gravar em Paço de Arcos. A Valentim de Carvalho representaria o culminar de um caminho no universo da gravação e edição de música em Portugal que iniciara na década de 30.

 

Hugo Ribeiro assistiu e fez parte de todo o processo, numa época em que as gravações eram directas para o disco e o resultado das mesmas seguia no dia para Inglaterra e as provas demoravam cerca de duas semanas a chegar, embora os discos demorassem mais tempo vindos de barco.

Num tempo no qual a indústria fonográfica vivia um período de experimentação e adaptabilidade e onde sucesso seria sinónimo de venda de cópias, Hugo Ribeiro protagoniza um dos períodos mais marcantes da história cultural do país. A fábrica de discos que a Valentim de Carvalho tinha no Campo Grande, dedicada à prensagem de discos de 78 rotações cresceu e começou a pensar na sua expansão sendo para isso necessário não só gravar com melhores e mais sofisticados meios como mais e foi por isso que Rui Valentim de Carvalho foi a Londres em busca dessas máquinas onde Hugo Ribeiro acabaria por gravar cá em Portugal. Os estúdios de Abbey Road foram a paragem. Com marcas como a EMI ou a Magnetophon faziam-se gravações na Rua Nova do Almada e na sala do Clube da Estefânia pejada de inconvenientes como relembra Hugo «além das mesas de bilhar, as gravações às vezes estavam a correr muito bem e os pavões de um jardim lá ao lado começavam a fazer um barulho insuportável e tínhamos de parar tudo e começar de novo».

Mas, o espaço novo acabaria por chegar, o estúdio da Costa do Castelo, que funcionava onde posteriormente se fixou o Teatro Taborda, no ano de 1951 veio a assinalar um momento crucial na História da Música, e da sua gravação em particular, em Portugal.

Notas

[1] Artigo do Magazine/suplemento do JA impresso, 5 de Novembro de 2015, on-line, aqui.

[2] Fotografias de Marta Reis, durante entrevista em casa de Hugo Ribeiro, Setembro de 2015.

[3] Captação de som, edição, texto: Soraia Simões

[4] Fotografia a preto e branco cedida do arquivo de Hugo Ribeiro (autor/a desconhecido/a).

[5] ''Varela'': Alberto Varela Silva (Lisboa, 15 de Setembro de 1929 - Lisboa, 15 de Dezembro de 1995) foi um actor, autor e encenador português.

[6] gravação usada: Carlos Paredes em «Balada de Coimbra»

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Por falar em Luís Monteiro

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Por falar em Luís Monteiro

 

Represento aquela esquerda indignada que se indigna com a própria esquerda (Luís Monteiro)

 

A contra-cultura só existe enquanto estiver fora do radar da capitalização.

Por vezes, foram homens e mulheres, que, nunca colhendo frutos de nenhuma militância, embora seminais nas opções de outros a quem se reconhece poder na margem (poder conferido pela alimentação mútua com o poder do centro de forma a produzir narrativas de concórdia, heterogeneidade, e abertura, precisas para a manutenção de ambos), peças principais para desbloquear uma engrenagem que passou a ser visibilizada tendo como almofada um discurso de margem.

Tudo começou há uns meses, quando Ana Deus (intérprete: Ban, Três Tristes Tigres, Osso Vaidoso) leu uma das conversas com José Mário Branco (JMB) na Mural Sonoro, cuja transcrição se encontra no Memórias da Revolução [1] e me ligou alertando para o facto de  uma das  principais referências evocadas por JMB ser seu vizinho, hoje com 85 anos, Luís Monteiro.

Mais que coleccionador, estudioso e entusiasta das músicas e culturas. Esteve vinte e sete anos ao serviço na Emissora Nacional a partir do Porto — tarefa-motor da curiosidade pela música e um estímulo à expansão da sua colecção discográfica —,  e em simultâneo desenvolvia um interesse pela leitura de natureza musicológica, etnográfica, linguística e historiográfica, que o levou a fazer e a refazer anotações das suas teorias sobre música e a partilhá-las, como se mostrará aqui.

Mas foram mais as vezes, além dessa conversa, em que José Mário Branco sublinhou a importância de Luís Monteiro no guião da sua vida musical. Como no decorrer de um debate com o título Música e Sociedade, realizado pela Mural Sonoro em 2013 a convite do Museu da Música.
Foi na Parnaso que JMB conheceu Jorge Constante Pereira, outro dos beneficiários dos conhecimentos passados por Luís Monteiro.


A 1 de Agosto de 1935 a Emissora Nacional foi oficialmente inaugurada, nessa fase experimental a programação procurou distanciar-se dos programas mais ligeiros que preenchiam as rádios privadas, alterando com programas musicais de natureza erudita e misturando mensagens ditas-pedagógicas com propaganda do regime.
A primeira Lei Orgânica da Emissora Nacional (Setembro de 1940) autonomizou-a prevendo a organização dos serviços, a execução do Plano de Rádio Difusão Nacional e a criação de emissores regionais no Porto, Coimbra e Faro. Foi na Emissora Nacional na cidade do Porto que Luís Monteiro permaneceu mais de duas décadas. Com uma visão crítica normal seria que procurasse intercalar o ofício com outras descobertas e redescobertas; e um conjunto de questões de natureza linguística e sonoro-musical, mas também política, procedente da sua agitação, emergisse. Como me disse quando cheguei ao Porto: ainda hoje represento aquela esquerda indignada que se indigna com a própria esquerda. O áudio dessa conversa, sem guião definido, como quase todas as anteriores, estará aqui


Um testemunho é parte de uma acção que se tornou real; está além do acontecimento registado de modo inalterável e muito menos oficial. É a particularidade, o detalhe que, sendo relevante para o detentor dessa memória, pode lançar outros olhares, permitindo decerto que a história esteja mais próxima de quem a partilha.
Como mencionava Paul Veyne (2008) [3], a importância dada a uns factos em detrimento de outros mostra uma escolha por parte de quem investiga e escreve, não uma grandeza que lhes seja inerente. Ou, melhor, eles são-no, providos de magnanimidade, para quem investiga e escreve, por isso decide tirá-los da penumbra. Se assim não fosse, pautada por essa selectividade, que tese ou reflexão diferenciadoras, em temáticas ou cronologias fetiche da contemporaneidade, emanariam?


Por acreditar que as páginas da Mural Sonoro também podem servir para fomentar reencontros, e através deles fixar outras linguagens, vivências, com as quais tenho a sorte de me cruzar; um lado que a História da Música merece inscrever no caderno de memórias, onde vivem especialmente afectos, tensões, sociabilidades, sem os quais não existiria: fui conhecer Luís Monteiro e desafiei os seus ex-alunos a escrever sobre ele.
É, então, de Luís Monteiro que há mais de quarenta anos JMB não via, embora tão significativo no seu caminho artístico, que José Mário Branco e Jorge Constante Pereira aqui escrevem. 
Pretende ser uma homenagem ao que operou nas vidas de vários jovens que despertavam no Porto para a música, para a poesia, para as discussões de natureza política, sessões onde tudo isto se misturava. Ao homem que acolheu Giacometti no Porto, e dele conta que foi um homem bom, porque se interessou por recolher aquilo que lhe permitiu cruzar teorias e anotações.

 

Soraia Simões de Andrade

Lisboa

Abril de 2018

 

Obrigado, Luís Monteiro

 

Tenho uma imagem quase mítica do Luís Monteiro, certamente por razões que nem ele suspeita. Essa imagem resulta da importância que ele teve na minha formação, num tempo em que, com outros jovens apaixonados pela música, pela poesia, pelas artes, eu estava intensamente disponível para as ideias
novas e os sons novos que ele nos deu a conhecer.

Chamado a ter conversas com um grupo de alunos da recém-aberta Escola Parnaso do Prof. Fernando Corrêa de Oliveira, no Porto, o Luís Monteiro deu-nos a conhecer, com os seus discos e as suas explicações, dois tipos de música bem diferentes que eram as grandes paixões da sua vida.
Sendo um simples funcionário da delegação da Emissora Nacional na Rua Cândido dos Reis, tinha em casa uma gigantesca discoteca onde predominavam esses dois tipos de música:
- a música tradicional e erudita dos povos de todo o mundo, onde sobressaía o gamelang (música erudita da Indonésia), e
- a música erudita europeia pós-Schoenberg: Webern, Stockhausen, Dallapiccola, os concretistas Pierre Henri e Pierre Schaeffer, e ainda Boulez, Ligeti, Penderecki, etc.


A memória que dele tenho é a de alguém que procurava relações entre tudo. No campo das músicas tradicionais — a que éramos particularmente sensíveis através de Lopes-Graça e Giacometti —, ele ensinou-nos que a música nasce da vida dos povos. Esboçava mesmo alguma teorização sobre o papel das músicas tradicionais enquanto preciosa informação sobre a evolução das línguas, as migrações dos povos, e até as variações dos climas, das paisagens, dos modos de sobrevivência.


Falando de coisas tão grandes e importantes, ele tinha sempre um ar modesto e marginal, quase inadaptado.
Os nossos encontros com o Luís Monteiro —  que nem sequer foram muitos —  marcaram-me para sempre, e estão entre as mais belas memórias que guardo da minha juventude.


Por esse homem, que quase ninguém conhece, e a quem nunca foi dado o devido valor, eu nutro uma profunda gratidão.
Sem ele, eu não seria quem tento ser.


José Mário Branco
Lisboa
Abril de 2018

 

 

 

Por falar em LUÍS MONTEIRO, por Jorge Constante Pereira [2]

 

Armadilhas da memória

 

Falar sobre alguém com quem convivemos de perto há cinco décadas é uma tarefa muito arriscada, sobretudo quando o relator não é um escritor. A memória talvez ajude mas as emoções podem pregar-nos partidas, inquinar as nossas percepções, adulterar as nossas interpretações. E o tempo é, de facto, um canibal.

 

Feita esta declaração de interesses – que não é certamente novidade para uma investigadora como a Soraia Simões – temos que entrar no assunto. E o assunto é, a meu ver, aquilo que o Luís Monteiro nos trouxe desde os anos sessenta com a sua enorme informação musical e a sua persistência em temas ligados à musicologia comparada.

A minha tarefa de escrever sobre este grande amigo de há muitos anos – e que eu perdi de vista também há tempos – está muito facilitada pela entrevista muito esclarecedora que o José Mário Branco deu ao Mural Sonoro da Soraia Simões de Andrade [4], entrevista em que, entre outros assuntos da sua vivência como músico e cidadão, fala do Luís Monteiro e relata eventos que com ele partilhámos, em parceria com outros cúmplices, durante alguns anos de juventude.

Assim, vou limitar-me a focar alguns episódios que o José Mário poderia não conhecer, nomeadamente porque me implicaram com um papel que resultava sobretudo da minha actividade à época como estudante de piano e composição no Conservatório de Música do Porto e também como educador musical na Escola Parnaso dirigida pelo professor Fernando Corrêa de Oliveira nessa época (vide A Escola Parnaso por Joana Resende).  

 

A discoteca do Luís Monteiro

 

Para nós era, à época (cerca de 1960), um assombro! Como estudante que era no Conservatório de Música do Porto – tão conservador nesse tempo como a designação sugere – o contributo do dodecafonismo de Corrêa de Oliveira com a sua abertura ao serialismo  musical, bem como a discoteca do Luís Monteiro, foram duas pedras basilares da minha formação musical, como compositor e como educador musical.

 

O Luís Monteiro trabalhava no arquivo musical da então chamada Emissora Nacional, e só encomendava discos que não existiam nesse   arquivo e por isso o que ele encomendava era mesmo muito restrito e sofisticado, sendo ele conhecido no mercado dos discos como um consumidor de discos especial e muito exigente; tive a confirmação disso uma vez que, numa ida minha a Paris, ele me pediu que fosse à sua loja de discos – nessa época chamava-se discoteca, isso agora tem outro significado –, o que fiz com algumas consequências aborrecidas à chegada ao berço, por (des)virtude das chamadas importações  alfandegárias ilícitas de bens culturais, que eram mais vasculhadas e taxadas na fronteira do que as bebidas alcoólicas. Enfim, umas piadas sem graça do regime.

Por acidente – que não por desforra! – algum tempo mais tarde foi o Luís abordado pela polícia política na sequência das actividades  de militância política em que muitos de nós estavam envolvidos – que o José Mário Branco descreve na já referida entrevista –, uma vez que o regime estipulava que todas as reuniões de mais que um eram proibidas; o Luís Monteiro, funcionário de uma das ferramentas do Estado Novo, a EN, reunia-se connosco para fins de cultura musical e mais nada, mas isso não o livrou de ser interrogado pela PIDE e de a sua discoteca ser vasculhada – grande susto dele! –,  não fosse ter lá alguma versão da Internacional ou, pior, ainda discos proibidos com cantos heróicos do Lopes-Graça!

A etno-musicologia vista pelo Luís Monteiro

 

Voltemos então ao nosso assunto principal: o papel do Luís Monteiro nas nossas  AEC’s – actividades de enriquecimento curricular.

No que diz respeito a Schoenberg, Alban Berg,  Webern, Messiaen, Stockhausen e tantos outros, ficámos todos mais informados graças ao Luís Monteiro e à sua discoteca, autêntica preciosidade com especial destaque para a música do século XX – o Luís confessou-me um dia  que só saiu verdadeiramente da adolescência depois de ouvir a Sagração da Primavera de Igor Strawinski – e para a música tradicional de todo o mundo.

Particularmente apaixonado pela musicologia comparada, o Luís lia – e partilhava com os amigos – tudo o que conseguia arranjar de musicólogos e antropólogos como Curt Sachs, André Schaeffner e outros; não perdia os boletins editados ou patrocinados pelo CIM - Conseil International de la Musique, organização não governamental parceira da UNESCO que dedicava particular atenção à diversidade cultural em todo o mundo, e devorava as publicações do Musée de L’Homme de Paris – e tanta outra bibliografia, tanta que é difícil inventariá-la toda a esta distância.

Ao longo de alguns anos de convivência e partilha, tivemos momentos notáveis, de entre os quais vou referir dois, um mais pessoal e outro mais colectivo.

Primeiro exemplo. Com um interesse especial pela música indiana, que ele considerava ser como a mãe musical do mundo, o Luís convenceu-me a tentar, ouvindo os ragas e outras formas de música indiana, extrair e notar, para benefício das suas pesquisas, os modos que eram usados na construção musical; como eu tinha ouvido e sabia escrever música, ele usou e abusou: da música indiana passou para a africana e, mais tarde, para a americana. Bem, não estou a queixar-me; foi um bom treino de ditado musical e uma boa aprendizagem sobre a música oriental. Sugiro que aproveitem, vale a pena.

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O outro exemplo é diferente.

O Luís Monteiro acedeu em fazer várias palestras, na Escola Parnaso, sobre música do mundo – não é bem a world music da MTV mas tinha de facto um âmbito muito universal. Só que quis mudar o mundo! E mudou. Com a nossa ajuda. Ou seja, não se pode dizer que o mundo mudou de sítio, antes foi ele que mudou o sítio do mundo!

Durante alguns serões, com muito papel cenário e vários pincéis e tintas, fabricámos um Planisfério que serviu de cenário às suas palestras. O único “pormenor” inovador foi a troca de orientação! No planisfério que usámos entre nós, temos no meio a Europa, e depois a Ásia a Este e as Américas a Oeste.

Mas o mapa do mundo do Luís Monteiro tinha que ser visto “do outro lado do mundo”, porque a cultura musical teria passado, em seu entender, de Oriente para Ocidente através do Estreito de Behring (ou perto disso).

E pronto; foi assim que o Luís Monteiro mudou o mundo. E nós ajudámos, com muito gosto!

Disse Yoko Ono:

One can do alone, but he always needs a friend

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O mundo era assim antes do Luís Monteiro o virar e ficou muito melhor depois disso! Ou não?

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Uma coisa é certa: foi bom estar aqui “na companhia” do Luís Monteiro. Obrigado por isso, caro Amigo! Obrigado por isso, cara Amiga Soraia Simões! Até sempre, e faço votos de que a Mural Sonoro continue, com Rap e tudo o que a música de gente nos puder trazer.

Jorge Constante Pereira

Porto

Março de 2018

 

Somos vizinhos[5] do Luís Monteiro. Vizinhos de baixo, do lado oposto, mas mesmo assim ainda conseguimos ouvir, na casa de banho, ecos das músicas que escuta.

Temos décadas de conversas sobre música, interrompidas e continuadas como episódios, de elevador.

O Luís não gosta da minha música mas eu até gosto «das dele», que são todas as «puras» que procurou e coleccionou pela vida fora. Músicas ainda mais impossíveis agora que tudo comunica.

Quando as Fnacs ainda eram lojas francesas, o Luís voava até Paris só para comprar discos. Não visitava museus nem assistia a espectáculos, porque todo o tempo era precioso e escasso para as suas buscas, disco a disco, nos escaparates das lojas. Com o lanche num saquinho plástico, mas sem água ou outra bebida, para não ter de perder tempo em idas ao wc, procurava as suas preciosidades, raras e voltava mais ou menos feliz dependendo das aquisições, fechando-se em casa para ouvir os discos, só saindo rapidamente para comprar comida e vinho branco.

Quando as idas à Fnac, entretanto em Portugal, deixaram de ser proveitosas ajudei-o a encomendar via Amazon alguns cds, mas também dvds de filmografias eróticas-exóticas e livros sobre teorias várias, de luz e cor, genética. Tudo do mais relevante que há.

As estórias dele e com ele são muitas, a maior parte delas impossíveis de partilhar com estranhos, mas aqui vai um exemplo de quão exemplar é este meu vizinho preferido. Encontrei-o no momento seguinte ao de uma tentativa de assalto na rua...ao fulano que se lhe atravessou no caminho o Luís terá berrado com largos gestos e indignação - Não me chateie pá! Você acha que eu tenho tempo para isso! O que deixou o larápio baralhado tendo desistido da acção.

Lembro já agora, também, o dia em que no Café da rua fomos abalroados por um polícia que andava à nossa procura, por questões parvas que felizmente já não são questão com a nova legislação. Durante a identificação, mais busca em bolsos e bolsinhas, chega o Luís Monteiro que ignorando completamente a situação e o polícia nos começa a falar acaloradamente do seu último interesse ou descoberta como se nada se passasse. Polícias e ladrões são invisíveis para o Luís Monteiro. Apenas importa o que importa.

Viva o Luís Monteiro!

Ana Deus

Porto

Abril de 2018

 

Notas

Fotografias: José Fernandes

Registo em Vídeo: Amarante  Abramovici


[1] proposta do Instituto de História Contemporânea com a RTP que se destina a evocar os dias entre o 11 de Março de 1975 ao 25 de Novembro de 1975, contando para isso com um número grande de documentos de arquivo, passados em revista durante um minuto na RTP: frases, canções, imagens que se fixaram na história do dito Verão Quente de 75. Convite feito à Mural Sonoro para integração de parte deste arquivo sonoro e um conjunto de ensaios dele decorrentes.

[2] Jorge Constante Pereira é compositor e dramaturgo. Do seu trabalho como compositor musical e autor de textos para teatro e televisão recordo A Árvore dos Patafúrdios (1984) e Os Amigos do Gaspar (1986) em colaboração com Sérgio Godinho.

Professor de Educação Musical no Conservatório de Braga (Escola Calouste Gulbenkian de Música), assistente universitário no Curso de Ciências da Educação da Universidade Eduardo Mondlane em Maputo Técnico de Intervenção Precoce do Centro Regional de Segurança Social do Porto, mas também terapeuta da Psicomotricidade no Centro de Higiene Mental Infantil e Juvenil do Porto  e posteriormente no Centro de Observação e Orientação Médico-Pedagógica em Lisboa.

[3] Veyne, Paul 2008. Como se escreve a História. Edições 70. Lisboa.

[4] Entrevista referida por Jorge Constante Pereira a José Mário Branco, aqui.

[5] Ana Deus e Paulo Ansiães Monteiro.

 

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Liberdade e luta ideológica na revista Mundo da Canção, por João Vasconcelos e Sousa

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Liberdade e luta ideológica na revista Mundo da Canção, por João Vasconcelos e Sousa


por João Vasconcelos e Sousa [1]


O Mundo da Canção (MC) foi a primeira revista portuguesa exclusivamente dedicada à música popular. Fundada no Porto em 1969, e de periodicidade mensal, foi mantida por jovens estudantes que tinham em comum o gosto pelas sonoridades pop e uma visão crítica do Estado Novo. Como tal, desprezavam o “fatalismo” do fado e o “mau gosto” do chamado “nacional-cançonetismo”, estilos que conotavam com o regime. Em oposição, deram a conhecer à juventude do país os chamados «baladeiros» ou «cantores de intervenção», onde se incluíam nomes como José Afonso, José Mário Branco, Adriano Correia de Oliveira ou Sérgio Godinho. O MC também divulgava as últimas «tendências» da pop estrangeira, como os Beatles, os Rolling Stones ou os Pink Floyd, e esteve nas primeiras edições do festival de Vilar de Mouros e do festival de Jazz de Cascais, ambas em 1971. Dois anos mais tarde, um número inteiro da revista foi apreendido pela PIDE e impedido de ir para as bancas. Este artigo aborda os dois primeiros números após o 25 de Abril de 1974, data que marca o início da liberdade de expressão em Portugal mas, também, o começo de disputas políticas insanáveis no MC.

 

Aquelas palavras com que poluíamos o papel eram sempre palavras cruzadas. Passavam bastante ao largo da verdade directa mas não mentiam. […] Quem servíamos? A verdade, ainda que camuflada. E só nós sentíamos como era duro combater com «armas» tão distantes do alvo que visávamos.

É desta forma que a revista Mundo da Canção (doravante MC) se refere, no primeiro número depois da queda do Estado Novo, às limitações até aí impostas pela Censura. Nesse artigo de Maio de 1974, assinado por Mário Correia, também se exalta o facto de ter passado a ser possível escrever “com uma liberdade desconhecida mas desejada”. Assim se celebrava, na publicação portuense fundada em Dezembro de 1969 por Avelino Tavares, a queda da ditadura de António de Oliveira Salazar e de Marcello Caetano.


Mas a conquista da liberdade de expressão também trouxe uma mudança de fundo na orientação da revista: até aí conotada com uma oposição apartidária, o MC radicaliza o discurso, na linha do momento político que se vivia na sociedade portuguesa, e passa a advogar a defesa do socialismo, propondo-se “construir uma revista popular”. É esse, aliás, o título do editorial do número 39, o primeiro escrito após a queda do regime, que abre com o então director António José Fonseca a citar Mao Tsé-Tung. Em forma de autocrítica, o jornalista declara que o MC “foi sempre uma revista reaccionária”, “onde uns poucos intelectuais pequeno-burgueses davam largas à sua imaginação provocatória”. Realçando que “a arte serve sempre uma determinada classe”, António José Fonseca considera que “é preciso subordiná-la a uma política justa” para “iniciar a construção de uma nova revista finalmente ao serviço dos interesses revolucionários da classe operária e das massas trabalhadoras suas aliadas”.


Esta nova orientação do MC foi, naturalmente, impulsionada pelo fim da censura, que “determinou a transformação radical do sistema de comunicação social” e abriu caminho a que o jornalismo passasse a estar, uma vez liberto das amarras do regime, “em conformidade com a orientação dos diferentes projectos políticos que se foram erguendo na sociedade”. As mudanças de fundo fizeram-se notar, antes de mais, logo na capa da revista, que já não trazia a habitual fotografia de um cantor ou grupo pop, mas sim um comunicado do recém-formado Colectivo de Acção Cultural, composto por nomes como José Afonso, José Jorge Letria, José Mário Branco, Adriano Correia de Oliveira ou Luís Cília, e que advogava a paz imediata nas colónias, a “terra a quem a trabalha”, a luta “contra o imperialismo internacional” e a garantia de liberdade.


Talvez devido à azáfama dos dias pós-Revolução, o número 39 traz apenas quatro textos originais, sendo todos os restantes retirados de outras publicações. Ainda assim, um dos artigos produzidos pela redacção da publicação portuense dá bem conta da sensação de se poder escrever, pela primeira vez na vida, sem o sentimento de coacção imposto pela sombra da censura. Mais aliviado do que propriamente eufórico, o jornalista Mário Correia deixa um desabafo no texto com que se abre este artigo: ainda que não mentissem, as palavras do MC pré-Revolução “passavam bastante ao lado da verdade directa”, fazendo com que fosse “duro combater com «armas» tão distantes do alvo que visávamos”.

Número 39: cedido por Avelino Tavares durante o trabalho de pesquisa

Número 39: cedido por Avelino Tavares durante o trabalho de pesquisa


De resto, e apesar de, à primeira vista, a antologia de artigos de outras publicações, que o MC resolveu incluir neste primeiro número em liberdade, parecer limitar um pouco a percepção do que foi a revista durante este período, na verdade ela dá-nos uma ideia bastante precisa da realidade do jornalismo português durante estes dias iniciais do PREC. Desde logo, a vontade, expressa pelo jornal República - e partilhada pelo MC através da publicação do texto – de sanear os meios de comunicação social, e particularmente a rádio, acusados de colaborar com “um regime que acorrentou a informação”.


Entrado numa fase de grande destaque dado aos temas políticos, e marcado “por uma escrita adjectivada, por uma linguagem ideologizada” e, por vezes, “maniqueísta”, é sem surpresa que o MC inclui um texto, desta vez do Jornal de Notícias, que conota Amália Rodrigues com o fascismo. Até então, a revista tinha-se constituído como clara opositora do fado, mas esta era a primeira vez que estabelecia uma ligação explícita entre a mais famosa intérprete deste estilo musical e o regime do Estado Novo. Embora o artigo do JN ressalve que, segundo um porta-voz das Forças Armadas, Amália “não teve jamais qualquer ligação com a PIDE ou a DGS”, não deixa de a classificar como intérprete da “obra-prima do masoquismo nacional” – uma vez que, segundo o musicólogo Rui Vieira Nery, o fado tinha sido apropriado pelo regime e passado a exaltar frequentemente valores como “o nacionalismo e o bairrismo primários” ou os “méritos espirituais da pobreza”. O artigo reproduzido pelo MC lembra que Amália tinha dito, antes do 25 de Abril, que “não há ninguém mais português do que eu! Cheiro a sardinha…”, e conclui chamando-lhe oportunista e atirando: “Cheira a sardinha, D. Amália? Ou cheira a outra coisa?”. Ainda que, num contexto de mudança de regime, se entenda a reacção popular contra o fado, José Mário Branco, um dos mais proeminentes cantores de intervenção, já não pensa assim. À distância de mais de quatro décadas, o músico aprendeu a apreciar este género musical e justifica, numa entrevista feita no âmbito da tese de mestrado que originou este artigo: “no fado, como em tudo, há o bom, há o mau e há o assim-assim. Só que a ditadura, em geral, só nos mostrava o mau”.


Voltando a 1974 e ao MC, a revista contrapõe ao desprezo pelo fado a aclamação da chamada música de intervenção. Através da publicação de um artigo do República sobre o I Encontro Livre da Canção Popular, ocorrido no Pavilhão dos Desportos do Porto a 6 de Maio de 1974, a redacção mostra apoio incondicional a cantores como José Afonso, José Jorge Letria, Francisco Fanhais, Manuel Freire, ou os exilados políticos recém-regressados José Mário Branco e Luís Cília. Agarrando finalmente a oportunidade de poder exaltar a canção de teor político, que sempre protegera e divulgara nos tempos do Estado Novo, o MC cita um texto onde se fala de um público portuense em apoteose, “de punho cerrado no ar”, e a exibir “uma gigantesca bandeira do Partido Comunista Português” que “percorreu várias partes do pavilhão” e que se tornou, assim, prova física “de uma liberdade recentemente conquistada”. Na linha da “refundação cognitiva” que fez a imprensa do pós-Estado Novo recorrer frequentemente “ao clássico pastone, que mistura opinião e informação no mesmo texto”, é importante notar que o artigo não se limita a descrever os acontecimentos e toma um partido claro – por exemplo, ao declarar que o actor Vasco Morgado e o cantor Paco Bandeira, presentes no pavilhão, foram recebidos “como mereciam: com vaias e apupos”, por supostamente terem colaborado com o fascismo.


Crescem as tensões ideológicas na revista


No entanto, apesar de todos os jornalistas do MC partilharem os sentimentos de alegria motivados pelo fim do regime, o ambiente na redacção estava longe de ser harmonioso. A conquista da liberdade de expressão e de associação também contribuiu, no seio da sociedade portuguesa, para um extremar de posições relativamente aos diferentes projectos políticos defendidos para o país, e ao qual a revista também não foi alheia. No caso do MC, a disputa interna deu-se devido a divergências sobre qual o modelo de socialismo a defender, e colocou em conflito partidários do PCP e do MRPP. O número 39 já deixava antever algum mal-estar entre a redacção – por exemplo, quando António José Fonseca escreveu, no editorial já aqui citado, que ocupa “uma posição isolada” na revista, fruto “dos profundos antagonismos que me separam do restante corpo redactorial”, ou quando António Vieira da Silva declarou estar confinado à secção de correspondência da revista, e que a única razão que o fez não abandonar o MC foi o gosto de dialogar com os leitores. Mas, no número seguinte, a situação de ruptura tornou-se ainda mais evidente: em pleno período revolucionário, destacou-se um artigo de três páginas com o título “Mário Correia: Um miserável provocador”. O texto, assinado por António José Fonseca e Octávio Silva, coloca a dupla maoísta em confronto com Correia, militante do PCP, e dá bem conta da realidade vivida nas redacções – e na do MC em particular - durante este período histórico.


A situação que precipitou esta troca de acusações pública foi uma reunião, ocorrida em Agosto de 1974, em que participaram os cinco redactores de então e onde se discutiu o novo rumo da revista. Apenas surgiu uma proposta, vinda dos maoístas, que caracterizava o MC como uma revista feita por “ideólogos pequeno-burgueses” que traíam a luta de classes porque “exaltavam ideais neutros como o pacifismo, a lucidez [ou] a honestidade”, ignorando “a demarcação entre reaccionários […] e progressistas”. Também se acusava a publicação de desprezar o povo, ao desdenhar “dogmaticamente as suas manifestações de arte”, e de produzir textos onde sobressaía a “utilização de linguagem complicada”, que impedia a revista de “viver no seio das massas”. Perante este cenário, dois dos jornalistas – António José Campos e António Vieira da Silva - alegaram “falta de convicção” ideológica para fazer parte do novo MC e abandonaram o projecto.


Sobrou, portanto, Mário Correia, que num primeiro momento aceitou as condições. Tudo se alterou, contudo, no início de Setembro, quando o jornalista explicou ao director Avelino Tavares, por carta, que tinha reflectido e decidido, também ele, abandonar o MC, justificando com as “profundas e iniludíveis desavenças” que o separavam da dupla Fonseca/Silva. Pedindo ao director para informar os colegas da decisão, Correia acusava-os de terem adoptado uma “fachada revolucionária” quando, na verdade, não eram mais do que pequeno-burgueses e “farsantes a fingir fazer história”. Ironizando acerca da proximidade de António José Fonseca e de Octávio Silva ao MRPP ao chamar-lhes “marxistas achinesados”, Mário Correia considerava que a dupla vivia no conforto e que, por isso, não podia ter pretensões de falar pelo povo. Nesse sentido, concluiu com aquilo que considerava ser o quotidiano dos seus antagonistas: “fazer a revolução, sair para as ruas defender o povo e retirar para o conforto do lar burguês, recompondo-se da luta com marisco! Bonito!”.


Se, à distância de mais de quatro décadas, as acusações de Mário Correia podem parecer inauditas e até cómicas, a resposta de António José Fonseca e Octávio Silva não o é menos. Ambos reagem às acusações de forma crispada e classificam Correia como “provocador”, “racista”, “burguês” e “extremamente reaccionário”, considerando que o militante do PCP quer “apoderar-se do controle da revista” e “manter erguida a rota bandeira da opressão, do analfabetismo [e] da cultura podre da burguesia”. Apelando aos leitores para demonstrarem “o seu vivo repúdio perante as manobras contra-revolucionárias” do jornalista em causa, António José Fonseca e Octávio Silva concluem o artigo de três páginas em apoteose: “OS REACCIONÁRIOS DEVEM SER CASTIGADOS! APOIEMOS A IMPRENSA PROGRESSISTA! CALEMOS A VOZ AO MISERÁVEL MÁRIO CORREIA E A TODOS OS LACAIOS DA BURGUESIA! A LUTA CONTINUA! [sic]”.

Número 40. Cedido por Avelino Tavares. Luís Cilia na capa.

Número 40. Cedido por Avelino Tavares. Luís Cilia na capa.


Tendo em conta o tempo que nos separa do período histórico em que tudo isto se passou, é compreensível que a primeira reacção de quem lê esta discussão em 2018 se situe entre a incredulidade e, como já dissemos, até um certo divertimento. Contudo, estes números 39 e 40 do MC, ambos publicados em 1974, são um testemunho precioso acerca dos tempos do PREC, no sentido em que recordam aquilo que estava em causa no pós-Revolução dos Cravos. E a verdade é que, em Portugal, que Salazar descreveu como sendo um país de “brandos costumes”, discutia-se, escassos meses após a queda do Estado Novo, se o caminho era manter o modo de produção capitalista ou abraçar o socialismo – e, como o caso do MC tão bem demonstra, havia até debate ideológico sobre qual a melhor forma de construir a sociedade sem classes. As posições estavam tão extremadas que, por estes dias, o MC deixava a música para segundo plano e transformava-se num espaço de disputa política entre gente que, até bem pouco tempo antes, era camarada de redacção – e, é bom não esquecer, com um passado comum de oposição ao fascismo.


Batalha ideológica: se houve vencidos, também teve de haver vencedores


Todo este cenário aconteceu devido às “décadas de desinformação política, ideológica e cultural” durante o Estado Novo, antítese total da realidade que o 25 de Abril de 1974 inaugurou. Muito antes de se conhecer o desfecho do PREC, com a derrota das facções à esquerda do PS e a emergência da chamada “normalização política”, já a população – incluindo, como se constata, os jornalistas do MC – entrava num período de intensa luta ideológica, tantas vezes simplista e incoerente, fruto do estado de quase “virgindade cívica” que imperava em Portugal e de que fala o historiador António Reis, mas que abalou e pôs em causa os pilares da sociedade.


Não se nega, bem pelo contrário, que boa parte dos textos publicados no MC após o 25 de Abril são, como se viu, precipitados, maniqueístas, intolerantes e profundamente sectários – na linha, de resto, da “manifesta disposição psicológica de jornalistas e intelectuais no sentido de se distanciarem do passado recente”. Contudo, se é ponto assente que a revista era, por estes dias, um projecto marcadamente ideológico – e não se defende, neste artigo, que jornalismo e ideologia tenham de ser conceitos necessariamente separados – julgamos oportuno e até necessário colocar algumas questões.


Com o fim do PREC e a promulgação da Constituição de 1976, o MC continuou a ser uma revista com uma linha editorial marcadamente posicionada à esquerda, por oposição a publicações entretanto surgidas como o Musicalíssimo, o Música & Som, o Se7e ou, um pouco mais tarde, o Blitz (jornal). Num país que tinha encontrado na adesão à Comunidade Económica Europeia a grande razão de ser da sua existência pós-revolucionária, e que queria enterrar em definitivo o ano e meio conturbado em que se falou de socialismo, nacionalizações, ocupações e reforma agrária, a canção de intervenção foi deixando de ter espaço nas rádios, jornais e revistas. Uma das poucas excepções foi precisamente o MC que, até à extinção, em 1985, continuou a dar espaço a nomes como José Afonso, José Mário Branco ou Sérgio Godinho. Nesse sentido, lança-se a pergunta: não terá essa progressiva exclusão dos “baladeiros” do espaço mediático sido também motivada por questões ideológicas? A este respeito, José Barata-Moura declarou, em 1978, que “o facto de a canção política […] não ter o lugar que merece na rádio e na TV é uma lacuna cultural extremamente grave e que tem muito a ver […] com a luta de classes”. E dois anos antes, em 1976, indagava:


A que horas podemos ser de ‘esquerda’? Pergunta do novo ‘marketing’ que se chama ‘pluralismo’ na rádio. Às horas mortas […] pode-se ser um pouco mais de esquerda, mas não muito. Assim, às quatro da matina, põe-se um pouco de José Afonso, Sérgio Godinho, Adriano, Letria […] e daí não vem mal ao ‘pluralismo’. Pelo contrário, ficamos bem vistos, com ‘dados concretos’ para apresentar em contestação, tal e qual como diz a técnica do ‘marketing’.


De igual modo, José Mário Branco também considerou – mais recentemente, em 2016 - existir uma “’macdonaldização’ da expressão artística”, no sentido em que as vozes críticas na música começaram, no pós-PREC, a ser substituídas pelo “diktat da produção disfarçado pela aparência de possibilidade de escolha”. Já José Afonso reagiu desta forma, ao ver o seu álbum Cantigas do Maio ser distinguido pelo Se7e, em 1978, como o melhor de sempre da música portuguesa:


A marginalização do canto de intervenção, que nem o fascismo conseguiu ou teve a coragem de impor, era o fim pretendido. Queriam, no meu caso, colocar-me na prateleira do museu. Mas de uma forma bonita e que sossegasse a consciência desses críticos cor-de-rosa, aliás, sociais-democratas. A forma encontrada foi a de prestarem um culto aparente a um indivíduo cuja actividade antes e depois do 25 de Abril eles próprios propositadamente ignoraram. […] Querem-me fazer uma festa de despedida onde, para gáudio deles, eu teria de dar voltas à pista, agradecer e, para maior prazer da assistência, retirar-me.


Conclui-se, portanto, lançando novas questões: se é verdade que o MC foi um projecto marcada e assumidamente ideológico, sobretudo durante o PREC, não terá sido também ideológica e premeditada a decisão de afastar dos media os cantores de intervenção a partir da segunda metade dos anos 1970? Não terá sido a chamada “normalização política” de 1975/76, no fim de contas, também o triunfo de uma determinada concepção ideológica, neste caso avessa áquilo que muitos dos chamados ''cantores de intervenção'' defendiam nas suas músicas e vida pública?


Mais do que dar resposta a estas interrogações, julgamos pertinente sobretudo formulá-las, no sentido de lançar o debate sobre se a escalada ideológica inaugurada em 1974 foi exclusiva dos sectores posicionados mais à esquerda, tal como diz a narrativa dominante, ou se, por outro lado, não terão existido dois pólos opostos, cada um com uma determinada concepção do panorama cultural e artístico, e ambos a disputarem o mesmo palco. Um deles saiu vencedor, e não foi o pólo em que se situava o MC. No entanto, o legado que a revista deixa é da maior importância para quem quiser compreender como a primeira publicação portuguesa especializada em música viveu aquela que é, ainda hoje, a última Revolução da Europa Ocidental.

 

 

* [1] para citar este artigo: Sousa, João Vasconcelos e, «Liberdade e luta ideológica na revista Mundo da Canção», plataforma Mural Sonoro https://www.muralsonoro.com/recepcao, 9 de Março de 2018.

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“Diálogos Transatlânticos: a trajetória de músicos cubanos na guerra civil de Angola (1975-1979)”, por Amanda Palomo Alves

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“Diálogos Transatlânticos: a trajetória de músicos cubanos na guerra civil de Angola (1975-1979)”, por Amanda Palomo Alves

por Amanda Palomo Alves*

Apresentação de Comunicação proferida durante o “I Seminário Áfricas” ocorrido na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em 23 de maio de 2017.  

 

Posso dizer que a construção deste breve texto, intitulado “Diálogos Transatlânticos: a trajetória de músicos cubanos na guerra civil de Angola (1975-1979)”, nasceu de algumas inquietações surgidas durante a realização de meu Doutorado no Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, onde defendi, em 2015, a tese“Angolano segue em frente: um panorama do cenário musical urbano de Angola entre as décadas de 1940 e 1970”, sob a orientação do Prof. Marcelo Bittencourt.

 

Confesso, porém, que dediquei poucas linhas, fixadas em breves notas de rodapé, para falar da presença de músicos cubanos na guerra civil de Angola.  Contudo, já conseguia vislumbrar a importância e a validade do tema, capaz de lançar novos olhares para a história recente de Angola.

 

Assim, minha abordagem tem início em 1975, ano em que o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) proclama, unilateralmente, a independência de Angola. Porém, como sabemos, aquela data marcaria, também, o início de uma guerra civil travada entre os principais movimentos de libertação angolanos, a saber: o já mencionado MPLA, FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola) e UNITA (União Nacional pela Independência Total de Angola).

 

No momento em que se deu o conflito, os três movimentos de libertação perceberam que as alianças instituídas poderiam determinar os caminhos do confronto que se estabelecia e, gradativamente, o MPLA foi estreitando seus laços com os países do bloco socialista e, especialmente, com Cuba. Assim, na época da guerra, a presença de cubanos foi extremamente significativa em Angola. Nas palavras do intérprete e compositor angolano, Ruy Mingas, “nenhum outro povo esteve conosco tanto, e tão marcadamente, quanto os cubanos”[1]. Além de Cuba ter auxiliado no treinamento das forças guerrilheiras do MPLA, estiveram em Angola, médicos, construtores e professores cubanos. Nesta direção, vale assinalar a fundamental participação dos cubanos na criação do Ministério de Educação e Cultura de Angola, e na orientação dada aos conteúdos presentes em programas educacionais.

 

Entretanto, o grande desafio, lançado por mim, refere-se à significativa presença de músicos cubanos em Angola, principalmente, entre os anos de 1975 e 1979. Esses músicos, aliados ao movimento chamado “Nova Trova Cubana”[2], estiveram presentes num contexto bastante específico da história angolana, compondo e interpretando canções associadas a importantes acontecimentos sociais e políticos ocorridos no país. Entre esses músicos estavam, Silvio Rodriguez, Pablo Milanés, Noel Nicolau, Vicente Feliú, Lázaro Garcia e, ainda, músicos dos conjuntos “Los Cañas” e “Los Papines”.

 

Em uma carta destinada ao presidente do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica (ICAIC), o compositor e intérprete Silvio Rodriguez descreve:

 

 

[...] quiero que me des la oportunidad de irme a Angola... Creo que en este sentido puedo ser útil en la elaboración de textos y, por supuesto, en música y canciones. Te informo que haré todo lo posible por esta decisión. El camino está escogido con serenidad y sin romanticismo.

 

 

Silvio Rodriguez, Habana, 15 de diciembre de 1975

Silvio Rodriguez, Habana, 15 de diciembre de 1975

 

 

Naquela ocasião, Silvio Rodriguez, e vários outros músicos, particularmente aliados ao movimento da Nova Trova, realizaram uma série de turnês por países estrategicamente escolhidos pelo governo cubano e, entre eles, Angola. Logo abaixo, podemos visualizar alguns desses momentos:

O músico Silvio Rodriguez em Angola (1976). Imagens disponíveis em Silvio: que levante la mano la guitarra, de Víctor Casaus e Luis Rogelio Nogueras, 1993 .

O músico Silvio Rodriguez em Angola (1976). Imagens disponíveis em Silvio: que levante la mano la guitarra, de Víctor Casaus e Luis Rogelio Nogueras, 1993 .

Angola, dezembro de 1976. Na foto, vemos os músicos Silvio Rodriguez, Noel Nicola, Pablo Milanés e os músicos do conjunto “Los Papines”. Foto: Vicente Feliú. Disponível em: http://anecdotariodelatrova.blogspot.com.br. Acesso em outubro de 2016.

Angola, dezembro de 1976. Na foto, vemos os músicos Silvio Rodriguez, Noel Nicola, Pablo Milanés e os músicos do conjunto “Los Papines”. Foto: Vicente Feliú. Disponível em: http://anecdotariodelatrova.blogspot.com.br. Acesso em outubro de 2016.

No período em que esteve em Angola, Silvio Rodriguez compôs uma série de canções. Poderia citar: “Pioneros" (1976), "La Gaviota” (1976) e "Canción para Mi soldado" (1976). Outros músicos cubanos também incluíram em seu repertório temas associados a Angola. É o caso de Pablo Milanés, músico associado à “Nova Trova” que grava, em 1978, a canção “Havemos de voltar”, baseada num poema de Agostinho Neto. Citaria, ainda, o músico Carlos Puebla que, em 1977, compõe e grava a canção “Algo sobre Angola”.

Para além dessas importantes questões apresentadas, pretendo investigar, ainda, a relação desses artistas cubanos com os músicos angolanos, especialmente, entre os anos de 1975 e 1979. Sobre o tema, aliás, vale citar o artigo do crítico musical e pesquisador Jomo Fortunato. Num artigo intitulado “No fervor da canção política”, Fortunato nos fala da trajetória do compositor e intérprete angolano Mário Silva (ex-integrante do Agrupamento Kissanguela), e sua relação com os músicos cubanos acima mencionados, Silvio Rodriguez e Pablo Milanés:

 

“É possível detectar pontos de contato com a estética de Pablo Milanés e Sílvio Rodriguez (...) dois compositores que influenciaram a trova angolana, têm a capacidade de sintetizar o intimismo e os temas universais, com a mobilização e a consciência social e política. Importantes elementos de aferição e análise que encontramos na intencionalidade da música de Mário Silva”[4].

 

Outro importante nome a destacar é o da intérprete angolana Belita Palma (nome artístico de Isabel Salomé Benedito de Palma Teixeira), uma das integrantes do emblemático conjunto “N’gola Ritmos” que gravou, nos anos 1970, a canção “Fidel de Castro”. Destacaria, ainda, a canção “Angola-Cuba” interpretada pelo “Conjunto Musical das Forças Armadas de Angola” (FAPLA-POVO).

Nesta direção (e com base nas questões apresentadas), entendo que minha análise preliminar sinaliza para uma importante reflexão em torno do encontro e da circulação de músicos cubanos e angolanos, e das condições de produção e consumo daquelas composições em Angola na segunda metade do século XX. Ou seja, estamos tratando de dois países distantes geograficamente (separados pelo Atlântico), mas, fortemente unidos ideologicamente, politicamente e culturalmente.

 

Em outras palavras, sugiro a ideia de pensarmos em fluxo, emmobilidade, mas, acima de tudo, apontamos para uma reflexão e entendimento daquilo que se encontra no trânsito, por onde se movimentam bens culturais, discursos, símbolos e pessoas, afinal, estamos falando, também, sobre cultura e sobre regiões onde as culturas se encontram e, sobretudo, dos produtos desse encontro[5].

Neste caso, as fronteiras – entendidas como espaços de confluência de correntes culturais – não mobilizam, muito pelo contrário, são atravessadas. A ideia de “diálogos transatlânticos” é uma proposta de posicionamento com relação ao contexto que estamos trabalhando, afinal, a nossa pesquisa envolve aproximações e, mormente, a reflexão e o entendimento daquilo que se encontra no trânsito, por onde se movimentam bens culturais, discursos, símbolos e pessoas. Mais do que isto: como a canção pode ser, simultaneamente, um objeto de circulação, um espaço para a reflexão sobre o movimento e um produto das trajetórias pessoais dos autores?

As perguntas são várias, mas, reconheço a importância e a necessidade de discussões em torno de metodologias que possam me auxiliar na caminhada, mas, com relação à canção, já é possível assinalar a importância de estar atenta ao seu caráter polissêmico. Em outras palavras, privilegiar uma discussão em torno da relatividade de cada obra, ou seja, de tentar estabelecer mediações entre o nível estético e as instâncias políticas, econômicas e sociais. Em poucas palavras, a articulação entre texto e contexto se mostra indispensável, afinal, “canção alguma é uma ilha voltada para dentro de si”[6], pelo contrário, toda canção é dotada de características próprias e acaba assumindo, inevitavelmente, a singularidade e as características próprias de se autor e de seu tempo.

Enfim, as reflexões, as questões e as dúvidas compartilhadas com vocês estão muito longe de se esgotarem, pelo contrário, as considero um “ponta pé” inicial de um projeto que se pretende maior. De todo modo, já posso afirmar que o enfoque está no movimento: no movimento de pessoas, de ideias, de informações, referente a diferentes sociedades, e seus fluxos e refluxos de múl­tiplas naturezas. Obrigada!

 [1]Entrevista concedida a Amanda Palomo Alves, em Luanda, no dia 04 de novembro de 2013. 

[2]A “Nova Trova Cubana” foi um movimento musical emergente no final dos anos 1960, responsável pela renovação da canção popular em Cuba, ao combinar inovações estéticas e engajamento político. Em nosso país, as músicas dos cancioneiros da “Nova Trova” se tornaram conhecidas através de gravações de Chico Buarque e Milton Nascimento. Eu destacaria “Pequena Serenata Diurna”, de Silvio Rodriguez, gravada por Chico Buarque, “Yolanda”, de Pablo Milanés, gravada por Milton Nascimento e “Canción por la unidad latinoamericana”, de Pablo Milanés, gravada por Chico Buarque e Milton Nascimento. VILLAÇA, Mariana Martins. La política cultural cubana y el movimiento de la Nueva Trova. In: Actas del IV Congreso de la Rama Latinoamericana de la Asociación Internacional para el Estudio de la Música Popular (IASPM-LA).México, 2002, pp. 01-09.

[3] Carta de Silvio Rodriguez disponível em: http://ntd.la/silvio-rodriguez-tenia-una-ak-47. Acesso em setembro de 2016.

[4]FORTUNATO, Jomo. “No fervor da canção política”. In: Jornal de Angola, 18 de janeiro de 2010. Matéria disponível em:http://jornaldeangola.sapo.ao/cultura/no_fervor_da_cancao_politica. Acesso em outubro de 2016.

[5]Cf. HANNERZ, Ulf. “Fluxo, fronteiras, híbridos”. In: Mana 3 (1), 1997, p. 18.

[6]PARANHOS, Adalberto. A música popular e a dança dos sentidos: distintas faces do mesmo.  In: ArtCulturaRevista do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia – Dossiê História e Música, nº. 9. Uberlândia, MG: EDUFU jul./dez. 2004, p. 26.

Amanda Palomo Alves* Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Integrante da Associação Mural Sonoro

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“E o mar é tão grande”: utopia e liberdade nas cantigas de José Afonso, por Dulce Simões

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“E o mar é tão grande”: utopia e liberdade nas cantigas de José Afonso, por Dulce Simões

por Dulce Simões*

A canção lírica e satírica de raízes populares encontrou uma surpreendente renovação nas últimas décadas de resistência à ditadura do Estado Novo (1933-1974), e após o 25 de Abril de 1974 na luta pela consolidação de uma democracia participativa. Em ambos os processos José Afonso foi um trovador da liberdade, e uma das figuras mais marcantes da canção de intervenção em Portugal, desempenhando, desde os anos sessenta, um importante papel no combate à ditadura, através do canto e da poesia. Ao longo da sua obra manteve uma linha poética inspirada no cancioneiro popular na maioria das suas canções, para além de ter musicado e recriado temas e poesias de outros autores1. Ao cultivar e recriar diversos géneros musicados, como o “fado de Coimbra”, a balada e as canções populares de várias regiões de Portugal, transformou os versos e as músicas das suas cantigas em mensagens de luta pela liberdade, afirmando: “Semeio palavras na música. Não tenho pretensões de dar a estas minhas deambulações pela música popular qualquer outro rótulo. Faço apenas canções. A canção insere-se sempre dentro de um processo. A sua eficácia depende do processo em que se insere. A sua importância depende da vastidão desse processo” (Ribeiro, 1994).

O escritor Urbano Tavares Rodrigues, referindo-se ao álbum de fonogramas Cantares de Andarilho (1968), sublinhava: “José Afonso, trovador, é o mais puro veio de água que torna o presente em futuro, que à tradição arranca a chama do amanhã, a primeira voz da massa que avança em lume de vaga, a mais alta crista e a mais terna faúlha de luar na praia cólera da poesia, da balada nova” (Ribeiro, 1994). Para o escritor Óscar Lopes, a obra de José Afonso insere-se na tradição poética portuguesa, desde as barcas que levavam para a guerra o amigo, das canções trovadorescas de Martim Codax, passando pelas águas, o arquétipo das almas apaixonadas e livres de Menina e Moça de Bernardim Ribeiro, até ao vento, símbolo romântico da paixão e da revolta (Óscar Lopes cit. em Raposo, 2007: 65). Óscar Lopes também assinalava os ritos paralelísticos, a enorme liberdade de fantasia enternecida, solidária ou sarcástica, proporcionada pelo perfeito entrosamento entre a letra e a música, em motivos folclóricos rurais ou marítimos.

A ruralidade constituiu um dos elementos centrais da obra de José Afonso, refletida nas canções de embalar, nas canções de roda e de trabalho, ouvidas durante a infância e juventude decorridas em Belmonte e Coimbra, às quais imprimiu os mais legítimos anseios e aspirações das pessoas, no sentido da intervenção social2. O seu espírito de andarilho será marcado por sucessivas andanças, entre terra e mar, configurando “uma personalidade nómada, e uma inclinação para a divagação e para a abstração” (Cravo, 2009: 15). A errância e a inquietude vieram manifestar-se na maioria das suas cantigas, nas quais o mar é um tema apelante3.

fotografias de Dulce Simões

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O mar e as temáticas marítimas estão presentes na poética da sua obra, de forma explícita, associadas ao romantismo coimbrão e a realidades sociais concretas, e de forma implícita, servindo de metáforas de revolta e contestação política durante a ditadura de Salazar. Destacamos neste artigo os motivos marítimos na discografia de José Afonso, por manifestarem influências culturais entrosadas no seu percurso de vida, e serem recriados num legado poético de intervenção política e social. Nesta perspectiva, identificamos numa primeira fase da sua obra a presença do mar relacionada com as viagens entre África e Portugal desde a infância, com os dias de veraneio passados em Espinho e na Figueira da Foz, e com as deambulações pelas praias do sul até aportar em terras algarvias. Nesta fase da sua vida, profundamente marcada pelo romantismo e lirismo coimbrão, o mar é resgatado do cancioneiro popular açoriano nos temas “Balada” (1956) e “Mar Largo” (1956). Na canção “Balada de Outono” (1958), referida por alguns eruditos como representativa de uma rutura com o “fado de Coimbra”, José Afonso é ainda dominado pelo imaginário do trovador romântico, enamorado e solitário. Mas, em “Tenho Barcos Tenho Remos” (1962), reflecte claramente as suas experiências de vida, aliando o enamoramento à fraternidade em comunhão com o mar algarvio. Contudo, nunca deixará de recriar canções populares açorianas alusivas ao mar e às suas gentes, como em “Os Bravos” (1967) e “S. Macaio” (1969), da mesma forma que articula temáticas marítimas em canções de embalar, como “Menino d’Oiro” (1962) e “Balada do Sino” (1968).

A relação com o mar e com as comunidades piscatórias adquire particular relevância na sua vida e na sua obra a partir de 1960, quando se fixa em terras algarvias. Nas quais descobre a atmosfera “um pouco pagã” das festas populares, a “confraria de foliões” a que se associou, e Zélia (sua segunda mulher), que o reconciliou com “a água fresca e com os tons maiores”, fazendo eclodir aquilo que definiu por “canções maiores” (Simões & Mendes, 1995: 100). Nas “canções maiores” o mar e as temáticas marítimas atribuem sentido e significado à vida dos pecadores, como nos poemas “Ó Vila de Olhão” (1964) ou “Ti Alves” (1972), denunciando desigualdades e injustiças sociais. Mas também exprimem o flagelo da guerra colonial e da emigração em “Menina dos Olhos Tristes” (1969) e “Canção do Desterro” (1970), como metáforas e símbolos de liberdade, articuladas com o protesto político em “Vejam Bem” (1968), “Já o Tempo se Habitua” (1969), “Canto Moço” (1970), “Cantiga do Monte” (1970), ou em “Fui à Beira do Mar” (1972).

Numa nova fase da sua vida, marcada pelo 25 de Abril de 1974, o poeta e trovador da liberdade assume-se como “poeta militante”, aludindo a um tempo em que “o que faz falta é avisar a malta”. Um tempo durante o qual participou ativamente no Processo Revolucionário em Curso (PREC), manifestando-se frontalmente contra os “traidores da revolução”, como no poema “Viva o Poder Popular” (1975). Nesta fase a poética do mar perde relevância nas suas cantigas, exceto para dar voz às conquistas populares em “Os Índios da Meia Praia” (1976)4. No início da década de 1980 José Afonso retorna às origens coimbrãs, naquela que será a última fase da sua vida. Como cantor, reinterpreta o “fado de Coimbra” como herança cultural renovada, assumindo e definindo os contornos de um trabalho inovador. Como poeta, resgata o mar como metáfora de uma fraternidade utópica, posicionando-se, uma vez mais, como provocador de emoções e agitador de mentalidades. Neste artigo revisito a discografia de José Afonso focalizada na poética do mar, entretecida no percurso de vida de um homem que interveio socialmente “semeando palavras na música”.

fotografias de Dulce Simões

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 A poética do mar e das águas: tradição popular, utopia e liberdade

As águas do mar, pela sua grandiosidade, provocaram sempre uma emoção intensa quando vistas pela primeira vez. No cancioneiro popular, a largueza, ou imensidão do mar, constitui uma das características mais assinaladas nos versos do cancioneiro popular português, como em “Ó mar largo, ó mar largo”:

Ó mar largo, ó mar largo

Ó berço do marinheiro.

Às tuas águas salgadas

Vai banhar-se o mundo inteiro.

(Galhoz, 1997: 62)

 

Embarquei-me no mar largo,

Já perdi vistas à terra,

Já não vejo senão céu,

Água e vento que me leva.

(Nunes, 1978: 112)

 

José Afonso resgata o poema de Paulo de Sá, “Mar Largo”, para uma das primeiras gravações discográficas:

 

“Mar Largo” (Paulo de Sá/José Afonso, 1956)

Ó mar largo ó mar largo

Ó mar largo sem ter fundo

Mais vale andar no mar largo

Do que nas bocas do mundo.

 

Fosse o meu destino o teu

Ó mar largo sem ter fundo

Viver bem perto do céu

Andar bem longe do mundo.

 

No primeiro volume do Cancioneiro Popular Português, coligido por Leite de Vasconcelos, representam-se profusamente as fainas piscatórias dos “trabalhadores do mar” (1975: 264-275). Nestes versos, manifestam-se as preocupações decorrentes da vida dos pescadores sobre as águas do mar, ou seja, “em cima da sepultura”, exteriorizando as inquietações de quem tem os entes queridos entregues a essa labuta. Por vezes, surgem desabafos, em que estremecem lufadas carregadas do cheiro acre do sal, marulhos estrepitosos envoltos em fuliginosas sombras trágico-marítimas, e não faltam notas dramáticas de naufrágio e morte: “O pobre do pescador/ Já lá morreu afogado:/ Foi à pesca, lá ficou/ Nas ondas do mar rolado” (Nunes, 1978: 49). Estas e outras trovas marcam o sofrimento das pessoas que vivem dependentes do trabalho no mar, enfrentando obstáculos incontroláveis como os ventos, a chuva, a doença, que constituem não só um impedimento à obtenção de ganhos, mas que podem fazer surgir o espectro da morte, como no caso da iminência de um naufrágio. A ausência de segurança torna-se particularmente dramática na vida das gentes do mar, e “ser pescador é desempenhar uma actividade qualificada como profissão de alto risco, onde o número de acidentes mortais é francamente superior ao de outros sectores produtivos” (Nunesª, 1999: 287). Neste sentido, justifica-se que José Afonso tenha exaltado a bravura destes homens, numa canção que recria uma quadra do cancioneiro popular português.

Cancioneiro Popular

As ondas do mar são brancas

E no meio amarelas

Coitadinho de quem nasce

Para morrer no meio delas.

(Vasconcelos, 1975: 20)

Os Bravos” (Popular açoriana/José Afonso, 1967)

(…)

As ondas do mar são brancas

Bravo meu bem, e no meio amarelas,

Coitadinho de quem nasce

Bravo meu bem, para morrer no meio delas.

(…)

“Os Bravos” era uma canção popular frequentemente cantada em coro pelos estudantes de Coimbra, originários das ilhas dos Açores e da Madeira, que pertenciam às repúblicas “Corsários das Ilhas” e “Couraça dos Apóstolos”. José Afonso conviveu com estes grupos, e acrescentou à sua canção um curto estribilho, sobreposto aos acordes de uma escala musical espanhola (Simões & Mendes, 1995: 95). O mar da saudade e das ausências está muito presente na tradição popular, exprimindo as emoções daqueles que ficam, quando levados pelas vicissitudes da vida partem para além-mar noivos, maridos, filhos ou irmãos.

 

“Balada” (Popular açoriana/José Afonso, 1956)

(…) Quando o mê mano se foi

Sete lenços encharquei

Mai la manga da camisa

E dizem que não chorei. (…)

 

No cancioneiro popular soam imprecações contra o mar que separa, causador de dolorosas angústias, ou, tratando-se de temperamentos mais sofredores, ouvem-se os votos de que, para a pessoa bem-amada, “o mar se lhe torne em rosas / O navio num jardim”. Surge então a saudade, cuja especiosa “anatomia” foi feita por D. Francisco Manuel de Melo: “amor e ausência são os pais da saudade; e como nosso natural é, entre as mais nações, conhecido por amoroso e nossas dilatadas viagens ocasionam as maiores ausências, daí vem que, donde se acha muito amor e ausência larga, as saudades sejam mais certas.” (Nunes, 1978: 35). As saudades, acarretadas pela ausência, trazem consigo grande inquietação e o desejo ardente de um breve regresso do amado. Para minorar as saudades tenta-se utilizar o lenitivo de mensagens, que José Afonso tão bem recria a partir de uma canção popular açoriana:

“Canção Longe” (Popular açoriana/José Afonso, 1967)

Ó meu bem se tu te fores

Como dizem que te vais

Deixa-me o teu nome escrito

Numa pedrinha do cais.

(…)

“Balada de Outono” (José Afonso, 1960)

(…)

Águas

Do rio correndo

Poentes morrendo

P’rás bandas do mar

Águas

Das fontes calai

Ó ribeiras chorai

Que eu não volto

A cantar

Rios que vão dar ao mar

Deixem meus olhos secar

Águas

Das fontes calai

Ó ribeiras chorai

Que eu não volto

A cantar

A separação, com as consequentes saudades e lágrimas, ocupam lugar de relevo na lírica popular, sendo evocada a fonte que “não tardará a secar”, por oposição aos olhos “que não param de chorar”. Mas em “Balada de Outono” (1960) José Afonso inverte o sentido do poema, apesar de reflectir uma poesia dominada ainda pelo espírito coimbrão, como produto de um estado perpétuo de enamoramento, numa espécie de revivescência tardia da juventude, com “uma certa disposição fisiológica propensa à melancolia” (Simões & Mendes, 1995: 95). O trovador crê-se insubstituível, como um protagonista que a si próprio se interpela, para convocar a presença das águas dos ribeiros e dos rios, como testemunhas vivas do seu solitário cantar. O poema aponta para uma maior liberdade formal na construção das estrofes, com versos livres e desconcertantes, característica que José Afonso vai assumir como sua, de acordo com “o seu temperamento de homem pouco dado a regras e cedências” (Cravo, 2006: 44). No álbum de fonogramas Balada do Outono (1960), José Afonso introduz pela primeira vez o termo “balada”, para se libertar e diferenciar a sua obra do “fado de Coimbra”, de forma a poder expressar livremente as suas inquietações. Talvez por isso, o seu trabalho não foi particularmente bem recebido nos meios estudantis e académicos de Coimbra, conservadores e defensores de regras preestabelecidas.

Coimbra sempre lhe pareceu uma cidade pequena, e o mundo académico atrofiante para o seu génio desassossegado e livre, e então vagueava. Na entrevista a Viriato Teles, José Afonso afirmou: “Dormia ao relento, muitas vezes sozinho, outras vezes com outros gabirus. Fiz muito auto-stop, de capa e batina (…) Foram deambulações muito importantes para mim” (Teles, 1983: 21). “Menino do Bairro Negro” (1963) nasceu de uma dessas deambulações à boleia, de capa e batina, até ao Porto, cidade onde os amigos lhe deram a conhecer a Ribeira e o Barredo, realidades que não se confrontavam com o meio estudantil. Como mais tarde recordou: “o Porto para mim foi fundamental. (…) Tudo aquilo me chocou de uma maneira espantosa. (…) Lembro-me de ter visto os meninos que pululavam por aquelas ilhas. Foi uma coisa que eu pensei que só existisse nos filmes” (Salvador, 1983: 79). A canção “Menino do Bairro Negro” foi editado em 1963, no álbum de fonogramas Baladas de Coimbra, assinalando um dos primeiros temas vincadamente políticos, juntamente com “Os Vampiros”, que foram proibidos pela Censura. Para José Afonso, os meninos do Barredo eram os “meninos de ouro” que habitavam os céus antes do Dilúvio, “que descem à Terra e são condenados pelo tribunal de Menores a viverem em habitações palafiticas até ao dia do Juízo Final, representado por uma bola de cartão que desce, desce até tocar nas montanhas” (Simões & Mendes, 1995: 96).

 

“Tecto na Montanha” (José Afonso, 1968)

Num lugar ermo
Só no meu abrigo
Aí terei meu teto
E meu postigo

(…)

Olha o mar alto
Olha a maresia
Olha a montanha
Vem rompendo o dia.

fotografias de Dulce Simões

fotografias de Dulce Simões

A balada “Teto na Montanha”, editada em 1968, foi concebida no período das deambulações dos tempos de Coimbra, “em estado de penúria física e mental”, numa fase que José Afonso caracterizou de “mais ou menos franciscana”. Durante esta fase mística da sua vida, e embora não se reconhecendo como “devoto”, leu o “Hino ao Sol” de São Francisco de Assis, e alimentou uma enorme simpatia pela doutrina de amor à natureza e desprendimento pelos bens materiais perfilhadas pelos franciscanos, que assimilou como bastante realista e revolucionária. De tal forma que chegou a pensar: “Qualquer dia reduzo-me ao essencial e piro-me para uma terra qualquer, no cimo de uma montanha, daí aquela cantiga (…) Era frequente em Coimbra trocar de camisa com outros gajos. Era um símbolo, um testemunho de amizade” (Teles, 1983: 21). A fraternidade marcava os anos de Coimbra, onde uma certa “loucura” representava um sinal de pureza, alimentando os anseios de um mundo mais justo e igualitário.

No ano letivo de 1960/1961 José Afonso aporta em terras algarvias como professor, e descobre o mar da libertação, emocionalmente debilitado pela ausência dos filhos e pela rutura do primeiro casamento. Durante a sua permanência no Algarve, até 1964, inicia uma nova fase da sua vida. No desempenho das suas funções de professor fixou-se primeiro em Lagos, onde partilhou, com “figuras típicas” da cidade, “as beberragens, os arrozes de conquilhas e as caldeiradas” intercaladas de canções. Posteriormente, em Faro, percorrendo um sem-número de coletividades e espaços públicos, nos quais exprime a sua arte maior como cantador, constrói uma visão idílica do Algarve, convencido de que aí encontraria maior liberdade e menos interdições: “Algarve o nome me está lembrando/ Algarve e a brisa passa a cantar/ E as sombras leva-as o vento voltando/ Silêncio dizem as ondas do mar” (Salvador, 1983: 126). Todavia, deparou-se com uma sociedade profundamente marcada pelo controle social, na qual o Carnaval era a “válvula de escape”, a máscara da liberdade. Todavia, a experiência de vida em terras algarvias alargou os seus horizontes literários e poéticos. As suas especulações existenciais e metafísicas encontraram o epicentro de discussão no convívio com um grupo de intelectuais, companheiros de viagens marítimas e de sonhos, que metaforicamente inspiraram as suas canções.

A balada “Tenho Barcos, Tenho Remos” é um dos temas mais representativos desta fase de libertação do poeta-cantor, na qual expressa o amor por Zélia, a “quem não pode chegar” em virtude do controle social a que ambos estavam sujeitos. Paralelamente revela o convívio com os poetas surrealistas, que contribuíram para a depuração da palavra escrita. Porque apesar de nunca se ter assumido como poeta, José Afonso deixou muitos textos poéticos escritos à margem da sua produção como cantor, “reconhecendo a influência que sobre ele tiveram os surrealistas, tanto franceses como portugueses” (José Jorge Letria cit. em Cravo, 2006: 50). Neste tema, incluído no álbum de fonogramas “Baladas de Coimbra” (1962), José Afonso idealiza-se metaforicamente barco, navio, mar, livre de amarras, interrogando-se sobre o seu percurso de vida de adolescente a adulto, arriscando um tópico surrealista “o ser mulher” (Cravo, 2009: 58). No poema encontramos igualmente algum paralelismo com uma canção popular de Olhão:

Cancioneiro Popular (Olhão)

Tenho barcos, tenho redes

Tenho sardinha no mar

Tenho uma mulher bonita

Que não me quer trabalhar

(Vasconcelos, 1975: 274)

Tenho Barcos, Tenho Remos” (Popular/José Afonso, 1962)

 

Tenho barcos, tenho remos

Tenho navios no mar

Tenho amor ali defronte

E não lhe posso chegar.

 

Tenho navios no mar

Tenho navios no mar

Tenho amor ali defronte

Não o posso consolar. (…)

 

O aludido barco, comprado e recuperado pelo poeta surrealista António Barahona, batizado de “o barco do Diabo”, foi pertença de uma “pequena sociedade de foliões”, constituída por José Afonso, António Barahona, Manuel Pité, António Bronze e Luísa Neto Jorge. Entre os pescadores de Faro o barco era alcunhado pelo “Tosse Tosse”, como referência erótica às viagens e noitadas do grupo pela ria, no qual, Luísa Neto Jorge era a única mulher a bordo (Salvador, 1983: 123). “Tenho Barcos, Tenho Remos” expressa vivências partilhadas, numa comunhão perfeita com o mar algarvio, agrupados “numa espécie de ciclo fraterno representativo de uma das fases mais felizes da vida do autor” (Simões & Mendes, 1995: 98).

 

“Canção do Mar” (José Afonso, 1964)

Ó mar

Ó mar

Ó mar profundo

Ó mar

Negro altar

Do fim do mundo

(…)

O tema evocado vive da valorização sonora, dada pelo acompanhamento musical e pela repetição cadenciada da palavra “mar”. Para José Afonso a dificuldade consistiu em fazê-lo passar ao plano abstrato, como elemento omnipresente no espírito do cantor, fora do ambiente convencional para que foi criado (Simões & Mendes, 1995: 97). “Canção do Mar”, juntamente com “Ó Vila de Olhão” e “Maria”, dedicado a Zélia, faz parte do álbum de fonogramas Cantares de José Afonso (1964), no qual as temáticas marítimas servem para expressar claramente o seu posicionamento perante a vida e a sociedade, fruto das vivências com alunos do ensino noturno, trabalhadores estudantes de Faro e de Olhão, que o despertaram para novas realidades sociais (Salvador, 1983: 137)5.

Quando residia em Faro, José Afonso deslocava-se todas as semanas a Olhão, deambulando pela vila, em passeatas puramente contemplativas “pelas cabanitas e pelo cais”, apreendendo a labuta dos “trabalhadores do mar”. Dessas passeatas, e das relações que ia estabelecendo com os pescadores, nasceu o poema “Ó Vila de Olhão!”, manifestando uma clara paixão pelo lugar e pelas pessoas. Como mais tarde recordou: “Não sei bem porquê. Imaginava-a a terra do trabalho, ou a terra de indivíduos temperados pela experiência” (Salvador, 1983: 139). O escritor Raul Brandão, na sua obra “Os Pescadores”, fala-nos dos sentimentos de igualdade e fraternidade que caracterizavam “o marítimo de Olhão”, consciente de que no mar os homens eram todos iguais, por enfrentarem os mesmos perigos e partilharem o mesmo destino. A fragilidade e a incerteza da faina marítima alimentavam a religiosidade dos pescadores, reforçando a solidariedade, “arriscando a vida para salvar a dos outros: hoje por ti, amanhã por mim”. E como “o mar abundante e pródigo não tem cancelas, são generosos, imprevidentes e comunistas” (Brandão, s/d: 159).

 

“Ó Vila de Olhão” (José Afonso, 1964)

(…)

Larga ó pescador

O que tens na mão

Que o peixe que levas

É do teu patrão

É do teu patrão

É do teu patrão

 

Limpa o teu suor

No camisolão

Que o peixe que levas

É do cais de Olhão

 

Vem o mandarim

Vem o capitão

Paga o pagador

Não paga o ladrão

Não paga o ladrão

Não paga o ladrão

 

Ó vila de Olhão

Da Restauração

Madrinha do povo

Madrasta é que não

(…)

 

Em 1922, Raul Brandão escrevia: “há meio século, Olhão, entranhado de salmoura e perdido no mundo, vivia só do mar. Todos se conheciam. Os que não eram marítimos eram filhos ou netos de marítimos, contrabandistas uns e outros, pescadores costeiros e pescadores do alto que iam à cavala a Larache. (…) Havia muito peixe, e a vida era extraordinária” (Brandão, s/d: 156). José Afonso reencontra-se com o mar e com as fainas marítimas nas sucessivas viagens a Olhão, sobretudo de comboio, designando-a por “minha terra adotiva.” Sobre o poema que lhe dedicou, a que chamou uma “crónica rimada”, recorda uma dessas viagens que deram sentido e significado às palavras: “A meio do caminho da Fuzeta, entre Olhão e Marim, a vila vai-se adelgaçando, a viagem torna-se mais rápida e ruidosa, devido ao vento que entra pelas janelas. Pode-se berrar sem que ninguém nos ouça. Foi assim que nasceu esta crónica rimada. Servida pela cadência mecânica do «pouca-terra», versa em tema alusivo às vicissitudes por que passa o mexilhão quando o mar bate na rocha. A culpa não é do mar” (Simões & Mendes, 1995: 104).

Em 1968, a doença de Salazar e a tomada de posse de Marcelo Caetano como Presidente do Conselho de Ministros gerou algumas expetativas de transformação política e social6. A “Primavera Marcelista”, designada como o período histórico compreendido entre 1968 e 1970, no qual se verificou uma discreta modernização económica e uma liberalização política moderada, acalentou a esperança de uma transição política do regime e influenciou a poesia de José Afonso. Durante este período, o mar e as temáticas marítimas servem frequentemente de metáforas para apelar à mobilização e consciencialização política dos portugueses.

 

“Vejam Bem” (José Afonso, 1968)

Vejam bem

Que não há só gaivotas em terra

Quando um homem se põe a pensar

Quando um homem se põe a pensar

 

Quem lá vem

Dorme à noite ao relento na areia

Dorme à noite ao relento no mar

Dorme à noite ao relento no mar

(…)

“Vejam Bem” foi o tema musical do filme “O Anúncio”, apresentado no Festival de Cinema Amador pelo Cineclube da Beira, retratando a vida de um homem que procura emprego, dirigindo-se ao gerente de uma firma conceituada, a capatazes e mestre-de-obras, em vão. Privado de meios de sobrevivência, vê-se obrigado a dormir ao relento e a roubar para comer. Na retrete de um restaurante, único lugar onde não é visto, devora apressadamente dois ovos que metera ao bolso, aproveitando-se da algazarra geral. É à luz deste contexto dramático que poderão entender-se a linha melódica e o texto rimado, apensos às sequências julgadas mais expressivas (Simões & Mendes, 1995: 104). “Gaivotas em terra” é uma expressão popularmente utilizada para anunciar metaforicamente uma tempestade, ou um período conturbado de mudança. “Quando um homem se põe a pensar” representa um primeiro passo para a mudança, como processo de transformação social, em que o pensamento consolida o sentido da acção e da revolução. O motivo de “dormir ao relento”, usado frequentemente na poesia de José Afonso, representa a sua própria experiência de vida, embora no poema possa exprimir a condição social dos mais carenciados, ou o encontro fraterno dos que partilham os mesmos ideais de mudança.

“Vejam Bem”, tema do álbum de fonogramas Cantares de Andarilho (1968), assinala a fase política e culturalmente mais interventiva de José Afonso, aproveitando a escassa abertura da “primavera marcelista”. Neste trabalho, alia a criatividade poética à mais genuína inspiração popular, através da utilização de melodias tradicionais, mas “Vejam Bem” foi sem dúvida uma das canções mais marcantes da sua obra, transformando-se numa espécie de hino da “geração de 70”, na qual as temáticas marítimas apelam metaforicamente a uma liberdade desejada. Todavia, a transformação política do regime encontra fortes resistências à sua concretização, nomeadamente em relação à guerra colonial e à acção da polícia política (PIDE). Marcelo Caetano cede às pressões dos grupos mais conservadores do regime, facilmente percebidas pela oposição democrática e pelo Partido Comunista Português na clandestinidade. José Afonso capta e regista com clareza a correlação de forças políticas contrárias à mudança, no poema “Já o Tempo se Habitua”, usando metaforicamente elementos estilísticos marítimos.

 

“Já o Tempo se Habitua” (José Afonso, 1969)

(…)

Nem a rota

Da gaivota

Ao vento norte

Nem toda

A força do pano

Todo o ano

Quebra a proa

Do mais forte

Nem a morte

(…)


“Já o Tempo se Habitua”, com poema e música de José Afonso, é um dos temas do álbum de fonogramas Contos Velhos Rumos Novos (1969), galardoado com o prémio da crítica da Casa da Imprensa 1969. Neste álbum, fruto da recolha de música tradicional portuguesa, na procura de uma estética renovada, José Afonso demarca-se definitivamente da tradição coimbrã. Ao intercalar temas do cancioneiro popular com canções de denúncia e resistência, como “A cidade”, com poema de José Carlos Ary dos Santos e “Era de noite e levaram” de Luís de Andrade, numa alusão às prisões arbitrárias da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), assinala na sua obra os “rumos novos” anunciados pela “primavera marcelista”.

No sentido da mudança, José Afonso participou ativamente na campanha das Comissões Democráticas Eleitorais de 1969, empenhou-se nas ações da Liga de União e Acção Revolucionária (LUAR), na produção e distribuição de folhetos noticiosos e livros proibidos, e solidarizou-se com os presos políticos. No mesmo ano participou no festival “La Chanson de Combat Portugaise”, em Paris, juntamente com Luís Cília, José Mário Branco e Sérgio Godinho, denunciando a guerra colonial e a situação política portuguesa na Europa. A sua crescente popularidade como opositor ao regime acentuou a vigilância da PIDE, com a proibição das suas acuações, a interdição de visitar as colónias portuguesas em África, para além da censura sobre as canções “Vampiros” e “Menino do Bairro Negro”, editadas em 1963.

Em 1970 José Afonso recebe novamente o prémio da Casa da Imprensa pelo álbum de fonogramas Traz Outro Amigo Também, gravado nos estúdios da Pye em Londres, revelando uma grande maturidade poética e musical, e contribuindo decisivamente para a sua afirmação na renovação da música popular portuguesa, a par de outros cantores de intervenção como Adriano Correia de Oliveira em Coimbra, e Luís Cília e José Mário Branco em França. As referências a África e ao colonialismo surgem pela primeira vez nos seus poemas “Avenida de Angola” e “Carta a Miguel Djéje”, assinalando a sua experiência de vida em África entre 1964 e 1967. Neste álbum surgem igualmente os primeiros temas alusivos à emigração, e ao exílio em “Canção do Desterro”.

“Canção do Desterro (Emigrantes) ” (José Afonso, 1970)

Vieram cedo

Mortos de cansaço

Adeus amigos

Não voltamos cá

O mar é tão grande

E o mundo é tão largo

Maria Bonita

Onde vamos morar

(…)

A “Canção do Desterro” nasceu em Lourenço Marques, na sequência da leitura de um artigo da revista “Seara Nova” sobre as causas da emigração portuguesa. José Afonso tentou evocar a odisseia dos forçados actuais, partindo em modernas “naus catarinetas”, como os Mendes Pintos de outras épocas, “a caminho dum destino que na História se repete como um dobre de finados” (Simões & Mendes, 1995: 101). Consciente da realidade de um país estagnado e vigiado, José Afonso cria um dos seus mais belos poemas, incitando à liberdade de pensamento, no sentido de uma consciencialização política pela mudança anunciada. No texto de apresentação do álbum “Traz Outro Amigo Também”, o escritor Bernardo Santareno realçou a pureza, como a nota maior da arte de José Afonso. Pureza que se reflecte no tema “Canto Moço”, um poema de fraternidade a que não falta a raiva de quem se sente vigiado.

“Canto Moço” representa uma breve síntese de vários elementos da poesia de José Afonso, numa perfeita harmonia de símbolos, tradições, palavras e melodia. Síntese de tradições portuguesas relativas ao “mar” e da linguagem poética de José Afonso, vivificando palavras de várias épocas, medievais e clássicas, como “galera”, “barca”, “oliva”, “mágoa” e “madrugada”. Síntese da diversidade cultural das tradições judaicas e árabes na cultura portuguesa, assumidas com simplicidade e beleza, e síntese dos principais símbolos universais expressos na sua poesia, como o mar.

“Canto Moço” (José Afonso, 1970)

Somos filhos da madrugada

Pelas praias do mar nos vamos

À procura de quem nos traga

Verde oliva de flor no ramo

(…)

Vira a proa minha galera

Que a vitória já não espera

Fresca brisa moira encantada

Vira a proa da minha barca.

“Canto Moço” nasceu para ser cantado em coro, por estudantes universitários que José Afonso conheceu numa digressão em que participou, “destinava-se a ser interpretado como música coral por duzentos figurantes de ambos os sexos e de todas as proveniências e condições, como uma espécie de hino à Liberdade” (Simões & Mendes, 1995: 101). Para Helena Langrouva, a canção “Canto Moço” constitui a chave, e uma breve síntese de vários fulcros da poesia de José Afonso, unindo várias tradições e palavras com a melodia, no sentido da universalidade. A aventura, guiada pelo espírito, dirigindo o olhar para um futuro de paz, opõem-se à jornada da emigração expressa na “Canção do Desterro”, enquanto síntese de tradições portuguesas relativas ao mar. Por outro lado, destaca a relação dos “filhos da madrugada” com o “menino de oiro”, como duas formas de exprimir a esperança e a procura de luz. Por último, “Canto Moço” reúne os principais símbolos universais assumidos na poesia de José Afonso: o “mar”, como espaço infinito, de aventura, de integração no ritmo do universo e de libertação; a “barca”, representando a aventura; a “oliva e a pomba”, simbolizando a paz, a pureza e a harmonia; a “noite”, assinalando as trevas e ausência de luz; a “fogueira”, como símbolo de vida, de elevação do espírito, de luz no meio das trevas; o “vento e a brisa”, como sopro e leveza do espírito, a força para mudar de rumo, e a “madrugada”, trazendo a luz e a esperança numa sociedade mais justa (www.triplov.com/helena/Zeca-Afonso/Poesia-popular/resto.htm).

Ao lirismo coimbrão da saudade, no qual as lágrimas, as águas e o mar estavam impregnados de romantismo, sucedessem-se temas de intervenção política e social denunciando a guerra colonial. “Menina dos Olhos Tristes” (1969) representa, simbolicamente, o sofrimento das mães, esposas e noivas de milhares de soldados que partiam “para o outro lado do mar”, chorando a incerteza do regresso.

“Menina dos Olhos Tristes” (Reinaldo Ferreira/José Afonso, 1969)

Menina dos olhos tristes,

O que tanto a faz chorar?

- O soldadinho não volta

Do outro lado do mar.

(…)

O mar e as temáticas marítimas que metaforicamente se articulam com a contestação política, evidenciam-se nos poemas “Cantiga do Monte” (1970) e “Fui à Beira do Mar” (1972).

“Cantiga do Monte” (José Afonso, 1970)

(…)

Na crista da vaga

Tormento alonguei

No vento e na fraga

Só luto encontrei

 

Abriram-se as velas

Mal rompe a manhã

Na luz e nas trevas

Foi-se a louçã

(…)

 

“Fui à Beira do Mar” (José Afonso, 1972)

Fui à beira do mar

Ver o que lá havia

Ouvi uma voz cantar

Que ao longe me dizia

 

Ó cantador alegre

Que é da tua alegria

Tens tanto para andar

E a noite está tão fria

(…)

“Fui à Beira do Mar” surge numa fase de grande empenhamento político de José Afonso, revelando um poema de incentivo à luta, que antecede a sua detenção pela PIDE e a prisão em Caxias em 1973. Este tema, incluído no álbum de fonogramas Eu Vou Ser Como a Toupeira (1972) assinala o tempo em que José Afonso esteve praticamente impedido de cantar publicamente em Portugal realizando espetáculos em Espanha e em França, denunciando a situação política portuguesa. O álbum discográfico foi apresentado como um trabalho de coletivo, numa espécie de irmandade ibérica pela democracia e pela liberdade, unindo as colaborações de artistas portugueses e espanhóis. A este trabalho seguiu-se o álbum Venham Mais Cinco (1973), gravado em Paris com colaboração de José Mário Branco, incluindo diversos poemas escritos por José Afonso durante a sua detenção na prisão de Caxias, em Maio desse mesmo ano. Na balada “Que Amor não me Engana” a poesia atinge a vastidão do mar, livre de significados imediatistas e de interpretações lineares, sem perder o sentido da agitação sociopolítica que as suas intervenções musicais possibilitavam.

 

“Que Amor não me Engana” (José Afonso, 1973)

(…)

Muito à flor das águas

Noite marinheira

Vem devagarinho

Para a minha beira

(…)

Assim tu souberas

Irmã cotovia

Dizer-me se esperas

Pelo nascer do dia.

O 25 de Abril de 1974 representa o “nascer do dia”, esperado e desejado, após o qual José Afonso grava o álbum de fonogramas Coro dos Tribunais (1975), exprimindo nas suas canções a “revolução dos cravos”, frontalmente e sem metáforas, recriando na poesia a concretização de um sonho de liberdade que viveu intensamente. Entre 1974 e 1979 assumiu-se como “poeta militante”, trovador da liberdade, da mobilização popular e da luta pela consolidação da democracia participativa. O mar e as temáticas marítimas não são referenciados em nenhuma das suas canções, exceto no poema “Os Índios da Meia-Praia” (1976), testemunhando esta fase do trovador da revolução, como arauto do poder popular.

“Os Índios da Meia-Praia” (José Afonso, 1976)

Aldeia da Meia-Praia

Ali mesmo ao pé de Lagos

Vou fazer-te uma cantiga

Da melhor que sei e faço

 

De Monte-Gordo vieram

Alguns por seu próprio pé

Um chegou de bicicleta

Outro foi de marcha a ré

(…)

 

No poema “Os Índios da Meia Praia”, José Afonso conta a história de um grupo de famílias de pescadores oriundas de Monte Gordo que se fixaram em Lagos, nos areais da “Meia Praia”, na década de 1930, na procura de melhores condições de subsistência. O principal motivo da jornada estava relacionado com a pesca de arrasto realizada por barcos espanhóis, que deixavam sem peixe as águas junto à fronteira. Nos finais do século XIX, e nas primeiras décadas do século XX, os pescadores são desprezados pelos poderes públicos e sobrecarregados de impostos, “segregados e condenados a migrarem sazonalmente para fugir à miséria, enquanto a burguesia letrada que vem a banhos nas estâncias balneares se entretém a determinar os traços do seu carácter e a descrevê-los como descendentes de fenícios, gregos e púnicos” (Nunes(b): 2003, 133). Para as famílias de Monte Gordo, dependentes da pesca artesanal, forçadas a mendigar durante o Inverno para poderem sobreviver, a alternativa foi migrar para Lagos à procura de trabalho no mar. No extenso areal da “Meia Praia” construíram um aglomerado de barracas, feitas de canas, e aí se fixaram e permaneceram ao longo de gerações, contando apenas com o esforço do seu trabalho. Após o 25 de Abril, no âmbito de um programa de habitação social, foi-lhes prometido o seu realojamento num bairro de casas de tijolo, mas a burocracia adiou sistematicamente a concretização do projecto. Na luta pelo direito a uma habitação condigna os “índios da Meia Praia” deitaram mãos à obra, iniciando a construção por sua conta e risco, gerando diversos conflitos com os Serviços camarários que regulamentavam as obras de construção civil. O termo “índios” significa neste contexto “aqueles que perdem sempre, ou que têm de perder, os mais fracos e socialmente marginalizados” (Engelmayer, 1999: 50).

Quando o bairro foi oficialmente legalizado, “os índios” tinham investido oito mil horas de trabalho na realização do projecto, envolvendo homens, mulheres e crianças. Após as eleições de 1976, muitas das habitações sociais edificadas por iniciativa popular, durante o período revolucionário de 1974/1975, não chegaram a ser concluídas, mas tal não sucedeu aos “índios da Meia Praia”. Numa acção de solidariedade o cineasta António Cunha Telles filmou o processo de luta empreendido entre 1974 e 1976, realizando o filme “Continuar a Viver – ou os índios da Meia Praia”, para o qual José Afonso compôs a versão original da canção, mais longa daquela que conhecemos gravada, “criando uma simbiose entre a voz do povo e a voz do artista” (Engelmayer, 1999: 57).

Com o final do PREC, e após o 25 de Novembro de 1975 a revolução encontra o seu término, gerando no poeta-cantor o desencanto e a incerteza sobre o futuro da democracia participativa. No álbum de fonogramas Fura, Fura (1979), as referências ao “mar” e à “madrugada” voltam a emergir na poesia, como símbolos de resistência. Neste trabalho é acompanhado por uma nova geração de cantores e músicos, aos quais passa o testemunho de formas de expressão utilizadas nas primeiras obras, enriquecidas pela experiência humana e artística adquirida.

 

“Fura, Fura” (José Afonso, 1979)

(…)

Debaixo do céu

Que é pena, que é mágoa

Que uma ave de penas

Não possa voar

Às vezes

Não tenho jeito

P'ra falar de amigos

Meu amigo

Passageiro

Dá-me o teu capote

Para me abrigar

Vai num barco à vela

Numa aduela

Vai fazer-se ao mar

Em 1983 José Afonso grava o último disco em que participou ativamente “Como Se Fora Seu Filho”, testemunhando grande vitalidade e lucidez criativa, capaz de sobreviver a todos os tempos. Com arranjos musicais de Júlio Pereira, José Mário Branco e Fausto representa o olhar amadurecido e calmo de quem viveu a vida com intensidade e paixão. Numa viagem entre a utopia e o desencanto, o poeta José Afonso reconstrói as memórias, os desejos e os sonhos numa sociedade igualitária. Neste álbum, encontramos “Papuça”, um dos mais belos poemas sobre o 25 de Abril, numa reflexão serena e quase existencial sobre o que se fez, e o que ficou por fazer na “revolução dos cravos”.

“Canção da Paciência” (José Afonso, 1983)

Muitos sóis e luas irão nascer

Mais ondas na praia rebentar

Já não tem sentido ter ou não ter

Vivo com o meu ódio a mendigar

(…)

Na “Canção da Paciência” José Afonso recorre às temáticas marítimas para expressar a angústia e a deceção pelo rumo da sociedade portuguesa. O sentimento de perda invade o poeta, que ainda resiste, esperando pelo clarear de um novo dia. Em “Utopia”, refugia-se no sonho, no inatingível, forjando um ideal utópico de igualdade e fraternidade, deixando como interrogação: “que outro fumo deverei seguir na minha rota?”.

 

“Utopia” (José Afonso, 1983)

(…)

Homem que olhas nos olhos

Que não negas

O sorriso a palavra forte e justa

Homem para quem

O nada disto custa

Será que existe

Lá para os lados do oriente

Este rio este rumo esta gaivota

Que outro fumo deverei seguir

na minha rota?

No álbum de fonogramas “Galinhas do Mato” (1985) José Afonso não canta, mas deixa-nos o poema “Alegria da Criação”, contando a sua história de vida recriada metaforicamente no universo da ruralidade, anunciando, com serenidade e altivez, a chegada da “morte-feiticeira”, como síntese de uma vida vivida com paixão, de quem não se arrependeu de nada, porque só a vida o ensinou a cantar.

Notas finais:

A influência do cancioneiro popular e do mar nas cantigas de José Afonso remete para a importância das viagens como aprendizagem de vida, para a boémia e o lirismo coimbrão entrosados numa ruralidade incorporada, marcada pela imaginação e fantasia, para o espírito aventureiro do trovador e o desassossego existencial do poeta, na procura ávida da liberdade e da fraternidade utópica. Como afirmou o cantor Luís Goes: “José Afonso nunca abdicou dos valores do humanismo e do culto das utopias, tão essenciais à sobrevivência do homem. Como homem de causas acima de partidos políticos, fez das suas canções uma arma no combate às injustiças, à pobreza e às privações que também havia sentido ao longo da vida. Apesar de algumas vezes ser classificado de incoerente e contraditório, o facto é que nunca abdicou da sua liberdade crítica, nem da fraternidade utópica” (Cravo, 2006: 96). A partilha dos costumes e anseios dos “trabalhadores da terra e do mar”, a par das preocupações intelectuais dos letrados, configuraram a alma sensível do poeta-cantor que “semeava palavras na música”.

Na nossa perspectiva, o mais fascinante na obra de José Afonso foi sem dúvida a riqueza e variedade do seu génio, para além da escolha de poesias de outros autores vocacionadas para o canto. Como poeta deu rédea solta e criadora à lírica pessoal, exprimiu o mais persuasivo e generoso companheirismo, exprimiu os mais belos efeitos em incursões metafóricas, da mesma maneira que frontalmente, e sem metáforas, combateu os traidores da “revolução dos cravos”, aliando a fraternidade à denúncia da exploração salarial, do colonialismo, da violência e da hipocrisia. Por tudo isto “Grândola, Vila Morena” foi o santo-e-senha musical da revolução de Abril, por representar as aspirações daqueles que lutaram contra a ditadura, mantendo-se intemporalmente no repertório de contestação popular às políticas neoliberais, pelo direito à igualdade, na fidelidade ao princípio de que “o povo é quem mais ordena”.

 

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Este artigo foi publicado primeiramente em A Trabe de Ouro, Publicación Galega de Pensamento Crítico, Octubre/Noviembre/Diciembre, nº 96, 2013, ISNN: 1130-2674.

Outros artigos da mesma autora publicados nesta área desta plataforma**: «Carnaval em Lazarim: Máscaras, Testamentos e Práticas Carnavalescas», aqui »»»

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*Dulce Simões integra a Associação Mural Sonoro e tem publicado nesta área do Portal Mural Sonoro**, onde outros autores alguns dos seus artigos - resultado das suas investigações.  É doutorada em Antropologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH/NOVA) e bolseira de Pós-Doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). É investigadora integrada no INET-md e colaboradora do Instituto de História Contemporânea (FCSH/NOVA). É membro fundador do Grupo de Estudios Sociales Aplicados da Universidad de Extremadura (GESSA) e da Red(e) Ibero-Americana Resistência e(y) Memória (RIARM). Realiza investigação em Portugal e Espanha sobre fronteiras, movimentos sociais, usos políticos da memória e práticas da cultura. Participa em projectos de investigação internacionais e multidisciplinares.       

**Recepção musical: à excepção do restante portal, com trabalhos de Soraia Simões, nesta secção a autora publica, além do seu trabalho, outros autores com os quais se tem cruzado ou colaborado noutros projectos, convidando-os a partilhar também neste seu espaço resultados dos seus trabalhos de investigação.

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Referências bibliográficas:

Brandão, Raul. s/d. Os Pescadores (1893-1923). Lisboa: Ulisseia.

Cravo, Jorge. 2009. José Afonso. Da Boémia Coimbrã à Fraternidade Utópica. Coimbra: Câmara Municipal de Coimbra.

Engelmayer, Elfriede. 1999. José Afonso, Poeta. Lisboa: Ulmeiro.

Galhoz, Maria Aliete. 1997, Pequeno cancioneiro popular. Porto: Civilização.

Nunes, Maria Arminda Zaluar. 1978. O cancioneiro popular em Portugal, Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa, Secretaria de Estado da Cultura, Ministério da Educação e Cultura.

Nunesª, Francisco Oneto. “O Problema do Aleatório: da Coerção dos Santos ao Idioma da Inveja”. Etnográfica, vol. III (1999): 271-291.

Nunes(b), Francisco Oneto. “O Trabalho faz-se Espetáculo: a pesca, os banhos e as modalidades do olhar no litoral central”. Etnográfica, vol. VII (2003): 131-157.

Raposo, Eduardo. 2007. Canto de Intervenção (1960-1974). Lisboa: Público.

Ribeiro, Rogério. (coord.). 1994). Zeca Afonso – Poeta, Andarilho e Cantor. Lisboa: Associação José Afonso.

Salvador, José A. 1984. Livra-te do Medo. Estórias & Andanças do Zeca Afonso. Lisboa: Regra do Jogo.

Santos, João Afonso dos. 2002. José Afonso, um olhar fraterno. Lisboa: Caminho.

Simões, Manuel e Mendes, Rui. 1995. Cantares. José Afonso. Coimbra: Fora do Texto.

Teles, Viriato. 1983. Zeca Afonso. As Voltas de um Andarilho. Lisboa: Relógio D’Água.

Vasconcellos, José Leite de. 1975. Cancioneiro popular português. Vol. I. Coimbra: Universidade de Coimbra.

 

Fontes Internet:

Discografia de José Afonso consultada na Associação José Afonso (site oficial): http://www.aja.pt/

“Os símbolos de purificação: a madrugada, a água, a brisa, o vento e o fogo: «Canto Moço»” de Helena Langrouva. (Consultado em Outubro de 2010). Disponível em: http://www.triplov.com/helena/Zeca-Afonso/Poesia-popular/simbolos.htm

“José Afonso: um professor que não usava fato e gravata – memórias de uma aluna de Setúbal”. Expresso. (Consultado em Outubro de 2010). Disponível em: http://aeiou.expresso.pt/jose-afonso-um-professor-que-nao-usava-fato-e-gravata-aluna-de-setubal=f528847

1 Nas cento e vinte e cinco canções da coletânea Movieplay, setenta e uma têm poesias de sua autoria, e as restantes cinquenta e quatro remetem para diversos autores distribuídos da seguinte forma: “fados de Coimbra” (14), canções populares (20), e outras (20). Os catorze fados de Coimbra interpretados por José Afonso são respectivamente da autoria de Ângelo Araújo, António Menano, António Nobre, Carlos Figueiredo, Edmundo Bettencourt, Felisberto Ferreirinha, Fortunato Fonseca, Mário Faria Fonseca, Paulo de Sá e Tavares de Meio. Das vinte canções populares cinco são da Beira­ Baixa, três dos Açores e as restantes de Trás-os-Montes, Beira-Alta, Alentejo e Galiza. As restantes vinte canções têm como autores Aires Nunes (trovas do séc. XIII), António Quadros, Barnabé João (pseudónimo de António Quadros), Bertolt Brecht, Luís Francisco Rebello, Fernando Miguel Bernardes, Fernando Pessoa, Hélder Costa, Jorge de Sena, José Carlos Ary dos Santos, Lope de Veja, Natália Correia, Luís de Andrade (Pignatelli), Luís de Camões, Nicolau Tolentino e Reinaldo Ferreira. Ver discografia completa, no site da Associação José Afonso, consultável em: http://www.aja.pt/discografia/.

2 José Afonso viveu a infância em Belmonte, em casa do tio Filomeno, com quem apreendeu as cantigas populares da Beira Baixa, o despertar para os temas líricos de ópera, o gosto pelo “fado de Coimbra” e a descoberta de Edmundo Bettencourt. Em Coimbra viveu a adolescência, em casa da tia Avrilete, partilhando terços e novenas com os contos populares narrados e inventados pela Joana, serviçal da casa. Foi um período de intensa rebeldia (do liceu à universidade), durante o qual encontrou na boémia a sua redenção. As noites eram passadas em deambulações pela cidade “com meia dúzia de meliantes da minha idade, amantes inconsequentes da noite” (Teles 1983, 18), configurando o lirismo de uma Coimbra poetizada ao unir a sua voz aos acordes da guitarra e da viola. “Quando íamos às aldeias, rapávamos de violas e guitarras, cantávamos e, às vezes, davam-nos umas línguas de bacalhau e uns copos” (Salvador,1983: 56), recordava José Afonso das suas vivências de aluno do liceu. Um Cartaz da Queima das Fitas, representando um grupo de estudantes atravessando o espaço numa réstia de luar, dançando de braço dado em direção à lua, refletia a atmosfera romântica e irreverente desses primeiros anos.

3 Durante a sua permanência em Coimbra viveu diferentes fases da sua vida com a mesma paixão: a fase do futebol, no Campo de Santa Cruz com os colegas do liceu, e posteriormente como extremo-direito nos juniores da Associação Académica; a fase das cantigas, participando no Orfeão Académico e na Tuna, vagueando pela cidade e pelas republicas estudantis (Cágados, Corsários das Ilhas, Prá-quis-tão, Palácio da Loucura e Ai-Ó-Linda); a fase do Coral de Letras, que ajudou a fundar, ao qual pertenceu Lúcio Lara (dirigente do MPLA), e a fase do Ateneu, de convívio com os “futricas”, quando rejeitou a tradição e a praxe, após a crise académica de 1969. No Ateneu, coletividade fundada por operários, comerciantes e industriais da zona da Sé Velha, partilhou a cultura popular da cidade: “esse mundo popular de Coimbra que eu conheci das cantadeiras, das criadas, dos fulanos que iam pedir medicamentos à malta, de toda aquela fauna que gravitava em torno dos estudantes, às vezes com laços de grande cordialidade e de grande amizade” (Santos, 2003: 125).

4 O Processo Revolucionário em Curso (PREC) foi um período histórico e revolucionário após o 25 de Abril de 1974, compreendido entre Julho de 1975 e o Golpe Militar de 25 de Novembro de 1975, fortemente impulsionado por partidos e organizações de esquerda, de extrema-esquerda, e pela participação popular. A este período histórico está associado a criação de associações de trabalhadores, associações culturais, associações de moradores, o Serviço Cívico, as Campanhas de Dinamização Cultural e a Reforma Agrária. Para uma abordagem mais completa, ver: Rosas, Fernando. 2004. “A Revolução e a Democracia”, em Francisco Louçã e Fernando Rosas (org.). Ensaio Geral. Passado e Futuro do 25 de Abril. Lisboa: D. Quixote, pp. 15-49.

5 Para além do ensino da História, que fazia parte do programa curricular, José Afonso contava outras “histórias” nas salas de aula, algumas das quais permanecem na memória dos seus antigos alunos. A advogada Alice Brito foi aluna em Setúbal, e nunca esqueceu a resposta de um pescador, que remendava redes no areal, quando José Afonso, distraidamente, foi embater nele: “- E o mar é tão grande!” Consultável em: http://aeiou.expresso.pt/jose-afonso-um-professor-que-nao-usava-fato-e-gravata-aluna-de-setubal=f528847.

6 Sobre a “Primavera Marcelista” ver, por exemplo: Rosas, Fernando. 2004. Transição Falhada. O Marcelismo e o Fim do Estado Novo 1968-1974. Lisboa: Editorial Notícias

 

 

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Estudantinas – danças carnavalescas na raia do Baixo Alentejo, por Dulce Simões

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Estudantinas – danças carnavalescas na raia do Baixo Alentejo, por Dulce Simões

por Dulce Simões*

O Carnaval, tema milenário do “mundo às avessas”, propicia práticas rituais de inversão que assinalam um tempo de utopia. Por isso, todas as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados de lirismo e da consciência sobre a relatividade da verdade e do poder. Este tipo de pensamento, disfarçado de forma alegórica, revela uma declaração explicitamente revolucionária, pela crítica e negação da ordem social existente. Até ao 25 de Abril os versos das Estudantinas passavam pelo crivo da censura do Presidente da Câmara (Barrancos) ou do Regedor (Amareleja) e eram cantados pelas ruas das vilas no domingo e na terça-feira gorda. Os versos das Estudantinas, acompanhados de música e teatralizações, falavam do que de bom e de mau foi feito ao longo do ano, e visavam direta ou indiretamente os vizinhos e os representantes do poder. Os autores mais recordados em Barrancos são o “Cumbreño” e o “Lelo”, e na Amareleja o Luís Perico, que “dava uma na caixa, e outra de racha”, como recordam os mais idosos.

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Amareleja - Estudantina de 1960

Como prática carnavalesca as Estudantinas perderam alguma dinâmica em anos fortemente marcados pelos fluxos migratórios. Em Barrancos restam algumas fotografias e versos que ajudam a reconstruir a memória de um tempo de folia, que actualmente não atrai o interesse dos jovens .

 

Barrancos – Estudantina de 1961

Barrancos – Estudantina de 1961

“Trabalho não nos arranjam /Isto assim não pode ser /Nós temos que trabalhar/Para se queremos comer./ Rapazes tenham paciência / Temos de seguir andando /De noite por essas fragas /Na vida do contrabando” (Barrancos -excerto da Estudantina de 1973).

Na Amareleja, as Estudantinas mantiveram-se como prática cultural carnavalesca. Em 1992 a Junta de Freguesia promoveu o primeiro concurso de Danças/Estudantinas para “manter a tradição”, que contou com a participação de cinco grupos. No ano seguinte estabeleceu um roteiro pela vila, assinalando os locais de actuação, que actualmente se mantêm. Os grupos são constituídos por familiares e amigos que partilham a mesma visão do mundo, e pretendem manter uma prática cultural herdada dos pais e avós. Quase todos os intervenientes evocam algum familiar com o qual se estrearam nas Estudantinas, e começaram tão jovens como aqueles que integram os grupos da Hortense, do Carlos Prazeres e do Manuel Valente. As competências musicais e vocais dos participantes, aliada à criatividade dos versos, fazem do processo de criação um tempo de convívio e cumplicidade entre os elementos dos grupos. Tudo começa pela escolha do tema musical, ao qual se ajustam os versos, em função das temáticas sociais escolhidas. A rima é particularmente apreciada pelos mais idosos, que ainda não reconhecem nos jovens as qualidades atribuídas ao saudoso Luís Perico. Os temas de crítica social enlaçam as problemáticas locais com a crise global, refletindo uma “visão do mundo” de falsas promessas eleitorais, de alterações de valores e perdas de direitos sociais. A Junta de Freguesia da Amareleja apoia os grupos com 150€, e oferecia um jantar. Mas, em 2014, “nem petiscar…” como diziam os versos da Estudantina do grupo de Carlos Prazeres.
Nos últimos anos, as Estudantinas da Amareleja suscitaram o interesse dos vizinhos da Granja, de Santo Amador, de Moura e de Santo Aleixo da Restauração que desfilam na terça-feira gorda pelas ruas da vila da Amareleja. Todavia, os grupos amarelejenses não se revêm nas performances dos vizinhos, que caracterizam de “folcloristas”, defendendo as suas danças como representativas da tradição local. A concertina, as pandeiretas, as castanholas e as zambombas são os instrumentos estruturantes, aos quais se juntam violas, caixas, bombos ou trompetes, conforme a criatividade de cada agrupamento. Na manhã de terça-feira os grupos da Amareleja percorrem as ruas da vila criando o seu roteiro de actuações, e coincidem no Lar de Idosos, frente à Casa do Povo e SFUMA e no Regato. Na parte da tarde a concentração e actuação de todos os grupos inicia-se junto à Igreja Matriz, seguindo-se o desfile e actuações frente à Junta de Freguesia, nas 4 esquinas e por fim no Regato, para onde converge o público (locais e forasteiros). Em 2014 as Estudantinas denunciavam o desemprego, a emigração dos jovens, o grupo de Carlos Prazeres cantava:

“Estamos de novo, cantando para o povo, este Carnaval / Já não é feriado, está tudo acabado, neste Portugal /As festas acabam, e ainda por cima, muitos emigraram, porque em Portugal, já não há esperança /Se tudo abalar, temos que ir cantar, a dança na França.

Em 2015 a festa começou pela manhã, no lugar dos Barranquinhos, situado no extremo da vila na estrada para Barrancos, e terminou no Regato, o coração da vila alentejana. Os grupos de Estudantinas percorreram as ruas e os vizinhos assomaram-se às janelas e às portas, para partilharem do riso e da crítica social, e alguns contribuem com o que podem para a colecta dos grupos. Ao longo do percurso pelas ruas os grupos são recebidos em casas de amigos e familiares que lhe oferecem comida e bebida. “É a folia que nos chama” dizem uns versos, reafirmando que “a Amareleja tem mais cor quando chega o Carnaval”. Em 2015 saíram cinco grupos da Amareleja: da Hortense Lameiras, do Manuel Estevão, do António Guerra, do Carlos Prazeres e do Mário Valente. A festa atraiu grupos das povoações vizinhas de Santo Amador, Moura, Safara e Granja. A Granja fez-se representar por um grupo feminino e outro masculino, membros dos grupos corais da Casa do Povo. De Safara veio a banda juvenil, e dos Leões de Moura veio um grupo misto de cantadores. Os versos das Estudantinas falaram do desemprego, dos cursos de formação, dos subsídios da União Europeia para “os jovens agricultores”, denunciando as falácias do discurso do poder. O reconhecimento do cante a Património Imaterial da Humanidade foi homenageado por todos os grupos, “depois de 50 anos a cantar”, dizia um cantador. Os versos denunciaram os casos mais mediatizados, como “o caso Sócrates”, “o terrorismo” e a intolerância religiosa, os programas de televisão, como “A casa dos segredos”, assim como os acontecimentos locais que geram polémicas como “o Dia da Mulher” e os conflitos do poder local em torno de um Pavilhão. Como cantava o grupo de António Guerra:

“Muita coisa aconteceu / neste ano que findou, /continuou-se a viver mal, / até aqui nada mudou”.

 

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*Dulce Simões integra a Associação Mural Sonoro e tem publicado nesta área do Portal Mural Sonoro**, onde outros autores alguns dos seus artigos - resultado das suas investigações.  É doutorada em Antropologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH/NOVA) e bolseira de Pós-Doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). É investigadora integrada no INET-md e colaboradora do Instituto de História Contemporânea (FCSH/NOVA). É membro fundador do Grupo de Estudios Sociales Aplicados da Universidad de Extremadura (GESSA) e da Red(e) Ibero-Americana Resistência e(y) Memória (RIARM). Realiza investigação em Portugal e Espanha sobre fronteiras, movimentos sociais, usos políticos da memória e práticas da cultura. Participa em projectos de investigação internacionais e multidisciplinares.       

Este artigo foi publicado também no espaço virtual da autora, aqui »»» 

Outros artigos acerca de práticas carnavalescas da mesma autora publicados nesta plataforma: «Carnaval em Lazarim: Máscaras, Testamentos e Práticas Carnavalescas», aqui »»»

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**Recepção musical: à excepção do restante portal, com trabalhos de Soraia Simões, nesta secção a autora publica, além do seu trabalho, outros autores com os quais se tem cruzado ou colaborado noutros projectos, convidadando-os a partilhar também neste seu espaço resultados dos seus trabalhos de investigação.

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Música no meio ou meio com música?

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Música no meio ou meio com música?

por Soraia Simões de Andrade [1]

breves

As razões que contribuíram para os meios fonográficos se tornarem reprodutores de música confundem-se com as razões subjacentes ao uso e comercialização de uma ‘música erudita’ e de uma ‘música popular’. Seja os discos e as plataformas online, mais tarde, como meios de reprodução seja os instrumentos e a maquinaria adaptados ao mercado musical.

As razões pelas quais, não obstante da sua capacidade material representar uma experiência estética (e/ou técnica) distinta, os discos foram entendidos como formatos de um “som original” tornou-os essenciais para uma configuração social que se adaptou ao contexto social durante a segunda metade do século XX e que fez com que despontassem no meio musical opinadores sobre o formato final e não sobre a música em si mesma, mesmo nos meios de uma ‘música erudita’ em que o debruçar sobre a partitura se trocou pela opinião sobre o disco que fixou essa música, e a opinião transmitida em círculos sem ligação anterior a uma teoria ou leitura musical formal.

Para se entender o papel dos veículos de comunicação na cultura contemporânea tornou-se imprescindível abordar o seu cariz histórico-social.

No cariz social do meio sonoro-musical existe uma tendência para eleger a tecnologia como factor desencadeador de processos sociais.

Todo o meio se passou a assumir como uma entidade autónoma dos seus contextos sociais e históricos, no qual o efeito sensorial da tecnologia sobre o indivíduo e suas consequências na sociedade o foi transformando num motor da evolução social, uma extensão do humano e, até, incorpóreo, na medida em que a visão de uma nova sociedade – de uma ‘aldeia global’ – vira costas aos tradicionais valores que governavam as relações entre as pessoas e passa a ser o objecto final, e não a ligação directa e sequencial ao meio musical desde o momento em que a ideia surge até à sua organização (pauta, junção de harmonia/melodia/ritmo/dispositivos e materiais diversos), a causa. O meio existente passou a ser a causa e tudo o resto os efeitos sobre a mesma.

Para mim, uma das consequências mais negativas deste formalismo é fazer refém de uma perspectiva limitada uma série de factos complexos, que não passam pela materialidade do meio. O terem-se preterido aspectos fundamentais, como os significados da técnica num determinado tempo na sociedade e os seus efeitos sociais. Problemáticas sobre as quais as determinações político-económicas e científicas contribuíram para que alguma tecnologia fosse implementada e se tornassem, para muitos, despropositadas, ainda que se saiba, na prática, que são fundamentais.

A organização social dos meios fonográficos em bens culturais (desde os esforços científicos, para a reprodução sonora, que levaram à criação do telégrafo, ao veicular de impulsos eléctricos como informações por redes de receptores com e sem fio, ou necessidade de registar esse fluxo de informação) faz parte de um contexto historicista em toda a música, que a transformou em si mesma num produto de entretenimento assente numa indústria de comunicação muito desatenta ou que delega para segundo plano o envolvimento com os processos de criação.

Fotografia da minha autoria tirada durante entrevista realizada na ''Casa Museu'' de Nuno Siqueira, disponível em: Nuno Siqueira, História Oral Mural Sonoro

Fotografia da minha autoria tirada durante conversa na ''Casa Museu'' de Nuno Siqueira, disponível em: Nuno Siqueira, História Oral Mural Sonoro

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Angola: o itinerário da palavra na canção e a emancipação da cultura popular face ao imperialismo português (1961 - 1975)

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Angola: o itinerário da palavra na canção e a emancipação da cultura popular face ao imperialismo português (1961 - 1975)

por Soraia Simões de Andrade *

Fotografia do Documentário Dipanda’75, autor: Alexandre Nobre, Espólio Rádio Nacional de Angola (RNA), registos autorizados para realização de documentário

Fotografia do Documentário Dipanda’75, autor: Alexandre Nobre, Espólio Rádio Nacional de Angola (RNA), registos autorizados para realização de documentário


À Independência de Angola a onze de Novembro de 1975 ficou ligado um universo empenhado politicamente de músicas e interpretações.

A luta pela independência foi considerada numa linha temporal ampla: congregou um período extenso de preparação, um período marcado por um conjunto de acções revolucionárias e uma época de estabilização. A música de resistência, ou subterrânea valendo-me de uma expressão de José Mário Branco nas nossas conversas registadas (anexo), da década de sessenta, o canto de protesto da fugaz Primavera Marcelista, o período do canto livre no ano da Revolução, e o período dos Grupos e colectivos de Acção Cultural durante a fase de fortalecimento da democracia em Portugal, criaram laços com a canção que era produzida em Angola em alturas semelhantes.

O período que marcou o exílio de um grande grupo de jovens, reforçado pela política colonial portuguesa, permitiu a disseminação da música política, para usar a designação de José Afonso a propósito do disco O Coro dos Tribunais, quer em Portugal como em Angola.

Contextualizando no tempo histórico, e não apenas no modelo musical, traçarei uma possível rota da palavra na canção em Angola de 1961 a 1975, procurando reflectir sobre o modo como o texto das canções, a utilização de símbolos nacionais e o uso de instrumentos musicais locais foram, simultaneamente, uma forma de legitimação social e cultural angolanos e um mecanismo de combate face ao imperialismo português.

Para entender o uso da cultura como forma de combate prefigurou-se a reunião de fontes a respeito não só da guerra colonial como de nominatas e concepções fugidias, como de ‘uma identidade’, do desmantelamento das terras africanas, ou da construção de uma Angola colonial durante o século vinte.

Além de fontes usadas tradicionalmente no âmbito historiográfico, como bibliografia geral e específica de enquadramento [1 e 2], reuni algumas fontes audiovisuais [3], fontes orais - testemunhos inéditos de quatro músicos entrevistados na cidade de Luanda no ano 2007 para o documentário Dipanda’75 [4].

Por via da representação do localismo em palcos maiores, através das práticas literárias-musicais de Ruy Mingas, Bonga, Teta Lando (M'Banza Kongo, 2 de Junho de 1948 - Paris, 14 de Julho de 2008) e Carlos Lamartine entre 1961 e o 11 de Novembro de 1975, altura em que se dá a Independência de Angola, não só os elementos culturais como as suas diferentes visões políticas descreveram linhas de orientação inseparáveis dos movimentos de libertação.

A escolha destes quatro entrevistados esteve relacionada com os papéis dos textos musicados como forma de combate e de resistência às censura e ditadura durante o período colonial, procurando interpretar elementos de cultura local aliados a uma visão política dos autores, por via dos quais se afirmaram num cenário de guerra.

Alguma da abordagem historiográfica entre 1950 e 1980 entende como cultura política o ‘conjunto de valores identificativos de correntes políticas’, mas que não se cingem ao partido político, como é o caso da historiadora brasileira Amanda Palomo Alves [5].

Este breve texto é parte do argumento do documentário realizado por Alexandre Nobre, procura aprofundar, usando fontes inéditas como as entrevistas supramencionadas, a leitura existente acerca do papel de uma suposta ‘cultura angolana’ na europa em retroalimentação com a que era editada ou apresentada em Portugal.

Não obstante as valiosas contribuições da investigadora brasileira Amanda Palomo Alves, do trabalho no âmbito jornalístico de Jomo Fortunato [6] , no seio da história da música em Angola de Marissa J.Moorman [7] ou do realizado pelo músico e investigador Mário Rui Silva [8], este artigo teve como principal objectivo introduzir uma outra alínea de investigação, ainda não tratada de um modo claro: a das cumplicidade e alimentação mútuas entre os actores da canção e os repertórios angolanos e os actores da canção e os repertórios portugueses no período de resistência à ditadura.

Sociedades da oralidade

Alguns autores descrevem as sociedades africanas como um palco privilegiado para o desenvolvimento dos processos de transmissão oral, onde estes mais ganharam forma, especialmente nos períodos conturbados de guerra. O investigador Amadou Hampâté-Ba [9] define-as como ‘sociedades da palavra’, muito embora a música tenha sido o canal privilegiado na difusão dessas palavras durante o colonialismo português do século vinte.

Quando os instrumentos electrificados foram introduzidos na música em Angola houve uma consolidação de práticas tradicionais angolanas como o semba [10]. Segundo  Jomo Fortunato, consultado por Alexandre Nobre em Luanda para o documentário Dipanda'75, a canção «Milhoró» do grupo Kiezos insere-se neste contexto. A canção versa: “Vão, vão, vão-se embora que isto assim não pode ser”. Esta canção assinalou uma época de prisões consecutivas, tornou-se célebre entre os movimentos de libertação em Angola, numa altura em que o intérprete da música, Vato Costa – irmão de Carlos Lamartine –, que o substituiria, seria preso.

Para Jomo Fortunato «é impossível escrever-se acerca da História da Música Popular em Angola sem se fazer uma referência ao período que vai desde o ano de 1950 ao ano de 1975». Isto deve-se não só ao facto de ter sido um período de grande criatividade cultural como por, tendo a prática musical como vector principal, os textos se afirmarem na sociedade angolana como sendo resultado da própria violência colonial que se foi desenvolvendo ao longo de cinco séculos de colonização.

A amplificação colonial nos anos 50

A música é analisada e interpretada dentro das suas regras particulares, existe um sistema organizacional: tonal e rítmico, que são produtos e estruturas culturais seleccionados em certos contextos sociais, pelo que tem de se ter em consideração tanto o conjunto de sons disponíveis para cada músico, como o contexto social em que as suas obras são produzidas e escutadas [11].

As mudanças ocorridas no mundo colonial durante este período foram notórias. O universo colonial começou a transformar-se de modo célere na segunda metade dos anos cinquenta. A guerra da Argélia, a Conferência de Bandung, as primeiras independências africanas, ressoaram inevitavelmente em (naquilo que este contexto político definiu como) territórios ultramarinos.

Em Dezembro de 1955 Portugal foi recebido na Organização das Nações Unidas, que veio a atribuir ao regime de  Oliveira Salazar alguma atenção do exterior. Se até à data a política colonial exercida pelo Estado Novo passou desapercebida, a partir da sua admissão na ONU as luzes acenderam-se, incidiram sobre nós, e fizeram ricochete em fóruns de destaque internacionais, passando Salazar a um dos alvos preferidos dos críticos do colonialismo [12].

O investimento económico do Governo de Lisboa nas colónias (Planos de Fomento 1953 – 1959 e 1959 – 1964), orientado não só para apoiar a colonização branca como para a exploração dos recursos naturais e para dirigir equipamentos e infra-estruturas, no caso de Angola concretizou-se no melhoramento e expansão da rede rodoviária e de caminhos-de-ferro e em melhoramentos portuários, tendo em vista o fortalecimento das políticas coloniais, na medida em que a modernização destes sectores teve como finalidade criar uma industrialização mais saliente nas colónias, por via da deslocalização da indústria têxtil algodeira, entre outras, apesar da mesma nunca se ter verificado, nem na escala nem nos moldes ambicionados.

A este factor acresceu, por um lado, a colaboração dos norte-americanos no sector agrícola no âmbito do Plano Marshall [13], por outro lado, o facto de o Estado Novo ter alguma resistência em envolver capital estrangeiro nas colónias.

Em Luanda o caso do petróleo foi elucidativo no pós-guerra, quando os excedentes do capital desapareceram e o regime apostou naquelas que eram as principais potências do mundo ocidental na exploração económica do império. Oliveira Salazar concedeu à Compagnie Belge des Pétroles, que intercedia no capital da Petrofina, e no ano 1955 a Gulf Oil teve a concessão do Estado português para dar azo às suas pesquisas em Cabinda.

Mas, não foi apenas o interesse do colonizador quanto a África desde 1945 e as paixões decorridas nas relações luso-britânicas, com Oliveira Salazar no governo até 1975 ou com os trabalhistas na capital inglesa a tentar interceder na descolonização, que vemos destacadas neste período da história (‘oficial’) recente de Angola e do colonialismo português. Incorporando o interesse crescente da Europa, do interesse pelos recursos naturais, Portugal ajudou inquestionavelmente ao crescimento do processo de escravatura, ao tráfico de escravos e, por conseguinte, à resistência africana que se pôs em cena no âmbito de campanhas militares de ocupação neste longo processo histórico. 

A Música Popular em Angola foi uma extensão da sua História, do seu passado pré-colonial e colonial, e dos massacres de 1961 no norte de Angola [15]. Assim como a evolução política e económica ocorrida até à independência não se dissociou nem da História de Portugal, nem da do Brasil colonial, nem da História dos Impérios Ultramarinos ou da corrida europeia pela partilha de África e da nova ordem mundial do pós II Grande Guerra Mundial (1939 - 1945), com a extensão da designada Guerra Fria aos territórios africanos.

A colonização em Angola, que cresceu com o início do povoamento branco por força da Conferência de Berlim, deixou claro que foi colonialismo o que antecedeu esse período, e que o que veio a seguir foi colonialismo e colonização (esta a partir de finais do século XIX com especial enfoque em algumas zonas do território).

A formação de uma corrente patriotista em Angola no século vinte – com os seus movimentos e organizações partidárias, os presos e exilados políticos, vítimas da tortura, do autoritarismo e da censura do colonialismo português –, esteve presente em vários grupos culturais, com particular interesse na música.

O ano 1974 assinalaria um período de escape e de maior fomento a essa liberdade de criação e de composição, que viria a permitir que um conjunto de autores, que passaram a ser relevantes na cultura e na sociedade angolanas, tivessem um maior teor contestatário nas suas práticas.

Às canções que remontavam às sociedades africanas mais tradicionais de Angola que com um pendor satírico, por vezes disfarçado pela componente instrumental baseada no ritmo e às quais se juntou a dança, já visavam a crítica social juntar-se-ia a música de carácter político, ora explícito ora velado. No período de maior emancipação da cultura popular angolana, vários tipos de canções desempenharam um papel de destaque. As que se assumiram na demonstração de aprovação entusiástica ou de louvor a determinados partidos políticos, por exemplo, atingiam o seu auge em 1974 com o advento do grupo Kissanguela.

«Cantos de Resistência», o passado no presente e as redes

Viva, viva, viva, viva

viva o MPLA

Quando a revolução vingar

E a reforma se impuser

Proletário, povo de Angola

Avante, avante

Cultivar café e algodão

De Cabinda ao Kuneme,

Revolver montanhas, florestas

(Kissanguela) [16]

Ao estabelecer a canção como afirmação do seu combate, tendo o texto da canção e os elementos culturais como objecto, face à política do Estado Novo que não reconhecia a existência de uma guerra, estes autores transformar-se-iam de igual modo, para a população angolana, protagonistas da luta na independência do seu país.

Os assuntos expressos nos seus discursos tendo como canal a canção estiveram presentes em vários momentos importantes da História de Angola. Em exemplo, durante a guerra popular revolucionária de longa duração, no governo presidido por Agostinho Neto [17] (ele que também fora um actor cultural de relevo através da sua poesia) que se generalizaria a toda a extensão do território angolano envolvendo aldeias, também mobilizadas para o trabalho clandestino tomadas na última fase da guerra, as suas músicas ecoaram.

Estes quatro intérpretes e compositores expressaram, no recorte temporal aqui apresentado, o modo como as suas práticas chamaram a atenção da censura, mesmo nos momentos em que a metáfora difundida por via de línguas locais, como o quimbundo [18], procurou disfarçar a incisão perante o mapeamento imperialista a que se sentiam sujeitos, ou as suas vozes passaram a despertar desconfianças em discursos não cantados.

Às práticas culturais, aos costumes e memórias angolanas, juntar-se-ia o discurso político que viria, com a passagem de alguns destes actores pela Casa dos Estudantes do Império em Lisboa e pela Universidade de Coimbra, a firmar a presença da cultura angolana junto dos sectores intelectuais em Portugal antes da independência e o seu crescente reconhecimento após a independência na sociedade portuguesa.

As entrevistas realizadas em Luanda para este documentário foram feitas de modo indutivo e assumiram desde logo um carácter explanatório por parte dos interlocutores, nas suas análises acerca das canções e dos movimentos políticos em que se inseriram. A análise do corpo das canções feita com os mesmos, a interpretação do corpus das entrevistas realizadas com os quatro, indicariam o porquê das linhas de orientação político-partidária e ideológica distintas em que estes protagonistas [19] da canção se inscreveram.

O modo como o conteúdo literário da canção neste período se assumiu, independentemente do quadrante político, face ao imperialismo português permitiu ainda constatar que, ainda hoje, os assuntos levantados nas canções são objecto de identificação do povo angolano espalhado pela Europa, mas também de circulação entre várias comunidades e discussão em redes sociais [20].

A Música Popular enquadrada na luta de libertação de Angola teve um papel de afirmação, mobilização e confrontação com o antigo regime.

A música desenvolvida nesta altura, ao utilizar línguas autóctones, o quimbundo, umbundo, quicongo, bem como os papéis assumidos pela  língua oficial e por Liceu Vieira Dias ou N´Gola Ritmos, a evolução técnica e musical a partir das músicas tradicionais foram fundamentais para a afirmação de uma «canção de resistência» em Angola nesta época.

Os intérpretes e músicos com maior expressão em Angola eram militantes do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), isso deveu-se à forte influência de propaganda herdada pela então União Soviética.

Ruy Mingas, militante do MPLA, teve o trabalho largamente produzido, como afirmou na entrevista ‘‘na metrópole’’. Começou por ser difundido a partir da cidade sendo posteriormente veiculado através de rádios clandestinas em Angola. Foi ele também um do compositores e o letrista do Hino nacional da República Popular de Angola [21], emitido pela primeira vez na Rádio Nacional de Angola no dia 11 de Novembro de 1975, ao ser proclamada a independência.

Bandeira Nacional de Angola

Ó Pátria, nunca mais esqueceremos

Os heróis do 4 de Fevereiro

Ó Pátria nós saudamos os teus filhos

Tombados pela nossa Independência.

Honrámos o passado e a nossa História,

Construindo no trabalho um homem novo,

Honrámos o passado e a nossa História,

Construindo no trabalho um homem novo.

Angola, avante!

Revolução, pelo Poder Popular!

Pátria Unida, Liberdade,

Um só Povo, uma só Nação!

Angola, avante!

Revolução, pelo Poder Popular!

Pátria Unida, Liberdade,

Um só Povo, uma só Nação!

O músico e compositor Carlos Lamartine, que sempre expressou a política na sua música em território angolano, a partir do musseque, em bailes e festas populares, nunca tendo saído de território angolano, era clandestinamente afecto ao mesmo movimento em que Ruy Mingas militava.

A recolha de testemunho de Carlos Lamartine foi realizada no edifício da Liga Nacional Africana, criada em 1947 no município das Ingombotas.

Nos anos de 1950 este edifício foi edificado com a ajuda da administração colonial portuguesa, «para que os africanos tivessem um local para a sua concentração e a sua relação entre os diferentes associados».

Carlos Lamartine lembrou que «todos os africanos beneficiavam do apoio desta instituição, desde que fossem residentes em Luanda».

O espaço escolhido por Carlos Lamartine para este encontro foi simbólico. Por essa estrutura passaram muitos estudantes, muitos professores, muitos elementos que se tornaram afectos ao processo de luta de libertação nacional. Foram os casos de Afonso Van-Dunem Ubinda, Brito Sozinho, do professor Matias Miguéis de Lopes Nascimento, de Quim Jorge ou de Armando Correia de Azevedo. Para Lamartine foram «muitos dos camaradas que emprestaram a sua alegria para que a liga se tornasse de facto um grande monumento ligado à educação e à nossa cultura».

Foram vários os cantores, enquadrados na luta pela independência, que lá protagonizaram as primeiras actuações e discursos. Foram o casos de Zé Maria Quiavolanga, com o seu grupo Kissange, Quim Jorge, o célebre Cabacele, Sofia Rosa, Ilda Rosa, entre muitos outros intérpretes.

À semelhança dos intérpretes e compositores portugueses que se inseriam numa linha marxista-leninista-maoísta, como foi o caso de José Mário Branco no período que assinalou a edição discográfica dos fonogramas referenciados mais à frente, muitas das suas influências culturais vinham dos movimentos de esquerda associados à canção em França e Carlos Lamartine, que passou por esta instituição durante a sua infância e início de adolescência, além de escutar músicas brasileiras e americanas, tentava imitar alguns cantores franceses, em especial Charles Aznavour. Para Carlos Lamartine «imitando cantores franceses adquiria uma certa qualidade de canto, mas depois adquiri a vontade de ser um cantor de línguas nacionais e passei a identificar-me com a cultura musical que fazia no sentido da música de intervenção».

Vários problemas com a administração colonial, devido às suas canções, se verificaram. Os casos de perseguição, encarceramento, massacre e assassínio foram uma constante relembrada por estes intérpretes durante a recolha das suas memórias. Carlos Lamartine recordou que foi isso que «fez com que eu adquirisse essa personalidade para a música de intervenção: cantando no sentido de contribuir para sensibilizar, chamar a atenção às pessoas que nós tínhamos problemas muito mais sérios para ver. E então comecei por compor músicas em quimbundo como Zambi Zambi» [22].

Quando Lamartine cantou «Pobre aves do céu, penetrou na prisão, e lhe ofereci, as migalhas de pão. Simplesmente poisou, e comeu nesta mão, que um dia matou, e hoje implora perdão» já exprimia no centro de Kilamba a fase de prisões frequentes e silenciamento a que foram sujeitos. A circulação de saberes e práticas, mesmo sob a censura militar, já estava presente em Angola desde a expansão marítima, desaguando numa manifestação da globalização em território africano até à data em que é proclamada independência. Lamartine tentava passar a sua letra colando-se à forma de cantar de outros que escutava como o caso de Francisco Virgílio, um cantor brasileiro com projecção na altura. Mas, depressa percebeu que a utilização de culturas locais e elementos da tradição angolana nas suas canções poderiam ser afirmados como uma eficaz forma de combate ao imperialismo português.

A importância e a preocupação de vários escritores, poetas, intérpretes e compositores angolanos em recuperar a tradição oral do passado foi em si a tentativa de incrementar uma visão nacional da cultura como método de contorno à imposição e à censura. Recuperar o património cultural africano, numa altura em que este esteve condicionado pelas autoridades coloniais ao esquecimento, foi um dos modos encontrados. «Em Luanda não há sembas, só há choros e lágrimas» cantou.

No centro de Kilamba, cidade situada na província de Luanda, aconteceram algumas das mais significativas transformações. Todo o centro foi reconstituído para que ganhasse uma nova dimensão social e cultural, a atribuição do nome do primeiro presidente, Agostinho Neto, para estes actores figura máxima da independência nacional, complementava-se com a ideia daquele que foi o local onde existiu o centro folclórico de Maria Escrequenha: Uma dançarina e organizadora da rebita, que por sua vez seria uma das responsáveis a que esta dança não se perdesse no tempo e no espaço durante o período da administração colonial.

No ano 1958 o Centro Maria Escrequenha constituiu-se como um centro recreativo, onde muitos destes «cantores de resistência» deram vários espectáculos e proferiram discursos de sensibilização contra a Guerra Colonial e a favor da Independência em Angola.

Foi uma altura de grande emancipação da cultura popular angolana e de abertura de espaços que apoiavam esses encontros e sessões. O Os Onze Perdidos Futebol Club foi mais um desses baluartes. Era um clube desportivo que além de uma secção recreativa, que tratava da cultura para a comunidade do Bairro Popular, se juntava às discussões políticas e ideológicas de muitos destes jovens músicos e activistas que por lá passaram e deram a sua contribuição ao provir de uma música popular comprometida politicamente com raízes em Angola. Conjuntos como Kiezos, Negoleiros do Ritmo, Musangola, Dibangola, Africa Show, Jovens do Prenda, Urbano de Castro, David Zé, Artur Nunes, Santocas, ou Kalabeto lá se apresentaram e motivaram o pensamento sobre a cultura popular como forma de legitimação e combate simultâneos. Este clube deixaria cair a sua primeira designação para O Centro Cultural e Recreativo Os perdidos.

As bombas caíram

e tinjiram o chão de vermelho

As bombas cairam

e tinjiram o chão de vermelho

Atiraram os homens em valas comuns.

Mas Kassinga vermelha

(Kassinga Não Morreu) [23]

Teta Lando, que morreu um ano depois da recolha do seu testemunho para este documentário, exilou-se cedo em Paris, onde produziu e editou grande parte do seu trabalho. Exprimia-se em kikongo, dialecto da sua região de origem, onde a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) tinha maior visibilidade no combate anti-colonialista. A sua militância na FNLA criaria cisões entre o grupo de intérpretes cuja linha de luta pela independência estava mais próxima do MPLA, mas o seu exílio em Paris e o contacto com outros músicos a partir de França permitia-lhe, de igual modo, ter uma participação na elevação dos elementos culturais locais do seu país e de os usar em proveito da sua luta pela independência.

Apesar de tudo, Teta Lando tornou-se a figura de representação institucional de muitos destes intérpretes e compositores ao ser eleito Presidente da União Nacional de Artistas e Compositores (UNAC), e as saudades de Angola foram expressas em vários momentos no seu repertório, sendo a mais ilustrativa a canção «Eu Vou Voltar» por si celebrizada.

Bonga, autor, intérprete e compositor, passou pela Casa dos Estudantes do Império, como estudante universitário e atleta. O facto de ser um atleta de alta competição levou-o à Holanda e foi aí que começou a fazer música. As suas músicas foram, tal como os outros, introduzindo uma mensagem política.

Este autor deixou a Holanda logo depois do 25 de Abril de 1974 e nunca regressou a Angola. Muitos dos militantes do MPLA, consideravam-no ligado ao seu opositor UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola).

Apesar de as crispações políticas que o levaram ao afastamento do seu país, Bonga foi o expoente máximo da difusão entre a cultura de massas que levou a uma aproximação da Europa, nomeadamente de Portugal, às práticas musicais e culturais angolanas.

Muitos dos aspectos territoriais, organizativos e de infra-estruturas angolanos foram reflectidos no seu trabalho. Bonga contou na gravação para o Dipanda’75 que «os musseques de Angola, tirando o lado pejorativo de quem vinha para condenar porque se vivia em casas de madeira ou em casas de pau a pique, teve aspectos positivos que suplantaram essa visão. Em exemplo, eles permitiram a criação de famílias respeitáveis com a sua organização e no interior dessas mesmas casas, aspectos como a educação, os princípios, a ética e principalmente o Velho que era chamado o tronco da família. Nós dávamos muitas lições aos europeus, a partir desta vivência do outro tempo».

Nas canções de Bonga que remontam ao início do seu percurso o musseque assume essa configuração de poder face aos valores da sociedade angolana, onde a água do Murinde ou da Sanga foram também pontos de encontro e socialização de quem ali passava para se refrescar, ao mesmo tempo que para enaltecer valores como os de entreajuda e de organização interna.

A auto-organização no período de colonização e a emancipação de valores intrínsecos à cultura angolana foram amplamente defendidos na trajectória de Bonga: «não precisávamos da ideologia de outro país. Era uma vivência, onde por exemplo, os produtos vindos daquilo a que se chamava o mato, eu diria do interior, das províncias, do Bengo: a taquiquanga, ou os cacusos, a mandioca, a carne seca, a carne de caça, os peixes do rio eram trazidos por pessoas que tinham familiares nesses sítios e os dividiam com aquela gente. Portanto havia uma solidariedade. E depois havia a educação do cubículo e a educação da rua», lembrou.

Dos quatro músicos entrevistados, Bonga foi o que melhor personificou a articulação da cultura tradicional e sociedade angolanas com a sociedade. Além da música, aproveitou o seu estatuto de atleta recordista para veicular mensagens entre conterrâneos ou compatriotas que lutavam pela independência em Angola. Foram aliás os problemas com a PIDE em Portugal que o levaram à ida para Holanda.

O seu primeiro registo fonográfico foi feito aí, Angola 72. Neste disco, ouve-se o ‘‘amor à pátria’’ e as palavras de luta fizeram ressonância na sociedade europeia mais crítica ao colonialismo português e despertaram a atenção dos que não a reconheciam como uma «música civilizada» ou «actuante», remetendo-a sempre para o campo da sexualidade e do analfabetismo.

A sua consciência do imperativo da libertação, ‘‘do povo e da pátria’’, tornou-o o rosto de uma angolanidade no mundo. As suas convicções a favor das ex-colónias portuguesas e contra o colonialismo expressas no seu disco Angola 72 levaram à proibição da sua entrada quer em Portugal como em Angola.

Após o 25 de Abril de 1974 Bonga lançou Angola 74, este disco assinalou as sucessivas conquistas de independência das então colónias.

«Quem é que não viveu no musseque?», perguntou durante esta recolha de entrevista o célebre músico. De facto, praticamente todos os angolanos desta geração por lá passaram e talvez por isso muita da documentação oficial recolhida tanto na TPA (Televisão Popular de Angola) como na RNA (Rádio Nacional de Angola) em 2007 reflicta isso mesmo, especialmente no teor de contestação expresso nos títulos dos fonogramas que lá encontrámos e na imagem impressa nos mesmos [24] .

Longa fila de carregadores domina a estrada com os passos rápidos/ Sobre o dorso levam pesadas cargas/ Vão olhares longínquos corações medrosos braços fortes/ sorrisos profundos como águas profundas [...] escreveu Agostinho Neto em A Vitória é Certa [25], disco que se encontra no espólio da RNA..

Quer a falta de um conhecimento profundo,por parte dos colonos das línguas tradicionais faladas em Angola como do sentido não literal que algumas expressões encerravam permitiu que estas canções, a jeito de reivindicação, passassem. Um dos exemplos disto mesmo é a expressão «Feiticeiros», para se referir aos colonos, de Teta Lando.

As mensagens enviadas, tendo como veículo as músicas, não só não eram de apreensão fácil para os colonos pela questão linguística, como pelo facto de nas suas composições musicais permanecerem elementos rítmicos e uma estética musical que remetia para um ambiente festivo que incentivava à dança, que os desvalorizava no plano das «canções comprometidas». Com a introdução de instrumentos locais como o dikanza e as misturas com outros como o piano e violão, depreciavam-se as representações que essas músicas continham, algumas vezes, e deixavam-nas passar longe da censura.

O tema “Muxima” foi, ainda hoje é, conotado pelo povo angolano como uma espécie de hino, cantado em quimbundo. Teta Lando explicou que na sua opinião «é como se ele, mesmo sem se entender na íntegra, ''falasse ao coração''».


«Sons da Revolução» entre Portugal e Angola


Dos anos sessenta até ao 11 de Novembro de 1975, estes intérpretes e compositores mantiveram um contacto com a militância política quer em Angola como em Portugal. Através da comunidade artística envolvida na denúncia da Guerra Colonial e resistente ao processo de ditadura e censura, mantinham estreitos laços sobretudo com as cidades de Coimbra, através da sua universidade, e Lisboa.

Houve uma aproximação dos pontos de vista intelectual, cultural e político ao trabalho discográfico realizado por músicos que faziam das canções bandeira de insurgimento face às políticas exercidas sob as populações nativas das então colónias na «semi-clandestinidade» em Portugal, como José Afonso (fonogramas Cantares de Andarilho de 1968 e Cantigas do Maio de 1971), José Jorge Letria (fonograma Até ao Pescoço de 1971), Adriano Correia de Oliveira (fonograma O Canto e as Armas de 1969) ou Manuel Freire (Pedra Filosofal de 1970), seja com os que comummente apelidados de «desertores» ou «refractários» o faziam no exílio em Paris, como os casos de José Mário Branco (fonograma Margem de Certa Maneira de 1972), Tino Flores ou o angolano, que sairia do Huambo com 17 anos para estudar na Casa dos Estudantes do Império e daí para Paris, Luís Cilia (fonogramas Portugal Angola de 1964 ou Portugal Resiste de 1965). De facto, este grupo de músicos e autores angolanos revia algum do «corpo das suas canções» na leitura feita por este grupo de músicos e activistas portugueses, que imprimia quer nas letras e composições das suas canções como no âmbito das suas performances o mesmo teor de participação: a discussão relativa à censura e guerra colonial.

A dimensão do imperialismo europeu e as causas do colonialismo português em África entre 1922 e 1975, são apresentadas na bibliografia consultada como resultado de motivos de natureza económica ou financeira numa fase inicial, a dimensão do imperialismo na Europa foi também um modo de reflectir acerca da dimensão política que o enformou. Schumpeter expressava a relevância dos acontecimentos passados na explicação do imperialismo do século XIX, numa óptica diferente da que surgiu na historiografia oficial portuguesa. Para Schumpeter [26] o imperialismo tinha um valor quase exclusivamente negativo. Segundo ele, o imperialismo «provém das relações de produção do passado, e não do presente, e procura a expansão pela expansão, sendo desprovido de objecto e atávico na sua natureza».

De certa forma conseguiu-se identificar o pensamento de Shumpeter na recolha de memórias sobre este período com alguns destes protagonistas da canção. Ruy Mingas, deixaria antever uma linha de reflexão sobre este contexto histórico, no qual «a canção, recorrendo à ironia, assume uma transmissão de condutas e valores através da qual os reprodutores deste regime comunicariam aos seus descendentes/sucessores qualidades ou defeitos que lhes eram particulares».

A representação do localismo em palcos maiores, através das práticas discursivas e musicais de Ruy Mingas, Bonga, Teta Lando e Carlos Lamartine até ao 11 de Novembro de 1975 posicionou não só os elementos culturais do território angolano como as diferentes visões políticas, que descreveram distintas linhas de orientação dos movimentos de libertação, na História cultural e social de Angola inscrita na designada Guerra do Ultramar (designação oficial atribuída pelo regime do Estado Novo), Guerra Colonial (designação atribuída pelos partidos da oposição durante o Estado Novo) ou Guerra de Libertação (designação atribuída pelos movimentos independentistas africanos)[27].

As linhas de orientação político-partidária e ideológica diferentes em que se inseriram [28], a tentativa de explanar o modo como o conteúdo literário da canção neste período se assumiu, de acordo com o quadrante político, como mais uma arma de combate ao imperialismo português permitiu também verificar, através de fontes coevas, em blogues relacionados com música em Angola, que as canções realizadas neste período ainda hoje são objecto de circulação e discussão.

A introdução dos elementos das suas culturas locais, foi a mesma ligação que procuraram realizar alguns dos protagonistas da canção em Portugal (em analogia: como as percussões em discos de José Afonso, nomeadamente os tambores e os adufes) que se insurgiram no quadro de guerra colonial, quer através da literatura do seu país como das culturas locais: com as línguas e/ou expressões angolanas ou instrumentos musicais que as acompanhavam como o dikanza [29].

Ruy Mingas contou neste encontro que «houve uma música de intervenção que era necessária, que se impunha mesmo na época da colonização e do fascismo. Portanto, que ninguém poderia estar indiferente a uma acção que pudesse provocar impactos junto de uma população desejosa de ser alertada para as injustiças, para todo um conjunto de factores que marcavam negativamente o comportamento da nossa população. E este é o período que marca até 1975. Depois de 75 a 'música de intervenção' é já uma música marcada por várias definições e várias opções. É mais ou menos como aquilo que nós dizíamos, eu dizia em Portugal. Porque eu conheci muita gente que estava contra o fascismo, mas quando chegou a altura de opção de classes, uns apareceram no socialismo, outros na social democracia. Portanto, os momentos marcam comportamentos. Eu fiz 'música de intervenção' tocando e cantando os poetas proibidos do nosso país. Daí para a frente já não tenho mais nada a dizer».

A observação de Ruy Mingas sobre um enquadramento dessas canções numa historicidade particular contrastou, todavia, com a de Carlos Lamartine para quem «estas canções ainda hoje interessam ao povo angolano e há um crescente interesse na história contemporânea do país por parte de angolanos e não angolanos mais jovens a partir das mesmas».

No contexto de guerra este foi um período em que democratas da esquerda portuguesa se mostravam solidários com a independência de Angola e nela participaram. Ruy Mingas contou que «Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira eram bons companheiros. Eles vieram cá comigo integrados numa acção do Movimento das Forças Armadas e nós cantámos por essa Angola inteira. E aí eu cantei o 'Monangambé', e tudo o resto, em Cabinda, no Huige, no Moxico, no Huambo, ali onde havia grande concentração de tropas e onde era mais significativo cantar para as pessoas».

As redes na expansão do império vs as redes na partilha da historiografia existente sobre o império

Palpo o pó da terra

e em meus dedos

só sinto

o receio de pisar

terrenos proibidos

Agostinho Neto (1975 - 1979) [30].

As práticas culturais foram elas de igual modo resultado da denominada expansão portuguesa. Não podemos esquecer que a expansão portuguesa gerou trocas comerciais e negócios, mas também incentivou, do outro lado, a circulação de novas ideias, culturas, práticas e saberes, ela foi, e é, indissociável da própria História de Portugal. Se pensarmos que Portugal se encontra localizado na periferia da Europa, verificamos, como reflectem os historiadores Pedro Aires Oliveira, João Paulo Rodrigues Oliveira e José Damião[31] numa obra recente fundamental na compreensão do processo expansionista português no império que «ele encontrou no mar um espaço favorável para traçar a sua configuração definitiva e para se projectar pelo mundo, procurando no exterior o que lhe faltava no território peninsular», do mesmo modo poderemos entender que esse mar que foi um ‘terreno fértil por desbravar’, é hoje um dos assuntos que fomenta a crescente troca comercial, encontrando novas trocas e determinando-se nessa partilha. Aquilo que a investigadora Agata Bloch chamou de social networking é o reajustamento desse conceito de «rede social» que continua a favorecer essas trocas, fomentando hoje a amplificação do conhecimento a respeito do imperialismo e colonialismo europeu e das práticas culturais existentes nesse longo processo expansionista. Por via desta ideia, ou representação de troca, na qual existe uma consciência política de criação e organização de relações fortes e duráveis no Império português do século XVIII. Desde as negociações comerciais estabelecidas durante a Guerra Colonial até ao aparecimento do «social networking» [32] defendido pela historiadora polaca Agata Bloch, que a mercantilidade no âmbito social e económico tem sido estudada, debatida e partilhada entre historiadores das mais diversas linhas de orientação.

Nos primeiros, de seis, séculos da expansão [33], Portugal estendeu o horizonte dos europeus e procurou a globalização. Todavia, ao longo dos séculos, o império sofreu alterações, a perspectiva do imperialismo marítimo que dominara num primeiro momento passou, no império português, a tornar-se especificamente territorial. No último terço do século vinte, o fim da soberania portuguesa em África decorreu em circunstâncias dramáticas, num processo de descolonização que deixou marcas profundas na política e sociedade portuguesas e que inevitavelmente se reflectiu no domínio cultural e musical.

Ruy Mingas lembrou que depois do 25 de Abril de 1974 a esperança na melhoria das condições de vida dos angolanos se encontrava de modo regular quer nos discursos associativos para as massas, como na literatura e nos intérpretes associados ao «canto livre» e aos grupos de acção cultural. O músico lembrou que «no 25 de Abril, eu não me esqueço de ter estado com Zeca Afonso. E disse-lhe: “Agora vou gravar tudo o que andava escondido, que tu me dizias que eu devia cantar nos nossos festivais. Então pus-me a gravar o primeiro tema que eu gravei que incluía o 'Monangambé' e os outros temas do Agostinho Neto».

A canção foi das práticas artísticas que mais conseguiu incutir a esperança numa melhoria das condições sociais do povo angolano após o longo processo de colonialismo e colonização, bem como a luta pelo seu direito à educação.

A palavra escrita chegava, naquela época, a uma parcela ínfima da população de Angola, o índice de analfabetismo foi muito gritante nas colónias. De acordo com o Anuário Estatístico de Angola de 1958, o número de analfabetos (entre negros e mestiços) representava quase 97% da população total do país.

Ruy Mingas, após o 25 de Abril de 1974, também por força do seu crescente contacto com os músicos portugueses que partilhavam das mesmas lutas procurou introduzir alguns poetas angolanos nas suas canções, fomentando uma prática frequente em vários poetas da «Geração 50» que procuravam, deste modo, que os seus textos chegassem, suportados por música que congregava instrumentos tradicionais, directamente à população não alfabetizada.

Conclusão

A palavra na canção em Angola entre 1961 e 1975 foi incorporando significâncias distintas entre este grupo de músicos.

O sentido que retiraram de algumas das mensagens de agrupamentos referenciais no seu crescimento, como David Zé, Santos Junior, Sofia Rosa ou N'Gola Ritmos, entre outros, permitiu-lhes que quando chegassem a Lisboa no final dos anos cinquenta (como o caso de Ruy Mingas), ou ao exílio em França ou Holanda (como os casos de Teta Lando ou Bonga) sentissem ainda mais a influência dos mais velhos que na altura existiam. Um exemplo disso foi a chegada de alguns deles à Casa dos Estudantes do Império que exercia uma pressão com os recém-chegados no sentido de se integrarem naquilo que eram já as manifestações de natureza politica e ideológica nessa instituição.

Quer o cruzamento de canções eminentemente tradicionais de Angola com outras de teor crítico e a ligação dos elementos locais: como os vários dialectos, as roupas (no caso de Bonga), os instrumentos musicais locais e a dança, como a ligação das características culturais, visuais e sonoras que enformavam o tecido urbano de Angola nos anos 60 e 70: onde o cariz dialogante entre a história de Angola desde a expansão marítima, passando pelo colonialismo, a colonização até chegar à independência se manifestou, à história de Portugal permitiu entender o uso da palavra na canção em Angola entre 1961 e 1975 não só como uma forma de resistência e combate no período ditatorial como de consolidação da cultura popular angolana no resto do mundo.

O assunto do papel da cultura angolana e das suas políticas no mundo, sobretudo no continente europeu, está longe de se esgotar, sendo um dos principais assuntos de discussão em redes e fóruns científicos, sociais e culturais.

 

Recolha de memórias em Luanda no ano 2007

  • Entrevista a Carlos Lamartine

  • Entrevista a Ruy Mingas

  • Entrevista a Teta Lando

  • Entrevista a Bonga

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com Carlos Lamartine
recolha efectuada em Kiamba, Sambizanga
Fotografias: Alexandre Nobre

 

com Ruy Mingas
Local: Universidade dos Lusíadas
Cidade de Luanda
Fotografias: Alexandre Nobre
Ano: 2007

(Músico e Compositor), UNAC (Mutamba)
Com Teta Lando (M’Banza Kongo: 2/6/1948, Paris: 14/7/2008)
Recolha realizada na Sede da União Nacional dos Artistas e Compositores (UNAC)
Fotografia: Alexandre Nobre
Ano: 2008

com Bonga

recolha realizada no Cacém em sua casa

Fotografia: Alexandre Nobre

Ano: 2008

 

* fragmentos de investigação para argumento Dipanda’75

[1] OLIVEIRA, Pedro Aires de, Os despojos da Aliança. A Grã-Bretanha e a questão colonial portuguesa 1946-1975, Tinta da China, Lisboa, 2007.

[2] ALVES, Amanda Palomo. Angola: musicalidade, política e anticolonialismo (1950-1980). Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 5, n.10, jul./dez. 2013. p. 373 – 396.

[3] Registo fotográfico e digitalização de imagens de arquivo, entrevistas e de arquivos estatais fonográficos da Rádio Nacional de Angola (RNA) e Televisão Popular de Angola (TPA), Luanda, 2007.

[4] NOBRE Alexandre; Autoria, Fotografia, Realização, SIMÕES Soraia; argumento do filme que abrange o período que antecede a data da independência de Angola. Foca a música popular de carácter intervencionista. Num período que vai da década de quarenta até à independência de Angola. No ano de 2007, na cidade de Luanda, recolheram-se dezenas de depoimentos (de músicos e compositores a historiadores e diplomatas angolanos que marcaram de modo explícito este período), registos de imagens de arquivo, de arquivos pessoais e estatais fonográficos (Rádio Nacional de Angola), dos lugares que marcaram esta história (Muxima, musseques, entre outros).

[5] ALVES, Amanda Palomo. Angola: musicalidade, política e anticolonialismo (1950-1980). Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 5, n.10, Jul./Dez. 2013. p. 373 – 396.

[6] FORTUNATO Jomo, 20 Anos de Um Percurso Agridoce, «A música tradicional na consolidação do semba», Associação Cultural e Recreativa Chá de Caxinde, Jacques Arlindo dos Santos, João Armando Neves Caxinde Edições, 2009.

[7] MOORMAN J Marissa, Intonations, A Social History of Music and Nation in Luanda, Angola, from 1945 to Recent Times.

[8] SILVA Mário Rui, “Chants d’Angola pour demain” (Cantos de Angola para Amanhã), 1994, “Luanda 50/60 ANGOLA”, 1997, “Luanda 1940 Angola” de 2002.

[9] Amkoullel l’enfant peul (Mémoires I, 1991) e Oui mon commandant! (Mémoires II, 1994).

[10] Ao longo da História de Angola, sobretudo a partir dos anos 50, a prática do semba foi, além de uma prática cultural insertiva do ponto de vista social, uma prática onde as músicas, suportadas especialmente por «ritmos percussivos» mesmo com a introdução de instrumentos eléctricos como a guitarra, pelo modo como os músicos a tocavam, que apresentou narrativas de situações do quotidiano angolano. Segundo Jomo Fortunato, o semba, para protagonistas como José Maria e Nino Ndongo, «veio a ser absorvido por importantes guitarristas posteriores como José Keno, do grupo Jovens do Prenda, influenciado pela generalidade da música do grupo Ngola Ritmos».

[11] BLACKING John, Music, Culture, and Experience: Selected Papers of John Blacking, pp. 40 pp.57, University of Chicago Press, 1995.

[12] OLIVEIRA, Pedro Aires de, Os despojos da Aliança. A Grã-Bretanha e a questão colonial portuguesa 1946-1975, Tinta da China, Lisboa, 2007. (pp. 178-184).

[13] Envio de grupos especializados/técnicos, aproveitamento hidroagrícola dos rios, investigações sobre águas subterrâneas, entre outros.

[15] VICENTE Filipa Lowndes coord., O Império da Visão/Fotografia no Contexto Colonial Português (1860-1960), Instituto de Ciências Sociais.

[16] Kissanguela, agrupamento musical de grande força e expressão política, composto por militares das FAPLA, que após o 25 de Abril de 1974 acompanhava Agostinho Neto nos seus comícios e intervenções políticas em Angola e também durante as suas deslocações ao estrangeiro.

[17] no movimento. Na sua grande maioria os intérpretes tiveram maior expressão por parte do MPLA, devido à forte influência de propaganda herdada pela então União Soviética.

[18] Quimbundo, kikongo, umbundo (dialectos angolanos).

[19] Estes músicos inserem-se em quatro movimentos de libertação com expressão nacional anticolonialista e um movimento com expressão regional.

[20] BLOCH Agata, A criação de “social networking” no Império Português no século XVII, XXVIII Simpósio Nacional de História, Florianópolis.

[21] Angola Avante! é o hino nacional de Angola. Foi adaptado em 1975 depois de Angola se tornar independente de Portugal. Tem letra de Manuel Rui Monteiro e música de Rui (Ruy) Vieira Dias Mingas.

[22] Zambi Zambi, significa «Deus Deus», esta canção fez parte do fonograma editado em 1975 com o mesmo nome.

[23] Agrupamento Kissanguela, 1978.

[24] ver anexos (imagens de fonogramas, como o que serviu de ilustração neste artigo).

[25] NETO Agostinho (Catete, Ícolo e Bengo, 17 de Setembro de 1922 — Moscovo, 10 de Setembro de 1979), médico angolano, tirou a sua formação nas Universidades de Coimbra e de Lisboa. No ano de 1975 tornou-se o primeiro presidente de Angola, posição que assumiu até 1979 como presidente do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). No ano 1975-1976 foi distinguido com o «Prémio Lenine da Paz».

[26] VECCHI Benedetto Vecchi, DISCHINGER Benno, “O Imperialismo de Joseph Shumpeter e classes sociais no terceiro mundo”, tradução publicada no jornal Il Manifesto, 25-03-2009.

[27] as três designações  utilizadas para descrever este período, tomando ao longo deste trabalho a de «Guerra Colonial».

[28] Estes músicos inserem-se em dois movimentos de libertação com expressão nacional anticolonialista e um movimento com expressão regional.

[29] instrumento musical que se insere na categoria dos idiofones de raspagem, feito com uma cana de bordão ou bambu, também chamado reco-reco africano ou raspador, e que assumiu uma influência notável na música popular feita em Angola e em práticas sociais e culturais como a rebita.

[30] NETO António Agostinho, A Renúncia Impossível - Poemas Inéditos, editados no sexagésimo aniversário do nascimento de António Agostinho Neto (1922 – 1982).

[31] OLIVEIRA Pedro Aires, OLIVEIRA, João Paulo, RODRIGUES José Damião, A História da Expansão e do Império Português, Esfera dos Livros, Novembro, 2014.

[32] No âmbito do XXVIII Simpósio Nacional de História Agata Bloch apresentou o trabalho «A criação de ‘’social networking’’ no Império Português no século XVIII.

[33] O Império português abrangeu praticamente seis séculos. Desde a conquista de Ceuta no ano 1415 até ao ano 1999, em que Macau deixou de estar sob a administração portuguesa.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Palestra proferida no I Encontro «Semba Samba», por Amanda Palomo Alves

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Palestra proferida no I Encontro «Semba Samba», por Amanda Palomo Alves

por Amanda Palomo Alves*

Palestra proferida no I Encontro Semba Samba.

Rio de Janeiro

“Angolano segue em frente”: a canção urbana de Angola do século XX e as novas possibilidades de pesquisa e investigação histórica.  

Prezados colegas,

Para dar início à nossa conversa, eu gostaria de dizer que do meu ponto de vista, toda pesquisa revela muito de nossas vontades e inquietudes, então, fiquei me questionando: como poderia começar esta fala? E cheguei à conclusão de que a melhor maneira,  talvez, seria recuperar um pouco a trajetória da pesquisa e minhas principais motivações na escolha do tema.  De imediato, já posso afirmar que durante a minha breve trajetória acadêmica, história e música andaram sempre de mãos dadas. No doutorado, por exemplo, busquei apontar novos caminhos para a investigação da história recente de Angola. A pesquisa intitulada “Angolano segue em frente: um panorama do cenário musical urbano de Angola entre as décadas de 1940 e 1970” teve a cuidadosa orientação do Prof. Marcelo Bittencourt, foi defendida recentemente na Universidade Federal Fluminense e sinalizou um interesse particular, que tomou forma logo após a finalização de meu mestrado, em 2010, na cidade de Maringá. 

Na verdade, o tema da pesquisa começou a ser desenhado já em 2009, quando estive pela primeira vez no Rio de Janeiro a fim de fazer a minha pesquisa de campo e entrevistar o cantor e compositor brasileiro, Tony Tornado. Como nós sabemos, Tony Tornado tem uma história importante no cenário musical e político brasileiro dos anos 1970. Durante a entrevista ele me revelou que um dos países por qual passou, na época do exílio, foi Angola.  Não por acaso, uma de suas composições, “Manifesto” – presente no álbum “Alma Negra”, de 1988 - fala justamente da luta pela independência no país.  Fiquei com essa canção durante muito tempo na minha cabeça, sobretudo, porque eu desconhecia a história de Angola e, como a curiosidade é o que nos move e é, também, um dos motores da história, decidi dedicar a minha pesquisa de doutorado em compreender um pouco da história desse país e escolhi como fio condutor, a canção urbana.  

Apesar de reconhecer a importância e valorizar as fontes disponíveis no Brasil, uma viagem a Angola tornou-se indispensável, até mesmo para um melhor encaminhamento da pesquisa. Assim, durante a minha curta, mas, frutífera, pesquisa de campo, realizada em Luanda entre os meses de outubro e novembro de 2013, pude consultar parte do acervo do Arquivo Histórico Nacional de Luanda; visitei e pesquisei parte do acervo da Rádio “Vial”; realizei entrevistas com músicos, compositores, jornalistas, radialistas e produtores culturais. 

A coleta e a análise do material que tive acesso durante a viagem me permitiu perceber que a música urbana de Angola passou por diferentes fases em sua história, sobretudo no decorrer da segunda metade do século XX. Todos esses apontamentos me levaram a compreender que a canção oferece um conjunto de possibilidades de investigação particularmente rico. E mais: que toda canção está inserida em uma historicidade específica e se evidencia pelo contexto social que a incorpora e a identifica. Neste sentido, eu gostaria de destacar a importância e a preocupação de vários escritores e poetas angolanos em recuperar a tradição oral do passado. Ora, recuperar o patrimônio cultural africano que, como sabemos, estava condicionado pelas autoridades coloniais ao esquecimento, e construir uma visão nacionalista da cultura foram algumas das formas encontradas para driblar a censura e as duras imposições daquele contexto histórico. 

Em 1950, surge o “Movimento dos Novos Intelectuais de Angola” (MNIA). Uma das características fundamentais da poesia do movimento era ser uma poesia social. Nesta perspectiva, destaco textos como “Muimbu ua Sabalu” (“Canção de Sabalu”), de Mário de Andrade. Referencio este poema, em especial, porque foi uma importante iniciativa de utilização integral da língua quimbundo, e nós não podemos esquecer que as línguas nativas de Angola foram marginalizadas e marcadas com o “selo da inferioridade” durante o período colonial. 

De modo geral, o poema retrata o sofrimento de uma mãe que chora pelo desaparecimento do filho, enviado como mão-de-obra forçada para as plantações de São Tomé. Alguns versos da letra da canção nos informam: Nosso filho caçula/Mandaram-no pra São Tomé/Não tinha documentos/Nosso filho chorou/Mamã enlouqueceu/ Mandaram-no pra São Tomé/Nosso filho já partiu/Partiu no porão deles/Mandaram-no pra São Tomé /Cortaram-lhe os cabelos/Não puderam amarrá-lo/ Mandaram-no pra São Tomé/Nosso filho está a pensar/Na sua terra, na sua casa/Mandaram-no trabalhar/Estão a mirá-lo, a mirá-lo/ Mamã, ele há de voltar/Ah! A nossa sorte há de voltar/Mandaram-no pra São Tomé./Nosso filho não voltou/A morte levou-o / Mandaram-no pra São Tomé (Tradução disponível no site casacomum.org).  

O poema foi gravado por Ruy Mingas, no CD “Memórias”, de 2006, e por Bonga, no álbum “Angola 72”. 

O empenho dos envolvidos com o movimento se torna ainda mais expressivo se pensarmos que a palavra escrita chegava, naquela época, a uma parcela ínfima da população de Angola, ademais, o índice de analfabetismo na colônia era muito elevado. Para vocês terem uma ideia, de acordo com o Anuário Estatístico de Angola – documento de 1958, o número de analfabetos (entre negros e mestiços) representava quase 97% da população total do país. Assim, musicar poemas ou, ainda, dar ao texto literário, harmonia, melodia e ritmo foi o caminho encontrado por alguns dos poetas da chamada “geração de 50” para que seus textos pudessem atingir de maneira direta a população, sobretudo, a população não alfabetizada. Um exemplo deste esforço pode ser percebido no poema “Castigo pro comboio malandro”, de Antônio Jacinto, porque existe uma tentativa do autor em assumir os recursos que valorizam a sonoridade, seja pelo uso da mistura das línguas portuguesa e quimbundo, seja pela repetição de palavras ou pelo uso intencional de onomatopeias. Todos esses elementos, somados, contribuem para dar “harmonia e ritmo” ao poema, auxiliando na percepção do leitor-ouvinte que passa a compreender de outra maneira aquela poesia. Importante lembrar que “Castigo pro comboio malandro” foi gravado por Fausto Bordalo Dias no álbum “A preto e branco” (1980’s). 

Sabemos que os múltiplos saberes nas sociedades africanas são apreendidos por meio da palavra, da oralidade. Aliás, como explica o estudioso africano Amadou Hampâté-Ba as sociedades africanas são “sociedades da palavra” e o papel socialmente integrador da  música permaneceu como um aspecto característico da vida cultural em África. O aprendizado musical encontra-se, neste sentido, inscrito na memória e é transmitido oralmente, de geração em geração. E é neste contexto que eu insiro o surgimento e a atuação do emblemático grupo angolano “N’gola Ritmos” no fim dos anos 1940. 

Jorge António, diretor do documentário “O lendário tio Liceu e os Ngola Ritmos” explica que o grupo surge, não apenas, num contexto político muito particular, mas ele aponta que seus integrantes fizeram, sobretudo, um trabalho de “antropologia musical”, ao recuperarem as canções populares e tradicionais de Angola e dando-lhes um novo arranjo. Nesta perspectiva, a atuação de Liceu Vieira Dias foi altamente expressiva, pois ele assumiu a tarefa de pesquisar e recuperar as tradições musicais de Angola. Posso afirmar que Liceu buscou fazer em Angola o que J. e Alan Lomax buscaram fazer no sul dos EUA e Mário de Andrade aqui no Brasil, por exemplo. 

Paralelamente aos seus trabalhos de investigação musical, Liceu Vieira Dias fundou a orquestra “Ritmo Tropical” e, pouco depois, nos anos 1930, o “Grupo dos Sambas”. 

Todos os anos de pesquisa desenvolvidos em grupos anteriores influenciaram na formação de seu novo conjunto, o “N’gola Ritmos”. 

A minha opção em destacar o grupo e Liceu Vieira Dias se deve ao fato de eu julgar proeminente sua posição de liderança naquele contexto. O grupo elaborava seu  repertório de maneira singular, valorizando canções de origem popular, compostas, na maioria das vezes, na língua quimbundo.  Algo a destacar, também, é que o grupo se apresentava em vários lugares, mas, de modo especial, nos musseques e bairros suburbanos de Luanda (lembro que o termo musseque significa “lugar de areia” e com o tempo passou a designar os bairros pobres com casas feitas, geralmente, de papelão e lata). 

A performance e o modo de cantar do grupo também são bastante peculiares. Em relação ao canto africano, o etnomusicólogo Kazadi Wa Mukuna nos explica que existem alguns cantos que são assumidos apenas pelo solista; outros, são entoados em uníssono pelo grupo e existem, ainda, aquelas formas de cantar divididas entre o solista e o coro, onde o solista entoa a melodia e o grupo a completa. Este é o chamado de canto responsorial (ou execução antifônica), uma forma de cantar característica de vários povos da África e foi uma forma de cantar bastante utilizada pelo grupo “N’gola Ritmos”. 

O “puxador”, cantador ou mestre é designado como o responsável pelo canto inicial e o coro pode ser acompanhado por instrumentos musicais. A canção “N’birin Birin”, interpretada pelo grupo, é um típico exemplo desse modo de cantar. A música foi gravada, também, por Ruy Mingas, sobrinho de Liceu Vieira Dias, no CD Memórias; pelo filho do Liceu, Carlito Vieira Dias no álbum As vozes de um canto e, se não me engano, o músico Waldemar Bastos também a gravou. 

Cumpre frisar, também, a presença da dikanza, um instrumento típico de Angola. Grande parte do repertório do “N’gola Ritmos” inclui a utilização do instrumento, sobretudo, na performance de Fontinhas, com “N’zaji”. Todas essas características do grupo que acabei de mencionar se tornam ainda mais relevantes se nós lembrarmos que em meados dos anos 1940 e 1950, as canções e as línguas tradicionais africanas eram rejeitadas pelo sistema colonial e vistas como sinais de uma cultura não civilizada. 

Com o passar do tempo, como não poderia deixar de ser, o grupo passou a ser visto com “desconfiança” pelas autoridades coloniais, sobretudo, porque alguns de seus membros estavam politicamente envolvidos com o Movimento para a Independência de Angola (MIA) e, também, com o trabalho de panfletagem. O primeiro passo, então, foi o de afastar os componentes do grupo: Fontinhas foi transferido para o Moxico, em 1957; Zé Maria afastado para o Lubango e, logo depois, Amadeu Amorim e Liceu Vieira Dias foram presos pela então polícia política portuguesa, a PIDE. A partir daí, o “N’gola Ritmos” entraria numa outra fase. 

É importante frisar que neste contexto – meados dos anos 1960 - ganha força as ideias do lusotropicalismo e a chamada ação psicossocial. Através da defesa da ideia de uma colonização não racista, os ideólogos do Estado Novo passam a apresentar o período de colonização em África como resultado de uma relação harmoniosa entre portugueses e os povos nativos das colônias. Foi desenvolvida uma agenda de entretenimento e diversão voltada às populações da província. Assim, a canção, a radiodifusão, a gravação de discos e programas de variedades, como “Aquarela Angolana” e o “Dia do trabalhador” (Luís Montez), foram instrumentos utilizados pelos agentes da ação psicossocial. 

Durante os anos 1960 (e início da década seguinte), a programação radiofônica estaria voltada, quase exclusivamente, à transmissão de canções de músicos de Angola, inclusive, a maioria dos músicos que entrevistei em Luanda afirmou que até o advento da independência era natural gravar discos. 

Para construir uma “nova imagem de si”, o estado colonial passa a exaltar a existência de sociedades multirraciais, que estariam surgindo em Angola. Trata-se, claramente, de uma força enquanto propaganda. 

Mas, conforme já mencionei, nos anos 1960 o grupo “N’gola Ritmos” entre numa outra fase. Com as prisões de Liceu Vieira Dias e Amadeu Amorim e a transferência de Fontinhas para o Moxico, permanecem no “N’gola Ritmos” como principais impulsionadores, José Maria (Zé Maria) e Nino Ndongo. Quando o Zé Maria foi afastado para o Lubango, cumprindo ordem da PIDE/DGS, o grupo é reforçado com as participações de Ricardo Vaz Borja (Xodó), José Ferreira (Gegé), José Cordeiro dos Santos (Zé Cordeiro), Belita Palma e Lourdes Van-Dúnem. E é esta nova formação do grupo que viaja para Portugal, em meados dos anos 1960. 

Evidentemente, não podemos negligenciar a repercussão da notoriedade obtida pelo “N’gola Ritmos” durante essa viagem a Portugal que, de certa maneira, implicou uma forma de ascensão social do conjunto. Deu, inclusive, a oportunidade ao grupo de gravar seus dois álbuns. Todavia, o que quero destacar neste momento é o modo como a chegada do grupo à Lisboa foi noticiada por várias revistas portuguesas da época. 

Destaco, a título de exemplo, trechos de uma matéria publicada na revista “Plateia”, em meados dos anos 1960: 

“N’gola Ritmos fará ecoar nos céus metropolitanos toda a magia das batucadas angolanas, a beleza do seu ritmo estridente e exótico; este conjunto lançou a música do folclore até aos meios civilizados. Esse ritmo dos morros e das florestas entrou, assim, no conhecimento das plateias que, fascinadas, ouvem um novo ritmo”. 

Ao analisarmos este pequeno fragmento da matéria enquanto uma construção discursiva historicamente datada, nós podemos depreender que ele está o permeado pelo discurso lusotropicalista. Vale destacar a forte presença da ideia de folclore como algo distante e exótico e, ao mesmo tempo, como, exatamente por isso, ele podia ser agradável aos “meios civilizados”, ainda que saído “dos morros e das florestas”. Ora, como bem argumentou o pesquisador e músico Mário Rui Silva, o sentido da palavra folclore em África sempre esteve relacionado a “algo de aspecto pitoresco e sem significação profunda”, utilizado para classificar certas manifestações, consideradas “menores” pelos europeus. 

Com relação ao repertório do grupo, gostaria de destacar que além da gravação das composições “N’birin Birin” e “N’zaji”, o grupo gravou algumas canções tradicionais portuguesas. O mais importante a destacar, contudo, é que essas canções foram estilizadas pelo grupo, seja pela utilização de instrumentos tradicionais de Angola, como no uso da dikanza, ou pela adaptação do violão, ou, ainda, pelo modo de cantar, caracterizado pelo canto e contracanto, que já mencionei. Ou seja, o sentido primeiro da canção foi deliberadamente subvertido por uma nova performance. Afinal interpretar implica também compor, pois, quando alguém canta e/ou apresenta uma música, atua, inevitavelmente e num determinado sentido, como compositor. Dito de outra maneira, a performance do grupo “N’gola Ritmos” – enunciadora de sentido – subverteu seu significado original ao adaptar aquelas canções com a utilização de instrumentos angolanos, com a readequação dos instrumentos trazidos pelos europeus para a África e com o modo de cantar. 

Não poderia deixar de mencionar, mesmo que brevemente, a importância e a contribuição do “Duo Ouro Negro” para o cenário musical angolano dos anos 1960 e 1970 no sentido da internacionalização da música angolana. Com um repertório e uma linguagem musical bastante híbrida, os músicos gravaram – além de canções angolanas e de outros povos da África - canções de artistas e grupos internacionais, como “Agora vou ser feliz”, uma versão de “I wanna hold your hand” dos Beatles” - gravam “La mamma”, canção famosa na interpretação do músico francês Charles Aznavour e, ainda, diversas canções brasileiras, como “Construção”, de Chico Buarque de Holanda, “Menino de Braçanã”, “Trem das Onze”, de Adoniran Barbosa, e “Upa, neguinho!”, composição de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, famosa na voz de Elis Regina. Mas, infelizmente, e supreendentemente, encontrei pouquíssimo material sobre a dupla. Constatação esta que evidencia, talvez, a necessidade de mais trabalhos e pesquisas sobre a dupla de músicos.  A efervescência cultural que ainda se via nos primeiros anos da década de 1970 - expressa pela intensa gravação de discos, pelo surgimento de grupos musicais e as inúmeras edições de concursos de variedades e festivais da canção - se alterou de modo bastante significativo a partir de 1974. 

Com a chegada do Movimento Popular de Libertação de Angola ao poder a música popular urbana de Angola, sobretudo a de Luanda, se tornou uma importante ferramenta de legitimação política e ideológica do movimento. A canção deste período pode ser considerada um caminho importante para percebermos a divulgação do novo projeto político do MPLA, logo após a independência. Além disto, em um país caracterizado pela alta taxa de analfabetismo, a canção se tornou um forte e eficiente instrumento de divulgação das ideias do então partido. 

Vários músicos e compositores se destacaram neste período, todavia, a atuação do grupo “Kissanguela” foi preponderante. O grupo – formado em 1974 por membros da JMPLA (Juventude do Movimento Popular de Libertação de Angola) - fazia parte da delegação presidencial e acompanhava Agostinho Neto em todas as digressões que ele fizesse às diferentes províncias do país. Neste sentido, o papel do “Kissanguela” seria, também, o de transmitir, através da canção, a fala que os principais representantes do partido proferiam em seus discursos. 

Em Angola eu tive o grande prazer de entrevistar alguns dos integrantes do “Kissanguela”. E dois dados que me chamaram bastante a atenção em suas falas é o de que havia de 20 a 30 pessoas no grupo e que o “Kissanguela” não se tratava, apenas, de um grupo musical, pois envolvia outros segmentos artísticos, como dança, teatro, jograis e poesia. Entre os vários músicos e instrumentistas que compunham o grupo, destaco os nomes de Artur Adriano, Beto, Carlos Lamartine, Calabeto, Cristiano Veloso, El Belo, Fató, Filipe Mukenga, Jorge Varela, Nito, Manuelito, Manuel Faria, Santos Júnior, Vivi e Tonito. 

A partir de uma breve análise dos registros fotográficos, somos capazes de observar aspectos materiais daquele contexto, como a infraestrutura dos comícios, os instrumentos musicais, as roupas utilizadas pelos integrantes do “Kissanguela” e o público participante; somos capazes, também, de visualizamos as bandeiras de Angola, da UNTA, da JMPLA e do MPLA. 

De modo geral, fotografias como essas que apresentei a vocês buscavam atingir interlocutores específicos ao propagarem valores e sinalizarem as marcas de um ideal pretendido pelo MPLA. Além de que, essas imagens poderiam desempenhar uma função de extrema relevância, tendo em vista as altas taxas de analfabetismo e a multiplicidade de línguas existente em Angola.

Ao concluir, também, que o conteúdo temático de uma canção, assim como a sua construção composicional, estão ligados a um contexto e à condições de produção específicos, pude constatar que várias músicas presentes nos cinco álbuns gravados pelo “Kissanguela” revelam o didatismo do MPLA e tornaram-se um importante instrumento de divulgação de seu novo projeto político, no período posterior à independência do país.

A título de exemplo destaco a composição de Santos Júnior “Cada cidadão é e deve sentir-se um soldado”, gravada no álbum “Progresso, Disciplina, Produção e Estudo”, do “Kissanguela”. Ao orientar as ações e os comportamentos que os cidadãos deveriam seguir, as mensagens impressas na letra da canção sinalizam para a necessidade da continuidade da luta, seja ela nas cidades ou nas matas e incentiva a mobilização da população civil a entrar para o exército. 

Com essa canção de Santos Júnior vou finalizando a minha contribuição para este evento. Ao longo do meu percurso surgiram muitas questões que me fizeram constatar que as análises que eu apresentei ainda estão muito longe de se esgotarem. Infelizmente, a insuficiência de material sobre as compositoras e cantoras que se destacaram no cenário musical do período compreendido por mim nesta pesquisa, me limitou a apresentar com maior profundidade suas trajetórias. Outro obstáculo a ser superado foi a falta de tradutores para as canções compostas em língua nacional, especialmente o quimbundo. Porém, as dificuldades que encontrei em minha caminhada foram amenizadas pelas amizades estabelecidas e pelos laços de confiabilidade conquistados em Angola. É preciso destacar o modo gentil como os músicos entrevistados me receberam em suas casas - ou nos lugares onde ocorreram as respectivas entrevistas -, compartilhando comigo suas memórias, seus discos e fotografias de seu acervo pessoal. 

Ao me empenhar em traçar brevemente um panorama do cenário musical urbano de Angola – elegendo grupos e músicos representativos dos anos situados entre 1940 e 1970 - foi possível sinalizar momentos específicos da história recente daquele país. 

Assim, espero ter amenizado (ao menos um pouquinho) a sensação de profundo desconhecimento que ainda temos sobre a história musical angolana. As possibilidades de pesquisa não se esgotam, pelo contrário, são diversas, instigantes e se fazem cada vez mais necessárias.  

Muito obrigada a todos pela atenção e parabéns pelo lindo evento.

 

Amanda Palomo Alves* Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Integrante da Associação Mural Sonoro

(a fotografia de capa usada neste artigo é do fotógrafo angolano Alexandre Nobre, durante pesquisas na Rádio Nacional de Angola no âmbito do seu filme «Dipanda 75» )

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Fazer a Banda Passar, opinião por Raquel Varela

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Fazer a Banda Passar, opinião por Raquel Varela

 

por Raquel Varela [1]

Fazer a Banda passar

 

Existem neste país centenas, não sei se milhares, de Bandas Filarmónicas. 

Esta é uma consideração de teor meramente pessoal e afectivo.

Tenho vários familiares numa das Bandas Filarmónicas deste país, e elas são um  espaço que me encanta. É dos espaços de integração colectiva cultural mais emocionantes a que tenho assistido. As Bandas são espaços em que se aprende música a sério desde muito jovem.  Uma das imagens que reservo com mais nitidez na minha memória é a do espírito de entre-ajuda entre todos, quando vão para fora carregam os instrumentos juntos, é muito interclassista - desde operários manuais a doutorados -, inter-racial, na Banda há de toda a gente. O mais pequeno com oito anos e o mais velho setenta e oito.

Pagamos entre dois euros e cinco euros para se ser sócio por mês. A Banda dá vida aos locais, entendo-o como um espaço de cultura que não anula nem é concorrencial aos conservatórios e à aprendizagem de música profissional, que também é urgente que seja financiada ao abrigo dos impostos que nós pagamos.  Quanto a mim, são espaços de uma grande beleza e de uma grande vida em determinadas regiões e ainda há muitas espalhadas pelo país.

Ao contrário do que as pessoas preconceituosamente possam pensar não existem só para tocar os típicos repertórios das marchas militares ou em contextos religiosos.

Normalmente, salvo pontuais excepções, são dirigidos em situações de voluntariado o que lhes imprime, de igual modo, um espírito de solidariedade no incentivo à prática musical e artística que hoje se tem, dado a actual conjectura, perdido.

[1] para citar esta opinião: Varela, Raquel «Fazer a Banda passar» opinião, plataforma Mural Sonoro https://www.muralsonoro.com/recepcao, 12 de Maio de 2015.

Créditos:

Fotografia da autora: Tiago Gaspar

Fotografia de capa: Soraia Simões

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Saltério

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Saltério

O saltério  é da família dos cordofones. Trazido pelos árabes, é um dos instrumentos de cordas mais importantes durante a idade média trovadoresca, aparecendo inúmeras vezes representado na iconografia e referido em fontes escritas ele vai sendo desenvolvido e evoluindo até ao renascimento acabando por dar origem aos instrumentos de teclas da família do cravo.
Nas práticas musicais no contexto da cultura popular em Portugal  não sobrevive nenhum instrumento desta família, ao contrário de outros países do continente europeu. Em Portugal o apreço, como já referido nesta área do Portal, recai sobretudo sobre as violas típicas de várias regiões do país.
Assemelhando-se a uma harpa, o saltério é um instrumento de cordas geralmente pulsadas ou beliscadas, como esta. A sua origem é longínqua. Remonta pelo menos a 300 a.C., quando era utilizado no domínio religioso para acompanhar os salmos.
No século XII este instrumento é composto por uma caixa de ressonância triangular ou trapezoidal integrando de sete a dez cordas que se beliscam - daí a sua denominação que designava, na Grécia Antiga, todos os instrumentos tocados com os dedos e não com o plectro [1] .
Na caixa de ressonância encontramos de sete a dez cordas fixas através de cavilhas. A caixa de ressonância tem normalmente a  forma de um trapézio, dois ordenamentos de cordas em correspondência dos lados oblíquos, cordas essas que se encontram distantes umas das outras, de modo a poderem ser beliscadas com os dedos, ou então percutidas com plectros ou com uma vara em metal ou madeira, criando ou uma melodia ou um acompanhamento rítmico. 


Este instrumento musical tem algumas variantes e o facto de ter um tamanho pequeno tornou-o funcional e fácil de transportar e hoje ainda é usado, sobretudo no continente europeu, para acompanhar o canto.
Enquanto que o saltério de arco é em geral em forma de triângulo e as cordas encontram-se mais próximas e sobre o mesmo plano, no caso do saltério ibérico, as cordas podiam ser pulsadas com os dedos ou percutidas com martelos.

A difusão deste cordofone pela Península Ibérica é ilustrada por obras portuguesas e espanholas para saltério, tanto na música erudita como na música popular. Em peças religiosas e operísticas, destaca-se a sua utilização feita por compositores como Francisco António de Almeida (Te Deum, Venerandum tuum verum), António Teixeira (As guerras do alecrim e manjerona, 1737: aria Não posso, ó Sevadilha), Antonio Soler (Ciego y Lazarillo, 1762) e Blas de Laserna (Los amantes chasqueados, 1779).

Foto do músico Joaquim António Silva no túmulo de Dona Inês de Castro, mosteiro de Alcobaça


Foto do músico Joaquim António Silva no túmulo de Dona Inês de Castro, mosteiro de Alcobaça

Na noite de 12 de Março, pelas 22h, o músico e investigador espanhol Eduardo Paniagua esteve comigo à conversa na quinta sessão do ciclo "Conversa ao Correr das Músicas" acompanhado por César Carazo.
Oriundo de uma família de grande tradição musical, é irmão de Carlos Paniagua e Luis Paniagua, este último construtor de instrumentos para a própria família, mas também para músicos de repertório similar, como por exemplo Jordi Savall. Carlos Paniagua é o construtor do saltério com que Eduardo tocou alguns dos temas do seu repertório no Museu, e com o qual nos explicou também alguma da sua história como intérprete, bem como do instrumento associado aos contextos em que é tocado.

Conversa ao Correr das Músicas. Eduardo Paniagua, Museu da Música 12 de Março de 2015, fotografia Helena Silva (Associação Mural Sonoro, Direitos Reservados) Salterio construido por Carlos Paniagua em Tanger

Conversa ao Correr das Músicas. Eduardo Paniagua, Museu da Música 12 de Março de 2015, fotografia Helena Silva (Associação Mural Sonoro, Direitos Reservados) Salterio construido por Carlos Paniagua em Tanger

Na noite a seguir à conversa musicada no Museu da Música,  Eduardo Paniagua apresentou-se em Sesimbra [3]  de novo com o saltério. Desta vez no projecto «Al Mutamid, Rei Poeta do Andaluz», um projecto audiovisual que reflecte a contemporaneidade de um território cultural comum a três países: Portugal, Espanha e Marrocos. O projecto traduz-se num concerto, um CD e um filme numa concepção musical, direcção artística e realização de Carlos Gomes, com a direcção musical de Filipe Raposo e propõe celebrar a vida e obra de Al Mutamid [2]. Fazem dele parte músicos de diferentes geografias, três portugueses: Filipe Raposo (direcção musical, piano), Janita Salomé (voz e adufe), Joaquim (Quiné) Teles (percussões várias), dois espanhóis: Cesar Carazo (voz e fídula), Eduardo Paniagua (saltério) e dois marroquinos: El Arabi Serghini (voz e percussões) e Jamal Ben Allal (violino). 

Fontes bibliográficas e outras fontes
[1] peça de tamanho reduzido que servia  para percutir instrumentos de corda, o equivalente à palheta.

[2] Al Mut'amid Ibn Abbâd é considerado um um dos mais talentosos poetas ibero-árabes do séc.XI. Nasceu em Beja no ano de 1040 e foi príncipe regente em Silves, ambas as cidades hoje situadas em território português. Entre 1069 e 1090 foi rei da Taifa de Sevilha, sucedendo a Al Mutamid, seu pai. Após ter sido destronado em 1091 pela dinastia Almorávida, que passou a controlar todo o sul da Península Ibérica, foi exilado em Tânger e acabou por falecer na maior das misérias em Aghmat, 18 km a sul de Marraquexe, Marrocos, em 1095, onde passou os últimos anos da sua vida de preso e desterrado. 


[3] O espectáculo apresentado em Sesimbra, à semelhança do apresentado no ano anterior no São Luiz, mostra um repertório criado por estes músicos, oriundos destes três países, para os poemas de Al Mutamid.


- Paniagua, Eduardo à conversa com Simões, Soraia, «Ciclo Conversa ao Correr das Músicas», Museu da Música, 12 de Março de 2015, Organizado por Associação Mural Sonoro e Associação dos Amigos do Museu da Música.


- Trindade, Orlando, construtor de instrumentos de cariz medieval, ajuda na selecção de fontes de pesquisa.


-Sachs, Curt, The History of Musical Instruments, W. W. Norton & Company Inc, New York, 1940.


-Montagu, Jeremy, TheWorld of Medieval & Renaissance Musical Instruments, David & Charles, London, 1976.


-Munrow, David, Instruments of the Middle Ages and Renaissance, EMI / Oxford University Press, 1976.


-Page, Christopher, Voices & Instruments of the Middle Ages, J. M. Dent & Sons Ltd, London, 1987.


-Bernard, Nelly Van Ree, The Psaltery, Frits Knuf Publishers, 1989.


-Vários autores, Los instrumentos del Portico de la Gloria su reconstrucción y la música de su tiempo, Fundación Pedro Barrié De La Maza, La Coruña, 1993.


-Duffin, Ross W., edição, vários autores, A Performers Guide to Medieval Music, Indiana University Press, 2000.


 

 

 

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Arménio Simões: construtor de flautas de cana. Registo documental por António Freire

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Arménio Simões: construtor de flautas de cana. Registo documental por António Freire

por António Freire [1]

Um dia na vida de um construtor de flautas de cana nas áreas periféricas da cidade de Coimbra


Registo realizado no âmbito da Associação Mural Sonoro por António Freire, membro da Associação Mural Sonoro de 2014 a 2017.


Para citar esta recolha: Freire, António, Simões, Arménio Recolha de entrevista, captação som e imagem, Associação Mural Sonoro, 17 de Janeiro de 2015. Torre de Bera, Almalaguês, distrito de Coimbra.

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 Ivan Lins: um “ator móvel” na MPB dos anos 1970 por Thaís Nicodemo

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Ivan Lins: um “ator móvel” na MPB dos anos 1970 por Thaís Nicodemo

por Thaís Nicodemo*



Resumo: O tema central do presente artigo é a produção do compositor Ivan Lins entre os anos 1970 e o início dos anos 1980. Ao longo desse período sua trajetória passou por significativas transformações, que trazem à tona contradições e conflitos, demarcando a atuação de um artista em busca de seu espaço, mediado pelas relações de mercado. Nos discos de Ivan Lins lançados nesse período, é possível notar uma frequente mudança de estilos musicais e do conteúdo poético das letras, que revelam a maneira como se ajustou à dinâmica da indústria cultural, assim como às transformações nos planos político, ideológico e econômico, durante a década de 1970, no Brasil.

Palavras-chave: MPB; anos 1970; Ivan Lins.

Abstract: The main subject of this paper is the production of songwriter Ivan Lins from the 1970s to the beginning of the 1980s. Throughout this period his career underwent significant changes, which bring about contradictions and conflicts, showing an artist’s search for his own ground, a process mediated by market relations. In his albums from this period, one notes a frequent shift in musical style and in the poetic contents of the lyrics, which reveal the way by which he adapted himself to the dynamics of cultural industry, as well as the political, ideological and economical transformations that took place in Brazil in the 1970s.

Keywords: Brazilian Popular Music (MPB); 1970s; Ivan Lins.

 

Primeira metade dos anos 1970 e a identidade “internacional-popular”

Ivan Lins despontou como compositor no início dos anos 1970, como integrante do Movimento Artístico Universitário – MAU, um grupo de compositores, do qual faziam parte Gonzaguinha, César Costa Filho, Lucinha Lins, Aldir Blanc, Rui Maurity, dentre outros. Com uma produção musical heterogênea, o grupo buscou chamar a atenção do público universitário e da mídia, inserindo-se em festivais da canção, promovidos por redes televisivas (SCOVILLE: 2008, p. 31). Os integrantes do MAU se sobressaíram no V Festival Internacional da Canção (FIC) da rede Globo, em 1970, com a classificação de três canções (17), dentre os quais Ivan Lins se destacou como segundo colocado, com a canção “O Amor é o Meu País”, executada no estilo soul. A boa repercussão dos compositores do MAU no V FIC levou a rede Globo a criar um programa musical, chamado Som Livre Exportação, conduzido pelos integrantes do grupo. É importante ressaltar que, nesse momento, iniciava-se no Brasil o período denominado “milagre brasileiro”.

Ao mesmo tempo que as estratégias do governo conduziram a um significativo desenvolvimento econômico que alavancou o consumo da classe média, o Brasil vivia uma fase de severa repressão, principalmente após o decreto do AI-5, em dezembro de 1968. Com a censura, a perseguição e o exílio de diversos artistas, o panorama cultural passou por uma fase de esvaziamento. Nesse contexto repressivo, que se somava à crescente racionalização do funcionamento da televisão, o ciclo dos festivais da canção, que viveu seu apogeu nos anos 1960, também entrava em declínio. Para Marcos Napolitano, a favorável inserção do MAU nos festivais televisivos e no mercado fonográfico reflete a forma como a indústria cultural buscou suprir o espaço retraído da MPB, direcionando sua produção ao meio universitário (18)  (NAPOLITANO, 2002, p. 6). Esse aspecto pode ser reforçado com a afirmação do compositor Paulinho Tapajós, diretor e produtor do selo Forma, da gravadora Philips, entre 1969 e 1970. Em entrevista (19), Tapajós explica que esse selo foi criado por André Midani, presidente da Philips no Brasil, especificamente para atender ao segmento da música universitária que despontava naquele período através dos festivais universitários da canção.

Ivan Lins foi um dos artistas lançados pelo selo Forma, com a gravação de um compacto simples (20), um compacto duplo (21) e três LPs. Se por um lado Ivan Lins se identificava com o segmento de renovação da MPB, através de sua participação no MAU, por outro, sua música apontava para uma direção distinta. Tratava-se de uma produção não-engajada, que se distanciava do sentimento de “brasilidade” e da tradição “nacional-popular” predominantes na MPB consagrada nos anos 1960. A produção de Lins se distinguia pelo uso de estilos internacionais, como o rock, o pop, o gospel e o soul, e por letras de conteúdo romântico.

Embora o influxo de culturas diversas na música seja um aspecto demasiadamente comum, o que chama atenção aqui é sua contraposição em relação ao predomínio de valores ligados à identidade “nacional-popular” naquele momento, na esfera da música popular brasileira, da qual Ivan Lins passou a fazer parte. Para fundamentar tal discussão, tomamos como base o conceito formulado por Renato Ortiz de identidade “internacional-popular”, antagônico à identidade “nacional-popular”, que fora hegemônica no plano ideológico da canção brasileira, até fins dos anos 1960.  É importante salientar que o mercado consumidor da “MPB” de então era representado principalmente pela juventude de classe média escolarizada (NAPOLITANO: 2002, p. 3). aponta Marcos Napolitano: “(...) podemos vislumbrar no início dos anos 70 o fechamento de um processo cultural iniciado ainda nos anos 20, marcado pela necessidade de buscar a identidade nacional brasileira e para o qual concorreu de forma significante a esfera musical popular” (NAPOLITANO, 2005, p. 75). Com o processo de internacionalização do capital promovido pelo governo militar desde o golpe em 1964, marcado por um amplo investimento na área de comunicações, a indústria cultural no Brasil se consolidou durante os anos 1970, passando a se ajustar aos padrões organizacionais e mercadológicos internacionais (ORTIZ, 2006, p. 205). A partir da reconfiguração do mercado de bens simbólicos, o espaço cultural da MPB “engajada”, norteada pela ideologia “nacional-popular”, teve seus valores redefinidos. Nesse sentido, o advento da Tropicália, a partir de 1967, já assinalava o momento de crise do ideal “nacional-popular” na MPB que, conforme Marcos Napolitano, “se via cada vez mais absorvida pela indústria cultural e isolada do contato direto com as massas, após o golpe em 1964” (NAPOLITANO, 2006, p. 64). A Tropicália apresentou uma ruptura, criticando o posicionamento “nacionalista” da esquerda, incorporando elementos da cultura de massa, com o uso de guitarras elétricas, do rock, do pop e do psicodelismo. Nos anos 1970, valores identitários “mundializados” se tornaram um novo elemento de legitimação na esfera da cultura, conforme assinala Ortiz:  A tradição e as artes não se configuram como padrões mundiais de legitimidade. Mas o que os substitui? Quero argumentar que a modernidademundo traz com ela esses valores. Por serem globais, independentes das histórias peculiares a cada lugar, pela sua amplitude, abarcam o planeta como um todo, e por expressarem um movimento sócio-econômico que atravessa as nações e os povos, os novos padrões de legitimidade superam os anteriores (ORTIZ, 2003, p. 191-2).


É importante ressaltar que nesse novo quadro cultural que se configura, as escolhas identitárias se relacionam diretamente aos interesses e possibilidades que se articulam segundo a lógica do mercado moderno (NETTO, 2009, p. 164-5). Nesse sentido, buscaremos verificar como Ivan Lins se apropriou de diferentes discursos identitários em tempos de mundialização da cultura, ao longo de sua trajetória nos anos 1970, de acordo com os contextos em que atuava. Dentro dessa perspectiva, o programa Som Livre Exportação, da Rede Globo, expunha novos nomes da música popular brasileira e artistas consagrados, buscando explorar diversos segmentos do mercado, funcionando como uma “vitrine” para as gravadoras e ampliando, dessa forma, a faixa de consumo para a indústria fonográfica. A Rede Globo possuía também um acordo com a Philips para a produção das trilhas das telenovelas que eram apresentadas e promovidas no programa (SCOVILLE, 2008, p. 122-9). Na matéria sobre a estreia do Som Livre Exportação, da revista Veja, o programa é exaltado por sua capacidade de aliar características de programas musicais consagrados nos anos 1960, reunindo as tradições das “raízes nacionais”, da época do “Bossaudade”, a “moderna música brasileira”, do “Fino da Bossa”, o som “jovem e descontraído”, da Jovem Guarda, e “a nova tendência de adaptar ao Brasil os sons internacionais, principalmente o soul americano” (TEMPLO..., 1970, p. 76). A ênfase dada à “nova fase” da música brasileira, que adapta “ao Brasil os sons internacionais”, reforça a ideia de que, nesse contexto, elementos mundializados passaram a fazer parte dos critérios de legitimação na esfera da canção popular. Ou seja, a escolha das atrações do programa também se relacionava ao caráter “internacionalizado” que elas apresentavam. Em 1971, Ivan Lins lançou seu primeiro LP, Agora, essencialmente de canções ligadas ao soul. Alcançou grande êxito comercial (22), principalmente após o sucesso de “O Amor é o Meu País” no V FIC, e de “Madalena” (Ivan Lins/ Ronaldo Monteiro de Souza), gravada por Elis Regina, no compacto duplo Elis Regina (Philips, 1970) e depois no disco Ela (CBD/ Philips, 1971). Ivan Lins estreitou seu vínculo com a televisão, à frente do Som Livre Exportação, e passou a produzir canções para telenovelas da Rede Globo, como “A Próxima Atração” (1970-1971) e “Assim na Terra como no Céu” (1970-1971). Na tentativa de explorar comercialmente o MAU através do Som Livre Exportação, a Rede Globo optou por voltar sua atenção para a figura de Ivan Lins, que melhor se equiparava com os padrões de produção da emissora, como observa Eduardo Scoville, em sua tese de doutorado sobre a relação da Rede Globo com a MPB, na primeira metade dos anos 1970: “Ivan Lins, que não produzia música engajada, se tornou o elemento do grupo mais “acessível” ao grande público e produtor de músicas que iriam ser incluídas nas telenovelas” (SOVILLE, 2008, p. 121). A produção de Ivan Lins parecia então não se restringir somente ao público universitário, abrangendo um público consumidor mais amplo. Assim, nesse período a atuação de Lins esteve intimamente atrelada à Rede Globo. Ao longo da exibição do programa, Lins assumiu papel de protagonista, passando a ser o apresentador, ao lado de Elis Regina. Em 1971, deixou o MAU e, após o curto período de intensa exposição na TV Globo, decidiu romper o contrato com a emissora. Pouco tempo depois o programa Som Livre Exportação foi extinto. As escolhas de Ivan Lins durante esse período garantiram seu sucesso mercadológico, porém, sua atuação foi amplamente criticada, pelo conteúdo descompromissado de suas composições e, principalmente, a partir da polêmica gerada em torno da canção “O Amor é o Meu País”.

O crescimento econômico que se deu durante o período, conhecido como “milagre brasileiro”, e a vitória da seleção na Copa do Mundo em 1970 contribuíram para disseminar a ideia de progresso e otimismo, promovida pelo governo Médici. Nesse contexto surgiram slogans ufanistas como “ninguém segura este país”, “Brasil, ame-o ou deixe-o”, e canções que exaltavam o país (NAPOLITANO, 2006, p. 78), como “Eu te amo, meu Brasil” (Dom). A letra de “O Amor é o Meu País” (23), escrita por Ronaldo Monteiro de Souza, é de conteúdo amoroso, no entanto, o uso da palavra “país” deu margens a interpretações que a relacionaram à exaltação de cunho adesista. Vale salientar que, mesmo se articulando em um contexto mercadológico em crescente segmentação, que buscava abranger a diversidade de gosto do público consumidor, no qual conviviam diversos estilos, como a MPB, o rock e o pop, Ivan Lins surgiu com a marca de “compositor universitário”, através de sua participação no MAU. Sendo assim, é possível pensar que havia uma expectativa do público universitário, principal consumidor de MPB “engajada”, em relação a uma postura crítica em sua produção. Sob esse ponto de vista, a cobrança que recaiu sobre a produção do artista adquire maior sentido. É possível verificar esse aspecto em entrevista ao jornal O Pasquim (LINS, 1972), na qual Lins foi severamente criticado por cantar “O Amor É o Meu País” (idem, p. 12), por dar preferência à temática amorosa em suas canções e por seu vínculo com a Rede Globo nos anos anteriores. A partir dessas críticas e da queda de popularidade, que se nota com o acentuado declínio de vendas de seus LPs (24), chamamos a atenção para visíveis mudanças que ocorreram entre cada disco lançado nos primeiros anos da década de 1970. Em seus três primeiros discos: Agora (1971), Deixa o Trem Seguir (1971) e Quem Sou Eu? (1972), prevalecem canções relacionadas aos estilos pop, rock, soul, com harmonias jazzísticas e letras românticas. Enquanto o álbum Agora não apresenta praticamente nenhum elemento musical ligado à “brasilidade”, com exceção de “Madalena” (Ivan Lins/ Ronaldo Monteiro de Souza), que pode ser considerada um samba-funk, no disco Deixa o Trem Seguir há um maior uso de materiais brasileiros, como o ritmo de samba empregado nas canções “Que Pena Que Eu Tenho de Você”, “Me Deixa em Paz”, “Carro Abandonado”, e o ritmo de baião em “Oba” – todas escritas em parceria com Ronaldo M. de Souza. No disco subsequente, Quem Sou Eu?, Lins muda levemente sua maneira de cantar, antes gritada e rouca, adotando interpretações vocais mais brandas.

Os arranjos, de Arthur Verocai, nos discos anteriores, densos, com uma maior massa sonora resultante do uso de instrumentos de metais, madeiras e cordas, passaram a ser bem mais econômicos. Há uma inserção muito maior de elementos “brasileiros” no repertório, que se divide em canções bossa-novistas, sambas e canções pop. É um disco mais intimista, com mais elementos “nacionais” e mesmo que não apresente um conteúdo politizado, sinaliza a nova produção engajada que irá se estabelecer a partir dos discos seguintes, Modo Livre (RCA, 1974) e Chama Acesa (RCA, 1975). 

 


Segunda metade dos anos 1970 e o “nacional-popular”

Como vimos, o sucesso comercial de Lins não correspondia, até certo ponto, à sua legitimação no espaço cultural da MPB. Sua atuação, no início dos anos 1970, pautada em sua relação com a Rede Globo e no súbito sucesso comercial decorrente desse momento, não era “bem vista” pela crítica intelectualizada. Para alcançar o prestígio necessário para se legitimar nesse campo, Ivan Lins teve que redirecionar sua carreira através de escolhas estéticas que se evidenciam tanto nas mudanças musicais, com a incorporação de elementos ligados à “brasilidade”, quanto nas escolhas profissionais, rompendo o contrato com a Rede Globo e com a gravadora Philips. Paulinho Tapajós, produtor dos álbuns mencionados, acrescenta informações relevantes em relação aos resultados comerciais desfavoráveis do disco Quem Sou Eu?, que demarcou musicalmente o início das mudanças estéticas mais significativas das composições de Ivan Lins até então:
No Quem Sou Eu? ele promoveu a mudança, mas ao mesmo tempo foi uma virada que não foi muito bem aceita pelo comercial (...) Eu acho que o pessoal estava acostumado a aquele Ivan gritando e de repente vem um Ivan mansinho, comportado na interpretação. Aí eu acho que a coisa não deu muito certo comercialmente (...). (25) As novas escolhas de Ivan Lins naquele momento não garantiram seu êxito perante o público consumidor, como denota o texto acima, e ainda não foram suficientes para agradar à crítica, que condenava sua postura “alienada”, como é possível notar no trecho a seguir, através da fala do produtor musical Mariozinho Rocha, onde fica visível a tensão latente entre o posicionamento de Ivan Lins e a opinião da crítica, em entrevista ao Pasquim (LINS, 1972, p. 12): “Vocês só fazem letra de amor? (...) têm outras coisas que acontecem, além do amor, em qualquer classe social. Por que vocês focalizam esse lado mais fácil, mais meloso? (...) Você fala de amor, digamos, por uma menina, não por um ser humano”. A consolidação da indústria cultural e de uma produção cada vez mais voltada para o entretenimento levava a esquerda nacionalista a se preocupar com o resguardo do caráter engajado das obras, através da cobrança ideológica em torno das produções, que deviam ser “anti-imperialistas, nacionalistas, exortativas e aliancistas” (Cf. NAPOLITANO, 2006, p. 6). Esse debate se evidencia em relação à música de Ivan Lins e gera um questionamento do próprio artista, no sentido de assumir um posicionamento politizado, como é possível perceber em seu discurso sobre a mudança que promoveu em sua trajetória após reconhecer a falta de engajamento, o desgaste decorrente de sua superexposição midiática e a queda de popularidade:
Aí veio o tombo. Durante todo o tempo, a máquina foi me usando, usando, gastando. E eu deixando (...). Quando abandonei a Globo, ainda tentei fazer outras tevês, mas já estava traumatizado e profissionalmente valendo pouco. Resolvi me afastar para tentar entender por que tudo aquilo tinha acontecido comigo. (...) E, passando a transar áreas mais engajadas, política e musicalmente, ao mesmo tempo em que queimava a pestana devorando livros e mais livros, comecei a entender o processo político brasileiro e até meu papel nisso tudo (LINS: 1981, p. 8-9. Grifos nossos).


Nessa fala, Ivan Lins atribui a responsabilidade de sua postura “alienada” à “máquina”, à Rede Globo, posicionando-se como sujeito passivo, “inconsciente” em relação à sua própria produção. Em seguida, toma posição como sujeito ativo, consciente de suas escolhas, dessa vez comprometidas com questões sociais e políticas. Nota-se, portanto, como o artista se justifica estrategicamente, procurando legitimar suas escolhas. Na nova fase politizada, que se inicia com o lançamento de Modo Livre, em 1974, é possível perceber que para efetivar a nova imagem de artista engajado, Ivan Lins passa a renegar em seu discurso sua produção anterior, questionando a qualidade de suas composições, a falta de “liberdade artística” a que estava submetido e o propósito comercial das canções. O artista enfatiza a retomada de suas “origens” musicais: “bossa nova, samba, música brasileira em geral”, ou seja, chama atenção para a inserção de elementos brasileiros em suas composições, em um (28) discurso de auto-legitimação. 


Eu, quando não era ainda profissional, (...) os caminhos que eu seguia, eram caminhos livres, tudo calcado na bossa nova, samba, entende, música brasileira em geral, jazz. E nesse disco, eu realmente volto às minhas origens (...). Porque houve uma época aí na minha carreira que realmente eu não conseguia compor direito e tinha compromissos com um monte de coisas, então meu processo de composição inclusive era um processo já muito difícil (...). Então eu comecei a compor exatamente aquilo que eu queria, da forma como eu sentia (...). (LINS: 2008, 39’18’’ – 41’42’’). (26) Ainda que não tenha obtido sucesso comercial favorável, para a época (27), houve uma reação positiva da crítica especializada em relação à nova produção de Lins, como é possível notar na matéria jornalística referente à sua participação no Festival Abertura, da Rede Globo, em 1975:    
Não só o fato de pelo menos três músicas defendidas serem de compositores que já gravaram discos em 1974, mas também o sentido de brasilidade presente na maioria das dez concorrentes fizeram com que as esperanças em torno desta oportuna mostra da MPB nesta metade da década crescessem muito em torno de uma nova fase para o nosso cancioneiro (...) (MILLARCH, 1975. Grifos nossos).


Vale salientar também a importância dada no texto acima ao “sentido de brasilidade” nas canções apresentadas no festival. A “brasilidade”, como marca distintiva do imaginário de uma cultura, ganhou forças a partir dos anos 1930, no Brasil, através do debate político e intelectual de construção da nação (RIDENTI, 2010, p. 9). O que Marcelo Ridenti chama de “brasilidade revolucionária” se traduz como uma construção utópica, ligada a “ideias, partidos, movimentos de esquerda – e presente também de modo expressivo em obras e movimentos artísticos” (RIDENTI, 2010, p. 10). Nos anos 1960, ganhou novo sentido, principalmente durante o governo de João Goulart, pela possibilidade de realização de uma revolução social e repercutiu nos meios artístico e intelectual, que compartilhavam sentimentos e ideias ligados a uma revolução brasileira (RIDENTI, 2010, p. 12). O ideário “nacional-popular” que prevaleceu na canção brasileira desde os anos 1960 é imbuído dessa “brasilidade revolucionária”. No momento em que Ivan Lins redirecionou sua produção, com os discos Modo Livre e Chama Acesa, iniciava-se no Brasil, ainda que lentamente, o processo de abertura política, inaugurado pelo governo Geisel, a partir de 1974. A perspectiva da abertura favoreceu a criação e a difusão das canções de “protesto” e contribuiu para conduzir a um amplo crescimento do consumo de canção brasileira, a partir de 1975 (NAPOLITANO, 2002, p. 5). Para Napolitano, a abertura fez transparecer uma significativa demanda que estava antes contida em relação ao consumo da MPB, que se configurou como uma “peça central da indústria fonográfica” (NAPOLITANO, 2002, p. 9). A MPB combinava atributos socioculturais relacionados à posição política crítica, liberdade de expressão, liberdade de criação, a um potencial mercadológico para a indústria cultural (NAPOLITANO, 2002, p. 9). Mesmo que Ivan Lins não tenha alcançado sucesso comercial considerável com os discos mencionados, essa nova fase politizada sinaliza sua legitimação artística no campo da MPB. Seus discos posteriores do final dos anos 1970 irão efetivar as mudanças ligadas a seu prestígio como compositor engajado, ao mesmo tempo em que a venda de seus LPs mostrará resultados muito elevados. Esses fatores sublinham a relação entre o papel contestador da MPB e sua importância comercial no mercado fonográfico. No disco Modo Livre, a maior parte das parcerias das canções ainda é com Ronaldo Monteiro de Souza. Ivan Lins se afasta do estilo soul e incorpora gêneros nacionais, como o samba e a bossa nova, ao lado de estilos regionais, como a ciranda e a marcha. Assim como nos três álbuns anteriores, os arranjos são de Arthur Verocai. Há uma alta densidade sonora decorrente da instrumentação utilizada, com orquestra de cordas, coros vocais, instrumentos de sopro e seção rítmica. O teor politizado que começa a se delinear nesse álbum, principalmente com a canção “Abre Alas”, ganha intensidade e um tom de “denúncia” no álbum Chama Acesa. Já nesse disco, a parceria com o letrista Vitor Martins se solidifica, com o total de cinco canções. Há apenas duas composições escritas com Ronaldo Monteiro de Souza, além de escrever canções de sua autoria. Embora ainda prevaleçam ritmos brasileiros, os arranjos apresentam um caráter mais experimental e híbrido, que se aproxima da linguagem musical ligada à produção de Milton Nascimento e do Clube da Esquina28, nos anos 1970. Esse pode ser considerado um dado especulativo, no entanto o disco Chama Acesa reflete um tipo de sonoridade peculiar, em evidência na época, que também se aproxima de experiências como a do grupo Som Imaginário29. Modo Livre e Chama Acesa 28  O nome proveniente do título de dois LPs de Milton Nascimento - Clube da Esquina, de 1972, e Clube da Esquina 2, de 1978 – foi usado para se referir a um grupo de artistas, integrado por compositores, letristas, arranjadores, instrumentistas, que participou do processo criativo das produções de Milton Nascimento, nos anos 1970. (29)

O grupo, formado por Wagner Tiso, Tavito, Luiz Alves, Robertinho     Silva  , Fredera e Zé     Rodrix  , dentre outros, atuou no início dos anos 1970 e apresentou em seus discos uma sonoridade ligada ao rock psicodélico, (30) podem ser considerados discos de um momento transitório da produção de Ivan Lins. É a partir desses dois álbuns que Lins promove significativas mudanças estéticas, relativas ao conteúdo poético e musical de suas canções, que irão demarcar seu reencontro com o “grande público”. No final dos anos 1970, Lins lançou os discos que sinalizaram seu reconhecimento de público e comercial com a mudança de gravadora, da RCA para a EMI. Os álbuns são: Somos Todos Iguais Nesta Noite (1977), Nos dias de Hoje (1978), A Noite (1979) e Novo Tempo (1980). Ivan Lins passou a fazer parte do elenco de artistas do segmento “sofisticado” da gravadora, dirigido pelo produtor Mariozinho Rocha. Em entrevista, Eduardo Souto Neto, produtor executivo dos três primeiros LPs gravados pela EMI, explica a dinâmica de funcionamento da gravadora no período:
(...) A EMI naquela época, ao invés de ter um diretor como as outras gravadoras tinham um só, eles inovaram, fizeram três diretores, dividiram o cast. Tipo: cast sofisticado, que era do Mariozinho (Rocha), o cast, digamos, médio, que misturava um pouco, que era do Renato Correia e o cast bem popular (...). O do Mariozinho (Rocha) era Milton Nascimento, Beto Guedes, e o do Renato misturava um pouco de pop (...), tinha assim, Marcos Valle, Evinha, Golden Boys.30


O que se percebe é que Ivan Lins, nesse momento, legitimou sua atuação como artista de “prestígio” da MPB. Em um contexto de consolidação da indústria do disco e da atuação de empresas transnacionais, nos anos 1970 essas gravadoras já haviam instituído a segmentação de seus produtos e que nesse sentido a MPB “passou a dividir espaço tanto com segmentos já constituídos, tais como o regional e o sertanejo e outros emergentes” (DIAS, 2008, p. 79). O sucesso comercial proporcionado pela vendagem regular de discos de catálogos formados por nomes de prestígio da MPB nas gravadoras, concedia uma certa “liberdade” de criação a esses artistas e o investimento em produções de alto custo, com álbuns “mais acabados, complexos e sofisticados” (NAPOLITANO, 2002, p. 5). Os discos de Lins lançados pela EMI contaram com uma grande equipe de produção, com orquestra de cordas, coros, instrumentistas, arranjadores, produtores e técnicos de estúdio. Eduardo Souto Neto fala de seu papel como produtor, salientando não interferir na concepção musical, assumindo uma função de “coordenador” em meio a essa “liberdade” artística sobressalente:
progressivo e experimental. Vale destacar que Wagner Tiso e Fredera participaram nos álbuns Modo Livre e Chama Acesa, de Ivan Lins. 30 Eduardo Souto Neto, em entrevista realizada por mim, no dia 28/10/2011. (31) A minha coisa sempre foi mais do estúdio, da parte estritamente musical mesmo e de certa forma técnica, mixagem e tal. E eles (Ivan Lins e Vitor Martins) na parte de criação. Porque são dois parceiros que conceberam a coisa toda, o repertório (...) uma obra pronta, com a concepção dele musical, já com o Gilson (Peranzzetta) acoplado e minha coisa era supervisioná-los e ajudá-los.31


A partir de Somos Todos Iguais Nesta Noite, a parceria com Vitor Martins se firmou, prevalecendo até meados dos anos 1990. Gilson Peranzzetta, que já participava como arranjador desde Chama Acesa, assumiu esse papel, elaborando arranjos de base, de sopros e de cordas. Segundo Peranzzetta, havia um processo de criação integrado, no qual Lins mostrava suas composições, muitas vezes ainda sem letra, ele começava a conceber os arranjos baseado nessa ideia inicial, depois Vitor Martins escrevia a letra (32). Essa parceria foi se solidificando, chegando ao disco Novo Tempo (1981) com um tratamento de trabalho autoral de grupo: o encarte do disco é ilustrado com fotografias dos três (Lins, Martins e Peranzzetta) caminhando por uma rua e lendo notícias do jornal. O trio consolidou uma sonoridade e poética específicas que perpassam os discos gravados entre 1974 e 1984.   As canções dos discos de Lins lançados pela gravadora EMI representam o papel da MPB no momento de abertura política no Brasil, entre 1975 e 1982, no qual se passou a vislumbrar um tempo de liberdade que ainda não havia se efetivado. Com uma maior tolerância em relação ao conteúdo contestador das canções, a MPB conquistou um espaço de crítica à situação política e de celebração da liberdade, conforme aponta Napolitano: 
É importante notar que, mais do que desempenhar uma função política tradicional da canção de protesto – qual seja, manter a vitalidade da crítica direta, a crença no futuro inexorável e exortar a ação direta contra uma situação de opressão, a canção da abertura, mesmo podendo ser vista como uma variante da canção engajada, realizava-se em outra direção: a sublimação poética da liberdade e do trauma da repressão recente (NAPOLITANO, 2010, p. 396).
Sob essa perspectiva, diversas canções dos discos mencionados, como “Desesperar Jamais”, “Novo Tempo” e “Começar de Novo” apresentam um “balanço” das experiências do passado reprimido e uma incitação à liberdade do presente, como é possível notar principalmente nos últimos versos de “Desesperar Jamais”: “No balanço de perdas e danos/ Já tivemos muitos desenganos/ Já tivemos muito que chorar/ Mas agora, acho que chegou a hora/ De fazer/ 31Idem. 32Cf. Gilson Peranzzetta, em entrevista realizada por mim, no dia 30/10/2011. (32) Valer o dito popular”.

Na matéria sobre o show de estreia de Somos Todos Iguais Nesta Noite, (LIVRE... : 1977, p.125), o sentido de disseminação da canção como porta-voz da crítica ao regime autoritário e da luta pela “liberdade” é enaltecido. Ao mesmo tempo, é importante ressaltar que a liberdade era ainda iminente, devido aos cortes de som e de luz em decorrência do conteúdo contestador do discurso de Lins:
(...) demonstrou naquele show, na prática, o irresistível poder social da celebração estética enraizada no sentimento coletivo; quando carregou as tintas no que tinha a dizer cortaram-lhe a luz, tiraram-lhe repentinamente o som do microfone. No escuro, sem ampliação vocal, conseguiu se fazer entender pela plateia de quase 2000 espectadores. 


Ivan Lins voltou a ampliar seu público e os discos que gravou no final dos anos 1970 tiveram uma vendagem crescente (33) e significativa, aumentando também  seu prestígio na indústria fonográfica. Essa relação reflete o momento de boom vivido pela MPB no mercado do disco, durante o período de abertura política, como já mencionamos anteriormente. Os quatro álbuns de Lins lançados pela EMI apresentam um conteúdo poético e musical homogêneo, no sentido de unidade estética34, e coerente em relação à sua postura engajada. Nesses discos foram lançadas muitas das canções mais conhecidas e gravadas de Ivan Lins, como “Começar de Novo”, “Velas Içadas”, “Dinorah, Dinorah”, “Somos Todos Iguais Nesta Noite”, “Cartomante”, “Aos Nossos Filhos”, todas escritas em parceria com Vitor Martins. Embora, na opinião de Ivan Lins, o engajamento seja o fio condutor de sua música nesse momento, tratado como uma questão ideológica, percebemos que suas escolhas se ajustam também às inclinações do mercado fonográfico. Antes de se profissionalizar como músico, compunha sambas, bossas e jazz, em seguida, começou a escrever canções românticas, ligadas ao soul e ao pop, atingindo grande êxito comercial. Com a queda de seu sucesso e com a crítica da esquerda em relação à sua atitude “alienada” passou a compor canções fortemente politizadas, incorporando elementos ligados à “brasilidade”, que obtiveram resultados mercadológicos muito favoráveis.

No início dos anos 1980, com o disco Novo Tempo, que segue a linha dos três discos anteriores, inicia-se uma queda de vendagem, como indica o trecho a seguir, de uma revista da época: “(...) êxito não repetido por Novo Tempo, disco demasiadamente parecido com A Noite e que deixou a impressão de um certo esgotamento de fórmula adotada desde Somos Todos Iguais (...)” (in: LINS: 1981, p. 11). A crítica começava a enfatizar a padronização do estilo que prevaleceu nos álbuns da EMI. Justamente nesse momento de crise, Lins mudou da EMI para a Polygram/Philips, após lançar Novo Tempo. Mais uma vez, sua imagem começa a sofrer transformações no início dos anos 1980, a partir da gravação do disco Daquilo Que Eu Sei (1981). 

 


Início dos anos 1980 e a volta do “internacional-popular”

Além da mudança no conteúdo das letras, a partir desse álbum, a sonoridade das canções passa a ser predominantemente marcada pelo uso de sintetizadores e de instrumentos eletrônicos. Em comparação aos quatro discos lançados anteriormente há um número menor de músicos35, ainda que apresente duas faixas com orquestra de cordas. Além disso, praticamente todas as canções são pop. Essas mudanças distinguem-se nos três discos lançados no início dos anos 1980: Daquilo Que eu Sei (1981), Depois dos Temporais (1983) e Juntos (1984), embora esse último seja um retrospecto de canções gravadas entre 1974 e 1980.

Em entrevista, Gilson Peranzzetta (36), arranjador e produtor desses três álbuns, refere-se a essas mudanças, em sua visão, como resultantes de um momento de expansão de público para Lins: “porque o conteúdo da música era bem mais trabalhado, mais pesado. Agora você (Ivan) vai ter mais oportunidade de chegar, ampliar muito”. Segundo Peranzzetta, a mudança do conteúdo das canções e da sonoridade nunca foi uma imposição da gravadora, mas sim uma escolha “exigida” da sonoridade vigente (...) um modismo”. Através da análise da ficha técnica dos três discos percebemos que instrumentos eletrônicos, como os sintetizadores crumar performer, oberheim, prophet 5, Korg Polysix, são adotados com maior frequência ao longo de cada álbum (37). Tanto o predomínio de canções de apelo romântico, quanto da sonoridade resultante do uso de sintetizadores, que marcam a produção de Ivan Lins ao longo da década de 1980, são reflexos de uma nova dinâmica que passou a se impor no mercado fonográfico. 
Nessa década, assinalada por uma maior segmentação e racionalização da indústria do disco, ocorreu um processo de aproximação estética dos diferentes produtos oferecidos pelo mercado musical, como meio de ampliar a faixa de consumo, conforme aponta Eduardo Vicente, em sua tese de doutorado sobre a indústria do disco no Brasil:
O que se tornou dominante dentro do mercado – e da ação das grandes gravadoras – foi a eliminação dos excessos e a pasteurização das letras, melodias, performances e arranjos: processo que tendeu a aproximar o sertanejo, o rock, a música infantil e parte da MPB de um mesmo referencial e público alvo. De qualquer forma, até o final da década a “invasão romântica” do cenário musical já estaria assentada sobre um novo patamar de profissionalização da produção (...). (VICENTE: 2001, p. 100)


Vicente ressalta ainda que desde o processo de abertura política houve uma mudança no mainstream da MPB e que os critérios que separavam a música “popular” e a “MPB” passaram a ser insuficientes, conduzindo a um “embaralhamento dos pólos” dentro do mercado (idem, pp. 98, 121). Ainda tendo como referência o mainstream da “MPB” das décadas anteriores, notamos uma reação negativa da crítica em relação à “nova” concepção artística de Ivan Lins, referente ao lançamento do disco Daquilo Que Eu Sei. Sob a perspectiva da “padronização como estratégia de sucesso”, a crítica recaiu sobre a nova produção de Ivan Lins e do letrista Vitor Martins em contraposição às canções da década anterior: “Hábeis na criação de metáforas que contornavam os rigores da censura nos anos 70, repetiram-se indefinidamente (...). Perderam o assunto favorito, jamais substituído pelas fraquíssimas composições românticas que gravam” (TRILHA... : 1981, p.127). Embora essa crítica tenha implicações de gosto pessoal, faz sobressair o papel que Ivan Lins desempenha como um ator flexível em relação às exigências e tendências mercadológicas. Os quatro discos anteriores lançados pela EMI, Somos Todos Iguais Nesta Noite, Nos Dias de Hoje, A Noite e Novo Tempo, são baseados em um conteúdo poético e sonoro análogo, que comercialmente funcionou como uma “fórmula de sucesso” até o declínio de vendagens dos LPs. O crítico, ao mesmo tempo em que condena a nova fase “padronizada” do início dos anos 1980, prefere declaradamente as canções da década anterior, mesmo reconhecendo a estandardização presente também nesse período: “repetiram se indefinidamente”. Já em 1983, com o lançamento de Depois dos Temporais, a crítica traz à tona a padronização das canções de Lins, considerando-o: “um compositor que, esvaziado pela abertura política, passou a se repetir nos últimos anos” (EM RITMO... : 1983, p. 125). Nessa crítica há um olhar positivo e de aceitação das mudanças estéticas da produção de Lins, realçando que o artista: “reelabora seu estilo alternando climas românticos e reflexivos”, deixando para traz temas políticos (idem). Por fim, salientamos a flexibilidade de Ivan Lins como fruto de uma nova dinâmica de atuação, balizada pelas relações de mercado, que surgiu nos anos 1970, marcada por conflitos e transformações de valores, na busca de espaços de legitimação, como ressalta Eduardo Vicente abaixo: 
Assim, surge a partir dos anos 1970 – mesmo em conexão com o pólo “intelectualizado” da música popular brasileira – uma geração de artistas que incorpora em seu habitus uma visão mais objetiva do mercado e, também por isso, uma maior adaptação às suas novas exigências (...). A tradição já consolidada e os pólos de legitimação constituídos dentro do campo apresentam-se como importantes patterns de produção e referenciais para sua atuação. Por isso, embora parcialmente esvaziados do seu significado político original, tanto o mainstream formado pelos artistas dos anos 50 e 60 quanto o posicionamento entre conceitos como “comercial” e “artístico”, “político” e “alienado”, “popular” e “elaborado” continuam a ter grande relevância para esses novos agentes em sua busca de posicionamento no campo. (VICENTE: 2001, p. 84). 


Como bem frisou Vicente, as referências ligadas ao plano ideológico que orientavam as produções da MPB nas décadas anteriores passam a ser ressignificadas e transformaram-se em padrões de produção para a atuação de artistas dentro da nova dinâmica que se estabeleceu, segundo a lógica do mercado moderno, como observamos na trajetória de Ivan Lins. Enquanto na segunda metade dos anos 1970 o que parece nortear a produção de Lins é o referencial “nacional-popular”, aproximando sua música da “identidade brasileira”, nos anos 1980 parece haver uma retomada do conteúdo “internacional-popular” que também se distinguiu na produção do início da década de 1970. E é justamente na década de 1980 que o artista consolida sua atuação no mercado internacional.


Considerações finais 


Tratamos aqui de um assunto extenso, abrangente e de grande complexidade que pode ser aprofundado em pesquisas futuras. Ainda que o enfoque na produção realizada em um intervalo pouco maior que dez anos seja muito amplo para ser tratado em poucas páginas, possibilitou-nos ter uma visão mais geral das transformações musicais e profissionais de Ivan Lins, contornadas por um momento de transição no qual se consolidavam os padrões internacionais do mercado de consumo moderno no Brasil. Mesmo com a amostragem de apenas quatro canções, as análises contribuíram para a percepção de que, se por um lado ocorrem frequentes mudanças estéticas que incidem sobre o conteúdo das letras e dos arranjos, há uma coerência composicional, na qual procedimentos harmônicos e melódicos elaborados se destacam como elementos chave dos “hábitos compositivos” de Ivan Lins. Os arranjos e as letras se articulam conforme o posicionamento de Lins, contribuindo para sua legitimação em determinados campos de atuação. Acreditamos que as análises musicais inseridas no texto, ao invés de separadas em uma seção à parte podem contribuir para uma visão mais completa das produções de Lins. O que se tornou o ponto nevrálgico nesse trabalho é o processo de atrelamento temporário a diferentes identidades como forma de legitimação para Ivan Lins, segundo a lógica de mercado. Michel Nicolau Netto, em seu livro sobre a música brasileira e a identidade nacional no contexto da mundialização, apresenta o conceito de “ator móvel” (NETTO: 2009, p. 193):   Conforme o acúmulo de capital do criador cultural ele deverá se subsumir com mais ou menos fixidez a uma identidade em busca de se posicionar no mercado internacional de música. E, ainda, dependendo também deste capital, o criador poderá se relacionar a uma identidade mais fixa, ou seja, que preza pela perenidade e territorialidade, ou mais flexível, cuja essência é a própria mudança e a desterritorialização. (...) temos o criador cujo capital lhe permite não se fixar a qualquer identidade, pois não o necessita para se inserir no mercado cultural, mas que, quando ou se o fizer, será de forma controlada, estratégica e temporária, enquanto tiver interesse para tanto. Podemos conceituá-lo, então, de ator móvel (...). (NETTO: 2009, p. 193)
O termo “ator móvel” pode nos ajudar a entender a mutabilidade da produção de Lins, que ora se fixa a determinada identidade, ora se afasta, como uma estratégia controlada, orientada por suas experiências específicas e interesses e como uma forma de “sobrevivência”, em um momento de crescente globalização da economia e de internacionalização cultural.


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*Thaís Nicodemo, pianista, compositora, arranjadora e pesquisadora paulistana. Doutoranda em Música, pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, é mestre em Música pela mesma instituição e possui bacharelado em Piano Popular, pela Faculdade Santa Marcelina e membro da Associação Mural Sonoro. Revista Brasileira de Estudos da Canção – ISSN 2238-1198 Natal, v.1, n.1, jan-jun 2012. 

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“Um Abraço Terno em Você, Viu Mãe” (Luiz Gonzaga Jr.), “Diva” (César Costa Filho/ Aldir Blanc) e “O Amor é o Meu País” (Ivan Lins/ Ronaldo Monteiro de Souza).

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Entrevista concedida por Paulinho Tapajós, realizada por mim no dia 28/10/2011. 20 “Agora” (Ivan Lins/ Ronaldo Monteiro de Souza)/ “Finalmente” (Ivan Lins/ Ronaldo Monteiro de Souza), Forma/Philips, 1970 21 “Novamente Nós” (Ivan Lins/ Ronaldo Monteiro de Souza)/ “A Vida Avisa Que Chegou” (Ivan Lins/ Ronaldo Monteiro de Souza)/ “Qual a Porta?” (Ivan Lins/ Ronaldo Monteiro de Souza)/ “À Beira do Cais” (Ivan Lins/ Paulinho Tapajós/ Arthur Verocai), Forma/Philips, 1970.

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Letra de “O Amor é o Meu País”: Eu queria, eu queria, eu queria/Um segundo lá no fundo de você/Eu queria, me perdera, me perdoa/Por que eu ando à toa/Sem chegar/Tão mais longe se torna o cais/Lindo é voltar/É difícil o meu caminhar/Mas vou tentar/Não importa qual seja a dor/Nem as pedras que eu vou pisar/Não me importo se é pra chegar/Eu sei, eu sei/De você fiz o meu país/Vestindo festa e final feliz/Eu vi, eu vi/O amor é o meu país/E sim, eu vi/O amor é o meu país.

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Conforme Lins, enquanto Agora vendeu por volta de 80.000 cópias, Deixa o Trem Seguir chegou a cerca de 8 a 9 mil e Quem Sou Eu?, três mil (LINS: 1981, p. 14). 

25 Paulinho Tapajós, em entrevista realizada por mim no dia 28/10/2011.

 

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26 LINS Ivan – MPB Especial 1974. Programa produzido pela TV Cultura. Direção de Fernando Faro. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2008. 1 DVD. 27  Embora não seja um dado preciso, Lins afirma em entrevista que o LP “Modo Livre” vendeu cerca de 10 mil cópias. (LINS: 1981). 29
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Em entrevista, em 1981, Lins afirmou que Somos Todos Iguais Nesta Noite havia vendido por volta de 70.000 cópias, Nos Dias de Hoje, 80.000, A Noite, havia passado das 100.000 cópias e Novo Tempo, lançado em 1980, passou por uma queda na vendagem, para 60.000 exemplares (LINS, 1981, p. 15).  

34 Os arranjos desses álbuns apresentam instrumentação similar, com os mesmos músicos tocando, além da sonoridade orquestral e dos coros vocais que se assemelham. 

 

36 Gilson Peranzzetta, em entrevista realizada por mim no dia 30/10/2011. 37 Em Juntos, como é possível perceber, os recursos tecnológicos permitem que em uma mesma faixa, no caso, “Formigueiro”, tenham poucas pessoas tocando e muitos instrumentos soando: Gilson     Peranzzetta     - Emulator, Gilson     Peranzzetta     - Teclado Korg PolySix, Gilson     Peranzzetta     – Acordeon, Gilson     Peranzzetta     - Piano Yamaha DX-7, Ivan     Lins     - Oberheim DX, Ivan     Lins     - Piano Yamaha DX-7, Ivan     Lins     - Piano Yamaha CP-70, Jorginho     - Percussão, Tim     Maia     - Bateria, Tim     Maia     – Coro. 34
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35 Levamos em consideração que a introdução de sintetizadores e de instrumentos eletrônicos nos anos 1980 possibilitou a redução dos custos de gravação, substituindo, por exemplo, uma orquestra de cordas, por instrumentos sintetizados, tocados por um só músico (Cf. VICENTE: 2001, p. 140). resultado favorável desse novo tipo de produção pode ser verificado pela vendagem de seu disco posterior Ivan Lins, de 1986, que recebeu disco de ouro 38. 

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38 Cf. Ivan Lins, por email no dia 14/11/2011.
 

Referências


DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. São Paulo: Boitempo, 2008. NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação. São Paulo: Contexto, 2006. ______. História e música – história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. ______. A música popular brasileira (MPB) dos anos 70: resistência política e consumo cultural. In: Anais do IV Congreso de la rama latino-americana del IASPM, 2002. ______. O caso das “patrulhas ideológicas” na cena cultural brasileira do final dos anos 1970. In: MARTINS FILHO, João Roberto. (Org.) O golpe de 1964 e o regime militar: novas perspectivas. São Carlos: EdUFSCAR, 2006. ______. MPB: a trilha sonora da abertura política (1975/1982). In: Estudos Avançados (USP. Impresso), v. 69, p. 389-404, 2010. NETTO, Michel Nicolau. Música brasileira e identidade nacional na mundialização. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2009. ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2003. ______. A moderna tradição brasileira – cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 2006. RIDENTI, Marcelo. Brasilidade Revolucionária. São Paulo: Editora UNESP, 2010. SCOVILLE. Eduardo Henrique Martins Lopez de. Na Barriga da Baleia: a Rede Globo de Televisão e a música popular brasileira na primeira metade da década de 1970. Curitiba: UFPR, 2008. Tese de Doutorado. 
MATÉRIAS     PUBLICADAS     NA     REVISTA     VEJA  TEMPLO de todos os sons. VEJA, São Paulo: Abril, s/n, p. 76. 23 de dezembro de 1970. RECOMEÇA a corrida para o ouro. VEJA, São Paulo: Abril, s/n, p. 40-45, 14 de abril de 1971. SERTÃO elétrico. VEJA, São Paulo: Abril, s/n, p. 80. 23 de março de 1972. LIVRE do sucesso. VEJA, São Paulo: Abril, s/n, p. 125. 10 de agosto de 1977. TRILHA perigosa – falta de ousadia provoca naufrágio geral. VEJA, São Paulo: Abril, s/n, p. 123. 7 de outubro de 1981. EM RITMO de férias. VEJA, São Paulo: Abril, s/n, p. 125. 6 de julho de 1983. 
O     PASQUIM  LINS, Ivan. O que caiu no golpe do Olimpiá. O Pasquim, n. 174, 6 nov. 1972. p. 9- 12. Entrevista.
O     ESTADO     DO     PARANÁ     MILLARCH, Aramis. Abertura (Opus 2). O Estado do Paraná, Curitiba, 16 jan. 1975.
REVISTA     VIOLÃO     &     GUITARRA     MPB  LINS, Ivan. Ivan Lins – o ídolo que renasceu. Revista Violão e Guitarra MPB, n. 12, 1981, Editora Imprima Comunicação Editorial. Entrevista. 
FONTES     EM     ÁUDIO     E     VÍDEO  LINS, Ivan - MPB Especial 1974. Programa produzido pela TV Cultura. Direção de Fernando Faro. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2008. 1 DVD. 38
Revista Brasileira de Estudos da Canção – ISSN 2238-1198 Natal, v.1, n.1, jan-jun 2012. Disponível em: www.rbec.ect.ufrn.br
LINS, Ivan. Juntos. Brasil: Polygram, 1984, LP LINS, Ivan. Depois dos Temporais. Brasil: Polygram/ Phillips, 1983. LP LINS, Ivan. Daquilo que eu Sei. Brasil: Polygram, 1981. LP LINS, Ivan. Novo Tempo. Brasil: EMI, 1980, LP. LINS, Ivan. A Noite. Brasil: EMI, 1979, LP. LINS, Ivan. Nos Dias de Hoje. Brasil: EMI-Odeon, 1978, LP.  LINS, Ivan. Somos Todos Iguais Nesta Noite. Brasil: EMI Odeon, 1977. LP LINS, Ivan. Chama Acesa. Brasil: RCA, 1975, LP. LINS, Ivan. Modo Livre. Brasil: RCA, 1974, LP. LINS, Ivan. Quem Sou Eu?. Brasil: Forma, 1972, LP. LINS, Ivan. Deixa o Trem Seguir. Brasil: Forma, 1971, LP. LINS, Ivan. Agora. Brasil: CBD/Forma, 1971, LP.
ENTREVISTAS Paulinho Tapajós, no dia 28/10/2011 Eduardo Souto Neto, no dia 28/10/2011 Gilson Peranzzetta, no dia 30/10/2011 Ronaldo Monteiro de Souza, no dia 31/10/2011 Ivan Lins, email, no dia 14/11/2011

 

fotografia de capa de Augusto Fernandes no âmbito de entrevista de Soraia Simões a Ivan Lins (História Oral, plataforma Mural Sonoro)

 

 

 

 

 

 

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Carnaval em Lazarim: Máscaras, Testamentos e Práticas Carnavalescas

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Carnaval em Lazarim: Máscaras, Testamentos e Práticas Carnavalescas

 

[1] por Dulce Simões

A vila de Lazarim, no Norte de Portugal, encontrou no Carnaval um tempo de excepção para afirmar a sua identidade cultural, reinventando a tradição. No processo de institucionalização das práticas carnavalescas recuperam-se os ritos, os símbolos e os textos associados às festas de Inverno, que atribuem sentido e significado à vida da comunidade.

Carnaval em Portugal. Máscaras de Lazarim. Reinvenção da tradição. Testamentos dos compadres e das comadres. Rituais carnavalescos

The village of Lazarim, located in the North of Portugal, found a time of exception in Carnavalto reassure its cultural identity by the reinvention of traditional practices. In the process of institutionalization of carnival’s practices, rites as well as symbols and texts associated to the winter feasts were recovered and enlivened, attributing meaning and signification to the life of the local community.

CARNIVAL IN PORTUGAL. MASKS OF LAZARIM. REINVENTION OF TRADITION. TESTAMENTOS DOS COMPADRES E DAS COMADRES. CARNIVAL RITUALS.

INTRODUÇÃO

As comunidades rurais possuem um conjunto de saberes e de práticas que pretendem preservar e transmitir às gerações futuras, como património cultural e identitário. A vila de Lazarim, no concelho de Lamego, Norte de Portugal, encontrou no Carnaval um tempo de excepção para afirmar a sua identidade cultural, recuperando os ritos, os símbolos e os textos associados às festas de Inverno. A partir de 1985 as práticas carnavalescas foram institucionalizadas, num modelo performativo que procura mostrar a tradição local ao mundo global. A intervenção da Junta de Freguesia, da Casa do Povo e a vontade política dos seus elementos foram determinantes para a reinvenção da tradição, numa acção concertada com a escola e o envolvimento das famílias. No processo de invenção da tradição (HOBSBAWM & RANGER, 1983) recuperam-se os saberes de um passado rural que atribui sentido e significado à vida da comunidade, resgatando práticas culturais como capital simbólico (BOURDIEU, 2001).

Na perspectiva etnográfica de uma descrição densa (GEERTZ, 1978), partimos para Lazarim levando na bagagem algumas leituras sobre práticas carnavalescas no Norte de Portugal, e os textos divulgados na Internet pela Câmara Municipal de Lamego. Em termos metodológicos entrelaçámos a história e a antropologia, articulando a pesquisa documental e bibliográfica com o trabalho de campo, ao longo do qual realizámos entrevistas com informantes institucionais (presidente da Junta de Freguesia, presidente da Casa do Povo, pároco local e professor), com informantes privilegiados (artesãos de máscaras e representantes dos grupos dos Compadres e das Comadres), e conversas informais com residentes e visitantes. Neste artigo questionamos os mecanismos de construção e preservação das práticas carnavalescas, numa comunidade rural cuja componente agrícola se desvaneceu, com o enfoque na cultura popular (BAKHTIN, 2002) e nas práticas performativas (CONNERTON, 1999). Numa permanente dialéctica entre o passado e o presente, mediado pela memória dos nossos informantes, estruturámos o texto em três partes, analisando as mudanças no mundo rural e os sentidos e significados atribuídos à festa, no processo de construção de identidades locais.

O ESPAÇO, OS LUGARES E AS PESSOAS

Lazarim é uma freguesia portuguesa do concelho de Lamego, distrito de Viseu, Beira Alta, com 15,71 km² de área, e uma população residente de 686 pessoas, num total de 236 famílias (Censos 2001). Historicamente é identificada através de vestígios arqueológicos pré-celtas, romanos e visigóticos, atribuindo os habitantes a sua origem à aldeia das Antas, actualmente desabitada. Os primeiros documentos referentes a Lazarim datam do início do séc. XIII, quando beneficiava do título de Vila, com administração autárquica e o nome associado ao antropónimo latino de um senhor agrário. A estrutura social da comunidade assentava na família e no Município, implementados pelo sistema de propriedade. A terra era explorada a nível familiar durante três gerações, gozando os herdeiros de preferência na renovação do contrato de arrendamento com os senhores da terra, fidalgos e ordens eclesiásticas. A posse da terra determinava a estrutura linhageira e o casamento endogâmico, fixando a herança na linha agnática. A Igreja impunha o casamento exogâmico, tornando nulo o casamento entre parentes, sendo os documentos registados como divórcios relativos a anulações, por denúncias feitas à Igreja. Em 1273 a povoação ficou praticamente desabitada, em virtude da peste que assolou a Beira, perdendo o título de Vila com a promessa de lhe ser restituído após povoamento, e durante 200 anos cessaram referências documentais. Em 1505 recuperou o título de concelho, por contrapartida do reconhecimento público ao novo donatário, “D. João de Menezes, Conde e senhor das ditas terras e concelhos” (COSTA, 1977, p. 91). No séc. XIX voltou a perder o título, recuperando-o simbolicamente a 21 de Junho de 1995. 

As diferenças entre lugares não são identificáveis no plano material, através da observação do espaço geográfico, porque este apresentava-se homogéneo ao nosso olhar. A heterogeneidade justifica-se ao nível simbólico e histórico, associada às famílias que os construíram ao longo do tempo, designando-os por Padrão, Vila e Valverde.

Existe uma competição entre os três lugares, e no Carnaval sente-se isso, esconde-se para ser melhor, e por um lado até é bom essa competitividade, mas às vezes também é exagerado porque se pode perder o controlo da própria pessoa, e criam-se as rivalidades que prejudicam a paz e a serenidade entre as pessoas. (Agostinho Ramalho, pároco local)1

O lugar do Padrão demarca-se na entrada da vila, circunscrito à zona da ribeira, integrando à direita o solar dos Vazes, deixado por herança para residência oficial do Pároco local, e à esquerda o solar do Barão de Lazarim em ruínas. O lugar da Vila é o núcleo habitacional mais antigo, com a Casa da Câmara construída em granito, ruas estritas, onde se misturam as habitações de alvenaria com as de granito e xisto. Valverde fica na encosta e é o núcleo mais moderno, destacado pelas residências em alvenaria. O espaço do Lazarim integra estes lugares, transformados ao longo de gerações pelos seus habitantes, com os saberes que reproduzem o quotidiano. A terra outrora fértil já não serve as necessidades económicas das famílias, apesar de continuarem a cultivá-la para o consumo das casas. Os canastros, ao longo dos campos, testemunham um passado ligado à terra, mas presentemente os residentes dependem dos serviços em Lamego, ou do trabalho na construção civil, mantendo as actividades agrícolas em paralelo. A maioria das pessoas de Lazarim migrou para Lisboa e Porto, apesar de se ter verificado uma emigração bastante significativa para o Brasil nas décadas de 1940 e 1950. No Brasil fixaram-se em Caju, Rio de Janeiro, e em São Paulo, e poucos regressaram. Em Lisboa e Porto criaram comunidades de migrantes, regressando a Lazarim para as festas de Verão, para a matança do porco, ou para ajudar nas vindimas. Mas durante o Carnaval são sobretudo os jovens que regressam para participar na festa.

O CARNAVAL JÁ NASCEU CONNOSCO, JÁ OS VELHOS FAZIAM ISSO

O Carnaval constitui um sistema simbólico associado à transição do Inverno para a Primavera, do velho para o novo, da morte para a vida, do frio para o calor, da parte masculina para a parte feminina do universo, reunindo diversos significados que assinalam este ciclo na vida das comunidades rurais. Um ciclo de renovação cósmica e social, tempo de utopia e transgressão, onde tudo o que é socialmente marginalizado busca uma libertação catártica, vencendo simbolicamente a hierarquia, a ordem, a opressão, e o sagrado. Na Idade Média as festas carnavalescas convertiam-se simbolicamente na “segunda vida do povo”, que ascendia, temporariamente, ao reino da utopia, da universalidade, da liberdade, da igualdade e da abundância (BAKHTIN, 2002). O Carnaval representa um ciclo na vida das comunidades, mais ou menos representativo conforme os significados que as pessoas lhe atribuem:

O significado histórico é mais importante do que o significado que eu lhe atribuo como participante. O significado desta quadra festiva é para mim gozo e prazer, mas o significado histórico já vem da Idade Média e mistura o profano com o religioso. Como o ano é dividido liturgicamente o Carnaval é o aliviar de uma certa carga religiosa. Antes as pessoas eram mais participativas na igreja católica e então tinham estas fugas para libertar o seu espírito e sair um bocadinho da rotina. (Norberto Carvalho, presidente da Junta de Freguesia)2

Nesta perspectiva, todas as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo, da alternância, da renovação, e da consciência sobre a relatividade das verdades e autoridades do poder (BAKHTIN, 2002, p.10). Para Veiga de Oliveira (1984) o Carnaval provém das Saturnais romanas, que se caracterizavam como um período de completa liberdade licenciosa, durante o qual tudo era permitido (OLIVEIRA, 1984, p. 38). Este ciclo temporal, em que o curso normal da vida é suspenso, dando lugar a rituais de inversão e subversão, contrariando a ordem social, pode ser designado por “liminar” (TURNER, 1974, p.117), com os seus “rituais de passagem” (VAN GENNEP, 1978, p. 31). Em Lazarim, o Carnaval foi recordado pelos mais idosos como um tempo vivido no interior da comunidade, como prática de resistência aos poderes instituídos e como paródia burlesca:

O Carnaval já nasceu connosco e já os velhos faziam isso, mas o Carnaval era mais rigoroso nesse tempo, o pessoal não era tão educado. Qualquer briga de namorico ou da rega das águas, era pago nestes dias. Havia quase sempre zaragatas. … Também acompanhei o farranjo mas no entanto eu livrava-me das marés, que é quando via a coisa a ficar azeda, porque às vezes o Carnaval durava mais de um ano pelos tribunais. (José Rua, reformado)3

O Carnaval serviu para “ajuste de contas” entre vizinhos, mas também para afrontar os poderes instituídos. As práticas rituais de inversão nas sociedades católicas ocidentais assinalam um tempo de utopia. Este tipo de pensamento utópico, disfarçado de forma alegórica, revela uma declaração explicitamente revolucionária, em que os dominados concebem a inversão, e a negação de uma ordem social, radicalmente diferente daquela que vivem (SCOTT, 2003, p. 126). Durante o Estado Novo as práticas carnavalescas em Portugal estavam sujeitas à aprovação das autoridades locais, muitas vezes dominadas pela Igreja. Em Lazarim proibiram-se os mascarados (Caretos) e a leitura dos testamentos do Compadre e da Comadre, por intervenção directa do pároco local junto do Bispo de Viseu.

O Entrudo, com os testamentos, era para a igreja de então algo prejudicial para a moral da sociedade. Então eles nesses dias em que esperavam que ia haver este tipo de rituais mandavam vir a GNR, eram as histórias que os meus pais contavam dos anos trinta e quarenta. (Norberto Carvalho, presidente da Junta de Freguesia)

Na década de 1940 era comum o pároco local pedir um destacamento da Guarda Nacional Republicana (GNR) para reprimir possíveis manifestações de desobediência. Num desses anos, os guardas da GNR estavam reunidos em casa do pároco, comendo e bebendo, quando foram surpreendidos pelo disparo de um tiro de caçadeira, que os pretendia amedrontar. O alvoroço na aldeia foi generalizado, e procederam-se a buscas e interrogatórios para encontrar o culpado. No decorrer das averiguações foram chamados ao Regedor todos os homens que tinham armas de caça, e a aldeia acorreu em peso. Quando o processo chegou ao juiz de Lamego estavam envolvidos todos os homens da aldeia, unidos em protesto colectivo, mas foram ilibados da sentença e prevenidos pelo juiz a não repetirem o sucedido. Na aldeia todos sabiam que o autor do disparo era o filho do Regedor, mas nunca o denunciaram. A sua acção representou uma vontade colectiva, e uma forma de resistência ao poder dominante4.

Havia muitas vinganças. Eu tinha uma tia que era professora primária mas era muita má. E não havia Entrudo em que ela não saísse para moer, inclusive no marido. Para dar pancada, mas pancada a sério. (…) Eram as mulheres que se vestiam de Careto. É um ritual de inversão não tenha dúvidas, é assim que eu me lembro da minha infância. (Amândio Lourenço, Presidente da Casa do Povo)5.

 Lembro-me do Carnaval desde novinha, mas não era assim, saíam mais vezes mascarados com uns paus e a canalha sempre atrás deles, a gente era nova e gostava imenso e agora também gosto muito. Só uma vez é que fiz um testamento, ainda não namorava o meu marido. Achava graça e também gostava de meter a minha achada contra eles. Eles eram mais atrevidos do que agora, não com falta de respeito às raparigas que havia muita, mais do que agora, mas nas zaragatas. (Elvira Fernandes, reformada)6.

O Carnaval aqui em Lazarim sempre foi meio maroto, até que agora nem é, é bonito e é um sossego. A evolução da vida é que faz isso. Antigamente as freguesias não se podiam ver umas às outras, agora os daqui casam com os de fora, os de fora casam com os daqui e a evolução do tempo é que vai fazendo isto e cada vez a coisa está mais normalizada, e assim é que é bem. (Afonso de Almeida e Castro, artesão de máscaras)7.

Os testamentos da Comadre e do Compadre tiveram consequências sociais graves, que se reflectiram em processos judiciais e noivados desfeitos. A memória colectiva preserva esse tempo de conflitos, atribuindo à evolução dos tempos a normalização das relações entre vizinhos. Por outro lado, a institucionalização das práticas carnavalescas retirou a componente de transgressão e de secretismo que girava em torno dos Caretos, e do grupos das Comadres e dos Compadres. A leitura dos testamentos realizava-se nos três lugares de Lazarim, permitindo a criação de um percurso que envolvia todo o espaço da comunidade numa unificação simbólica. Actualmente concentra-se no Largo do Padrão, frente ao edifício da Junta de Freguesia. Esta alteração obriga os habitantes a deslocarem-se a um único lugar, mas permite aos forasteiros acompanharem todas as fases do ritual. As práticas carnavalescas transformaram-se numa representação performativa para visitantes, e a animação dos Caretos resume-se a um desfile de mascarados, pousando para secções fotográficas, não desempenhando o papel socialmente desestabilizador pelo qual são recordados.

Para o processo de reactivação e reinvenção das práticas carnavalescas foi determinante a acção dos membros da Casa do Povo e da Junta de Freguesia, em colaboração com a Escola Primária e o Núcleo da Telescola, coordenado pelo professor Joaquim Simões:8

Nós, escola, temos feito intervenções junto da localidade começando pelo Carnaval. Levámos para a escola toda esta vivência do Carnaval, desde a confecção das máscaras, nas aulas de EVT, às fardetas e à própria gastronomia. Eles trazem as carnes e as mães vêm ajudar a fazer o caldo de farinha e partilhamos isso tudo como uma família alargada.

A Junta de Freguesia e a Casa do Povo, com o apoio da Câmara Municipal de Lamego, asseguraram os meios económicos para a organização da festa, no sentido de a preservar, contudo, esse processo pode ser analisado pelo ponto de vista da institucionalização, como testemunha Amândio Lourenço:

Eu, ao criar a Casa do Povo em 1981, peguei no assunto. Deu-se-lhe orientação, deu-se-lhe ritmo, organizou-se, está a perceber? Em vez de ser livre sem qualquer intervenção de ninguém a organizar, passou a ser a Casa do Povo a assumir as custas. Da sua originalidade não perdeu nada, deu-se-lhe foi mais um bocado de orientação, de organização para que os media tirem mais proveito deste trabalho. Porque o princípio que nos rege é particularmente os mesmos. (…) O objectivo foi preservar uma das mais ricas tradições de Lazarim que foi e é, a tradição mais rica. O objectivo é cultural, mas hoje já tem um peso comercial tremendo.

A promoção e divulgação do património cultural tem obviamente contrapartidas económicas, sobretudo para os pequenos comerciantes locais e para os artesãos das máscaras de madeira, mas tem igualmente uma contrapartida simbólica que não pode ser ignorada, o prestígio dos agentes culturais. O prestígio é observável ao nível da presença dos representantes do poder local e regional, de investigadores e museólogos, como roteiro cultural de elites urbanas, e pela presença de representantes da comunicação social à escala regional e nacional. Contudo, a reinvenção da tradição revela esquecimentos, que permanecem nas memórias de alguns membros da comunidade, como recordou Isabel Loureiro9:

Perdeu-se a semanas das amigas e dos amigos porque as pessoas esqueceram-se um bocado e a vida também mudou. Nesses dias e nessas semanas havia comidas associadas e era uma forma da mulher que não podia aparecer, nem podia dar a cara e então castigava o homem em casa, para ele ter cuidado com aquilo que fazia depois. Era engraçado e eu já nem me lembro como era bem, os meus pais é que têm isso escrito lá em casa.

Alberto Correia (2003) elaborou um calendário do ciclo do Carnaval em Lazarim, associando as relações de poder entre os grupos de género, com as comidas confeccionada à base de carne do porco. O calendário iniciava-se no quinto domingo anterior ao domingo gordo, assinalando a Semana dos Amigos. Durante esta semana a mulher exercia o poder sobre o homem, através da comida que confeccionava, “o homem era castigado com a apresentação de alimentos de pouca valia, como um caldo de farinha com moira”. Na semana subsequente, a Semana das Amigas, “as mulheres como donas do lar não prescindem de iguarias, como a chouriça, um enchido nobre que desafia a magreza da moira”. No domingo seguinte iniciava-se a semana dos Compadres, com os homens ainda subalternizados e condicionados ao consumo da moira. Por oposição, na semana sequente, a Semana das Comadres, as mulheres deliciam-se com salpicão (CORREIA, 2003, pp. 18-19). Durante as semanas dos Compadres e das Comadres os grupos realizavam peditórios para angariar fundos para a construção das suas mascotes, que hoje são encomendadas pela Casa do Povo a um artesão local. As relações de poder entre os grupos de género traduziam a submissão da mulher durante a vivência quotidiana na comunidade. A festa criava o espaço de excepção, e a utilização de práticas catárticas que permitiam ao grupo a criação de um mundo alternativo.

TODOS OS ANOS SAIAMOS MASCARADOS

Os estudos etnográficos sobre festas de Inverno no Norte de Portugal classificam o mascarado como um representante do diabo, da morte, do riso, do vício, gozando de uma impunidade a todos os níveis, em que “os mascarados da festa dos rapazes, tal como todas as personagens do Nordeste Transmontano, são veículo de um discurso mais ou menos simbólico e ritualizado ligado à transgressão, à licenciosidade e à liminaridade” (NETO JACOB, 1995, p. 386). A máscara é a expressão das transferências, das metamorfoses, das violações das fronteiras naturais e da ridicularização, baseada numa peculiar inter-relação da realidade e da imagem, característica das formas mais antigas dos ritos e espectáculos (BAKHTIN, 2002, p. 35). Como nos diz Lévi-Strauss (1981), “uma máscara não existe em si (...) não é aquilo que representa mas aquilo que transforma, isto é: que escolhe não representar. Como um mito, uma máscara nega tanto quanto afirma; não é feita somente daquilo que diz ou julga dizer, mas daquilo que exclui” (LÉVI-STRAUSS, 1981, p. 124).

Em Lazarim, três gerações de artesãos, com diferentes expressões artísticas, transfiguram um tronco de amieiro, árvore que nasce nas margens do rio Varosa, em figuras representativas da tradição local. Cada um destes homens regista simbolicamente nas suas máscaras, o seu universo cultural e o seu imaginário. Afonso de Almeida e Castro nasceu em Lazarim, em 1926, descendente de uma das famílias mais antigas da vila. O seu pai foi Regedor durante vários anos, e com a família aprendeu a arte de trabalhar o campo:

Os meus pais viviam do campo e ajudava-os quando era pequeno. Naquele tempo não havia dinheiro para comprar máscaras de plástico, nem plástico havia que eram de cartão. Mas já existia isto, sem ser eu, isto não vem de mim, já vem de tradição antiga. E como eu não tinha dinheiro e queria brincar ao Carnaval resolvi fazer de madeira. Eu tinha os meus dezasseis, dezassete anos quando comecei a fazer as máscaras, mas era como calhava, era dois buracos e uma boca, pronto, e um nariz. Umas saíram mal, outras começaram a sair menos bem, e outras a sair bem. Quando regressei do Brasil, esses rapazes que já sabiam que eu as fazia pediram-me para fazer. Vendia-as a 25 tostões.


FIG.1. Afonso de Almeida e Castro trabalhando*        FIG. 2. Máscaras de Afonso de Almeida e Castro*

Afonso de Almeida e Castro é o mais antigo artesão de máscaras de madeira, mas faz questão de afirmar não ser o primeiro, outros houve antes dele, enunciados nas narrativas dos mais idosos. As máscaras de Alberto Costa, Miguel Matança e do tio Mansinho do Travasso serviram de modelo para se iniciar na arte, mas foi sem dúvida a experimentação o elemento fundamental de aperfeiçoamento que lhe permitiu construir mais de mil e quinhentas máscaras. A sua máscara de um diabo, pintada de vermelho, foi cartão-de-visita do Carnaval de Lazarim durante a década de 1980, e sempre pintou as máscaras, até ao dia em que a “reinvenção da tradição” lhe impôs a cor natural da madeira, como modelo a reproduzir. As máscaras do diabo continuam a ser as mais solicitadas, mas também constrói figuras míticas do seu imaginário.

Segundo as narrativas dos mais idosos era comum pendurarem nas máscaras do diabo cobras do rio, sardões, sapos e sardaniscas que se contorciam, conferindo ao mascarado um aspecto ainda mais assustador. Estas memórias tomam forma nas máscaras de Adão de Castro Almeida, um dos artesãos de máscaras mais conhecido de Lazarim.

FIG: 3. Máscara de diabo, de Adão de Casto Almeida*

FIG: 3. Máscara de diabo, de Adão de Casto Almeida*

Adão nasceu em Lazarim em 1962, é calceteiro de profissão na Câmara Municipal de Lamego, e constrói máscaras há aproximadamente vinte anos. As suas mãos, hábeis na colocação da pedra, potenciam outras técnicas que a experiência foi aperfeiçoando ao longo dos anos, dedicando os seus tempos livres à construção das máscaras. Este gosto, incorporado, remete para as práticas carnavalescas da sua infância, tornando o seu trabalho tão misteriosamente personalizado. A máscara do diabo, construída por Afonso de Almeida e Castro, despertou em Adão de Castro Almeida o gosto pelas máscaras, quando tinha catorze anos de idade:

Todos os anos saíamos mascarados … então o Leonel aparece lá com um diabo pintado, era uma máscara das mais antigas. … A partir daí comecei a fazer, gostei daquilo, por acaso foi, foi mesmo um gosto. (Adão de Castro Almeida)10

José António da Silva Costa, mais conhecido por Costinha, nasceu em 1974 em Vila Nova de Gaia e é carpinteiro. Com 7 anos de idade veio para Lazarim, e aprendeu com o pai, carpinteiro de profissão, a arte de transformar a madeira. Mas foi na escola que apreendeu outras técnicas e o gosto pela construção de máscaras:

 

Comecei na Telescola a fazer máscaras de papel. Depois de madeira, uma coisa simplezinha, e daí para a frente fui-me incentivando, e o próprio Presidente da Junta foi-nos incentivando para fazermos, e estou a fazer máscaras para aí há dezassete anos. (Costinha)11

A madeira utilizada é o amieiro, por ser mais fácil de trabalhar, segundo nos diz: o amieiro é uma árvore que ensopa muita água, permitindo trabalhar a madeira enquanto está molhada. Mas depois de secar pode estalar. Os instrumentos são os mesmos que lhe são familiares na arte da carpintaria. Costinha é o único construtor que reúne na produção do seu trabalho os saberes aprendidos institucionalmente, através da escola e da família e o saber-fazer, resultante da sua incessante experimentação. As suas máscaras representam figuras humanas, ou bruxas do imaginário colectivo, mas recusa-se a construir máscaras de diabos. Costinha não incorporou, da mesma forma que os outros artesãos, o sistema simbólico do Carnaval local. O seu gosto incide sobre caricaturas de figuras públicas, reproduzindo nos seus trabalhos a influência dos meios de comunicação social. Mas o processo de institucionalização e o concurso de máscaras organizado pela Casa do Povo, obrigando-o à criação de figuras representativas da “tradição”. Como exemplo paradigmático do trabalho de Costinha, é interessante referir que utilizou uma caricatura de Vítor Baía, guarda-redes do Futebol Clube do Porto, como modelo para a execução da sua máscara de bruxa de 2003.

FIG. 4. Máscara da bruxa de Costinha*

FIG. 4. Máscara da bruxa de Costinha*

Os Caretos de Lazarim exibem através das suas máscaras representações de figuras históricas como bispos, reis e romanos, de figuras místicas como bruxas e diabos, de figuras grotescas, e ainda figuras de animais, como o burro, a corsa, o mocho e o porco. Os elementos que constituem as máscaras têm o valor de um signo, na medida em que reúnem em si um significante, ao nível da expressão plástica e um significado, ao nível do seu conteúdo, como elementos constitutivos de uma linguagem apreendida no sistema simbólico da comunidade. Para os visitantes, a leitura será certamente diferente, resultante dos seus sistemas de valores culturais. Como assinalava Umberto Eco, “cada um preencherá com os significados que lhe forem sugeridos pela própria situação antropológica, pelo seu modelo de cultura” (ECO, 1986, p.127). Neste sentido, o sistema de significação das máscaras só pode ser interpretado, traduzido ou descodificado como um discurso, por referência a uma estrutura sociocultural, entendendo-se por estrutura o contexto local onde o discurso é produzido.

Os Caretos completam a máscara com outros elementos de vestuário, como fatos confeccionados de palha, ou de barba de milho entrançado, capas vermelhas ou negras com debruados. Na mão, transportam quase sempre um objecto de uso agrícola, como uma enxada ou uma forquilha, havendo alguns que usam um cajado de nogueira, que nos remetem para o sistema simbólico do mundo rural.

FIG. 5. Máscara de Costinha, 2003* FIG. 6. Máscaras da colecção da Casa do Povo*

FIG. 5. Máscara de Costinha, 2003* FIG. 6. Máscaras da colecção da Casa do Povo*

Os Caretos de Lazarim, outrora elementos de desordem no seio da comunidade, transformaram-se em peças de artesanato local, para consumo dos mais abonados. Contudo, para as pessoas de Lazarim, as máscaras são motivo de orgulho e são uma referência cultural simbólica, não pelo que hoje representam, mas pelas memórias que suscitam. As máscaras, como sistema de signos, podem não ter a mesma leitura por parte de toda a audiência, mas, parafraseando Lévi-Strauss, “as máscaras também servem para pensar”.

 

O SIGNIFICADO DESTE RITUAL É MAIS UM GLADIAR ENTRE HOMENS E MULHERES

O ritual é uma actividade orientada por normas, com carácter simbólico, que chama a atenção dos seus participantes para objectos de pensamento e de sentimento, que estes pensam ter um significado especial (LUKES, cit. em CONNERTON, 1999, p. 22). O início do ritual é sinalizado pelo ribombar dos foguetes às três horas da tarde de terça-feira gorda. No Largo do Padrão começam a afluir os primeiros Caretos, lançando farinha e jactos de água sobre os forasteiros e os locais. Os forasteiros respondem com disparo de câmaras fotográficas, tentando registar tudo aquilo que foi anunciado como tradicional. No Largo da Casa do Povo, homens e mulheres preparam “ o banquete”, a confecção da feijoada, em grandes panelas de ferro, que no final do ritual será partilhada pelos visitantes e locais. Os homens carregam lenha, ateando o fogo, e as mulheres aprontam os ingredientes da feijoada, composta de feijão branco, enchidos, entrecosto e orelha de porco. No centro da Vila, outro grupo de mulheres prepara o caldo de farinha, composto de farinha de milho, couves e enchidos de porco, que têm a mesma finalidade, a de serem consumidos depois do ritual do testamento. Entretanto, soam as primeiras batidas dos bombos que ecoam no Largo do Padrão. O grupo de tocadores é constituído por quatro elementos, um par de bombos e um par de caixas que vão percorrendo as ruas de Lazarim, seguidos pelos Caretos, nas suas inocentes tropelias, e pelos representantes dos grupos das Comadres e dos Compadres. O cortejo vai até ao lugar de Valverde, onde o Sr. Hélio Fernandes, artesão dos bonecos carnavalescos, lhes entrega uma espécie de andor, com a mascote do grupo de género, um boneco, para o grupo das Comadres e uma boneca, para o grupo dos Compadres, feitos de papel colorido com uma instalação pirotécnica. Longe vai o tempo em que os grupos rivais procuravam apoderar-se destas mascotes como trunfo, e os seus esconderijos eram alvo do maior secretismo (OLIVEIRA, 1984, p. 54). Actualmente o secretismo é conservado apenas ao nível da criação dos testamentos e à identificação de quem os vai ler à praça pública, e desta forma representar os grupos de género.

Este testamento é envolvido num grande secretismo para que ninguém saiba. O principal objectivo é brincar com os da nossa idade por isso é que fazemos o testamento. (Paulo Loureiro)12.

Tentamos saber umas pelas outras o que eles andam a fazer. Eles fazem tudo em cima do joelho e também têm muito secretismo, mas também têm linguareiros. (Isabel Loureiro).

O cortejo atravessa a vila, desde Valverde até ao Padrão, e os participantes concentram-se no Largo da antiga Casa do Povo. Os Caretos dançam ao som dos bombos e caixas, em volta da fogueira onde se cozinha a feijoada, enquanto os Compadres e as Comadres se concentram no cimo das escadas da Casa do Povo. Esta pausa, no processo ritual, pretende satisfazer as solicitações de fotógrafos da imprensa regional e de outros representantes da comunicação social que todos os anos acorrem a Lazarim. Também os estudantes universitários e investigadores, estudiosos de festas populares e práticas performativas, provenientes de vários pontos do país e do estrangeiro, contribuem para a heterogeneidade dos observadores da festa, justificando o “capital simbólico” reivindicado pelo poder local.

FIG. 7. Largo da Casa do Povo* FIG. 8. As Comadres e os Compadres*

FIG. 7. Largo da Casa do Povo* FIG. 8. As Comadres e os Compadres*

O grupo das Comadres e dos Compadres são representados por duas raparigas e por dois rapazes, solteiros. Um representante de cada grupo será escolhido para leitor do testamento, e o outro, transporta a mascote; o boneco simbolizando o Compadre e a boneca simbolizando a Comadre. O significado atribuído à representação dos géneros, através da figura dos bonecos, é particularmente relevante, na medida em que as cores das suas roupas e adornos são de uma exuberância que contrasta com o vestuário comum dos membros da comunidade. O que vem reafirmar não se tratar de uma representação simbólica das categorias presentes, mas da utopia, a imagem de um estado futuro (CONNERTON, 1999, p. 50).

O significado deste ritual é mais um gladiar entre homens e mulheres. Nesta altura própria do ano, de se enfrentarem. Do homem se por ao nível da mulher e a mulher ao nível do homem, do rico ao nível do pobre e do pobre ao nível do rico. Ali naquele dia toda a gente muda a sua máscara. Toda a gente se inverte e acho que é esse o significado principal. (Amândio Lourenço)

A ordem que assinala o início do ritual é dada pelos bombos, organizando-se um novo cortejo até ao Largo do Padrão, onde serão lidos os testamentos da Comadre e do Compadre. Os Caretos seguem à frente, seguidos dos representantes dos grupos, e por fim os tocadores e os acompanhantes, população e forasteiros.

O testamento que fazemos às Comadre é deixar-lhes uma peça do burro, … Há partes que a gente gosta mais de dar, ou seja, as partes mais sexuais do burro. (Paulo Loureiro).

E é nesta época que vão ser descritos os defeitos, qualidades não. (Márcia Castro Almeida)13.

No Largo do Padrão foi montado um palco improvisado, onde os Compadres e as Comadres tomam os seus lugares dando início à leitura dos testamentos. O texto do testamento é composto por três partes; a introdução, composta por quadras alusivas ao ciclo do Carnaval e pela identificação da(o) testamenteira(o); as “deixadas” ou quadras dedicadas a todos os rapazes e raparigas solteiras e o final, alusivo ao fim da Comadre e do Compadre, anunciando a morte e rebentamento pelo fogo.

 

Com a fome que trazeis

Passais a vida a ladrar

Comeis a burra inteirinha

Nem a rata vai escapar.

Para manter a tradição

E o Carnaval não findar

Vamos repartir a burra

Para a boca vos calar.

O final de cada verso é sempre sinalizado com o rufar dos bombos. O texto é sarcástico, jocoso e vernáculo, recorrendo ao uso de alguns palavrões e abordando sobretudo os defeitos de carácter e de comportamento, tendo como acentuação a vertente sexual.

Tudo o que a gente diz é verdade, não estamos a inventar nada. Mas eles não têm dificuldade nenhuma em chamar nomes e dizer tu és isto e tu és aquilo. (Isabel Loureiro).

Nós às vezes também exageramos um bocadinho, tudo o que a gente diz não é verdade, às vezes temos de dizer assim umas coisas mais picantes para a gente que vem de fora. Eles só acham graça quando a gente diz coisas picantes mesmo. (Paulo Loureiro).

O texto dos Compadres acentua igualmente os defeitos de carácter e os comportamentos das raparigas, mas tem mais incidência nos aspectos da vida sexual, utilizando uma linguagem mais jocosa, recorrendo ao uso de palavrões e dando-lhe uma forma mais grotesca do que o das Comadres, mas essa construção verbal é construída conscientemente.

Como já estavam há espera

Está cá o fanfarrão

Para dar carninha a todas

E manter a tradição.

A todas vamos dar carne

Pois é isso que elas querem

Não importa de quem seja

Consolar-se elas preferem.

Os testamentos carnavalescos no uso de linguagem jocosa, nas injúrias e nos palavrões, que constituem as “deixadas”, remetem sempre para um paralelismo entre as características do beneficiário e o objecto de partilha. Para os nossos informantes o significado deste ritual é “mais um gladiar entre homens e mulheres”, elegendo como bem de partilha, o burro e a burra, num paralelismo masculino/feminino que acentua as relações sociais e simbólicas entre pares de opostos. A figura do animal parece adquirir um duplo significado: o de símbolo bíblico da humilhação e da docilidade e, a do corpo grotesco cómico decepado, quando valorizadas as partes sexuais, objecto de partilha.

É o Paulo já se vê,

Vai repartir a burrinha,

Fica com a melhor parte,

Essa será a ratinha.

A audiência, composta por pessoas de vários grupos etários, reage pelo riso ao desfilar dos versos, contrastando com a postura séria dos leitores. Os grupos de rapazes e raparigas vão partilhando entre si cumplicidades através da troca de olhares. Também é possível observar que o testamento dos Compadres provoca quase sempre mais gargalhadas na assistência que o das Comadres. Outro aspecto interessante nos textos é a referência a “manter a tradição”, presente em ambos os testamentos, reforçando por fixação e repetição a ideia de continuidade por incorporação, em que os ritmos da poesia oral são os mecanismos privilegiados de recordação (CONNERTON, 1999, p. 88). Após a leitura dos textos é organizado um cortejo, durante o qual a solenidade e contenção são assumidas pelos participantes que se dirigem para o sítio da Cruzinha, em Valverde, onde os bonecos serão consumidos pelo fogo. Os Caretos tomam a dianteira, seguidos dos Compadres e das Comadres. Os tocadores impõem uma batida lenta e compassada, como num cortejo fúnebre, seguidos pela população local e pelos forasteiros.

FIG. 9. Cortejo funebre* FIG. 10. Queima das mascotes*

FIG. 9. Cortejo funebre* FIG. 10. Queima das mascotes*

 

No lugar da Cruzinha, em Valverde, os bonecos armadilhados por efeitos pirotécnicos, vão rodopiando, produzindo ruído e chamas acompanhadas de sucessivas explosões e batidas dos tocadores, até ao estoiro final, provocando na assistência, sobretudo nas crianças, uma enorme alegria e algazarra que perduram na memória.

Recorda-me de gostar de ver o Compadre e a Comadre a andarem a rabiar num arame ou num pau. Logo a seguir ao Natal começávamos a brincar ao Carnaval. Marcou muito a nossa infância em Lazarim. (Norberto Carvalho)

Quando rebentam, para mim representa o encerramento do que de bom se tinha passado para trás, é a morte do Compadre e da Comadre, quer dizer que a partir desse momento a vida volta à normalidade, o Carnaval acaba ali. (Paulo Loureiro)

Em Lazarim a imolação dos bonecos assinala o término do ritual da festa carnavalesca, seguindo-se-lhe o “banquete”, espaço de confraternização entre os membros da comunidade e os forasteiros, através da comensalidade. O rito de passagem está concluído, mas o processo de reinvenção da tradição inseriu novos elementos à festa, o concurso de máscaras. O concurso é organizado pela Casa do Povo para premiar e incentivar os artesãos de máscaras de madeira, e manter a continuidade e a tradição. Este é um dos momentos da festa em que a audiência é essencialmente composta pelos membros da comunidade, artesãos e seus familiares. O júri do concurso é constituído por pessoas convidadas, exteriores à comunidade. Os prémios atribuídos contemplam a melhor máscara no seu conjunto (fato e máscara), a melhor máscara de madeira, a primeira máscara, e prémios de participação, como incentivo e reconhecimento pelo trabalho desenvolvido. Durante o concurso a maior parte dos visitantes dispersa-se pelos lugares onde são oferecidos os “banquetes”.

No Largo da Vila saboreia-se o caldo de farinha, e no Largo da Casa do Povo a feijoada. A história a que remete a origem do banquete comunitário celebra a abundância do grupo social, de tal forma que se permitem a convidar os vizinhos e os forasteiros para o seu banquete. Segundo Bakhtin (1969), o triunfo do banquete é universal, representando o triunfo da vida sobre a morte, sendo nesse aspecto, o equivalente da concepção e do nascimento, em que o corpo vitorioso absorve o corpo vencido e se renova. Desta forma, o Carnaval de Lazarim remete-nos para um contexto rural de formação cristã, e o seu ritual para uma pândega libertadora, onde rapazes e raparigas cumprem o seu papel de herdeiros de uma paródia burlesca.

PARA MANTER A TRADIÇÃO

Ao elegermos como objecto de estudo a festa de terça-feira gorda, recriada como modelo de autenticidade e tradição, correspondemos às expectativas dos organizadores do evento, relativamente ao público-alvo. Os habitantes de Lazarim, sobretudo os agentes culturais e participantes, sabem que a festa atrai uma diversidade de visitantes, fascinados pelas festas populares no mundo rural, para além de investigadores nacionais e estrangeiros, de estudantes universitários e da comunicação social. A afluência de forasteiros constitui motivo de orgulho para a população, justificando que antropólogos e jornalistas sejam reconhecidos como importantes aliados, pelos seus trabalhos contribuírem para a divulgação e legitimação da tradição, e para o prestígio da comunidade à escala nacional e global. Os homens e mulheres que investem persistentemente na transmissão de rituais do passado têm consciência da sua importância para a sua construção identitária, como testemunha Norberto Carvalho:

A terça-feira de Carnaval queríamos conservar, porque é uma identidade própria é alguma coisa que faz parte da nossa identidade e que nos dá algum valor. Somos reconhecidos também por isso. Estamos a tirar alguma riqueza social e intelectual deste tipo de eventos e vamos aproveitá-los dando conhecimento do que se passa aqui em Lazarim ao País e ao Mundo, para deixarmos uma referência para as pessoas que vierem mais tarde.

O discurso institucional justifica as razões que levaram à reinvenção da tradição como património cultural, e a sua importância para a projecção da comunidade. Apesar de haver cada vez menos jovens que garantam a continuidade das práticas carnavalescas em Lazarim, tudo indica que o interesse dos poucos que restam é cada vez maior. Este fenómeno foi igualmente identificado por Paula Godinho (1995), relativamente aos Caretos do Nordeste Transmontano, que após um interregno de alguns anos, e querendo retomar as práticas carnavalescas, recorreram às memórias dos mais velhos, para reconstituir ou “reinventar a tradição”. Além disso, tal como os intervenientes na construção da Festa dos Rapazes, também os jovens de Lazarim “se orgulham de ter presentes na sua festa investigadores, antropólogos portugueses e estrangeiros, museólogos e representantes da comunicação social” (GODINHO, 1995, p. 88). A divulgação da festa, sobretudo nos meios de comunicação social, serve para reforçar a identidade colectiva, projectando a comunidade local no mundo global.

 

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FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

* Fotos da autora realizadas durante o trabalho de campo

FONTES ORAIS:

Adão de Castro Almeida

Afonso de Almeida e Castro

Agostinho Ramalho

Amândio de Castro Lourenço

Elvira Fernandes

Hélio Fernandes

Isabel Loureiro

Joaquim Simões

Joaquim de Almeida Lino

José António da Silva Costa (Costinha)

José Lourenço Rua

Laurinda Vaz Lino

Márcia de Castro Almeida

Maria de Lurdes Castro Lourenço

Norberto Castro Carvalho

Paulo Fernandes

Paulo Loureiro

 

FONTES DOCUMENTAIS

Biblioteca Municipal de Lamego

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Hucitec, Annablume Editora, 5ª Edição. 2002

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Algés: Difel. 2001.

CONNERTON, Paul. Como as Sociedades Recordam, Oeiras: Celta Editora. 1999.

COSTA, Gonçalves M. 1977. História do Bispado e Cidade de Lamego, Vol. I. Lamego. 1977.

CORREIA, Alberto. Máscaras de Carnaval em Lazarim. Lamego: Edição da Câmara Municipal de Lamego. 2003.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas, Rio de Janeiro: Zahar Editores. 1978

GODINHO, Paula. 1995. “Ser rapaz e ir à Festa”, in Actas do Congresso, A Festa Popular em Trás-os-Montes. Bragança, pp. 81-92

HALBWACH, Maurice. A Memória Colectiva. São Paulo: Centauro Editora. 2004.

HOBSBAWM E. & T. RANGER. The Invention of the Tradition. Cambridge: Cambridge University Press. 1983.

LÉVI-STRAUSS, Claude. A Via das Máscaras. Lisboa: Editorial Presença. 1981.

OLIVEIRA, Ernesto Veiga de. Festividades Cíclicas em Portugal, Lisboa: Publicações D. Quixote. 1984.

PINELO TIZA, António. 1995. “O Mascarado, suas funções nas festas do Inverno”, in

SCOTT, James C. Los Dominados y el Arte de la Resistencia. México: Editorial Txalaparta. 2003.

TURNER, Victor. “Are There Universal Performances in Mito, Ritual and Drama?”. Richard Schechner e Willa Appel (ed.) By Means of Performance, Intercultural studies of theatre and Ritual. Cambridge University. 1990.

VAN GENNEP, Arnold. Os Ritos de Passagem. Petrópolis-Brasil: Editora Vozes. 1978

 

[1] Dulce Simões integra a Associação Mural Sonoro, doutorada em Antropologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH/NOVA) e bolseira de Pós-Doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). É investigadora integrada no INET-md e colaboradora do Instituto de História Contemporânea (FCSH/NOVA). É membro fundador do Grupo de Estudios Sociales Aplicados da Universidad de Extremadura (GESSA) e da Red(e) Ibero-Americana Resistência e(y) Memória (RIARM). Realiza investigação em Portugal e Espanha sobre fronteiras, movimentos sociais, usos políticos da memória e práticas da cultura. Participa em projectos de investigação internacionais e multidisciplinares

1  Agostinho Ramalho nasceu em Bigornes em 1964. Os pais eram naturais de Lazarim. É Pároco de Lalim e de Lazarim há cinco anos, onde reside. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 3 de Março de 2003.

2  Norberto Carvalho nasceu em Lazarim em 1961, filho de lavradores e comerciantes. É comerciante e o actual presidente da Junta de Freguesia de Lazarim. Pertenceu ao grupo dos Compadres. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 3 de Março de 2003.

3  José Rua nasceu em Lazarim em 1920 e frequentou o Ensino Primário. O pai foi Juiz de Paz em Lazarim. Dedicou-se à agricultura e aos 24 anos foi trabalhar para Lisboa, na empresa ROMAR, mas regressou a Lazarim para desempenhar as funções de encarregado geral de obras na Câmara Municipal de Lamego, de onde se reformou. Ainda pertence à Tuna de Lamego. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 2 de Março de 2003.

4  Depoimento de Afonso Almeida e Castro. Notas de campo de Março de 2004.

5  Amândio Lourenço nasceu em Lazarim em 1953, filho de lavradores. Tem o Curso Geral de Administração e Comércio é Funcionário Público na Segurança Social de Lamego. Foi Presidente da Junta de Freguesia de Lazarim entre 1983 a 2002. É presidente da Casa do Povo de Lazarim. Excerto da entrevista realizada em sua casa, em Lazarim, a 2 Março de 2003.

 

6  Elvira Fernandes nasceu em Lazarim em 1923, filha de lavradores. Em 1944 casou com José Rua e teve 9 filhos, mas só seis chegaram à idade adulta. Trabalhou no grupo familiar e é doméstica. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 2 de Março de 2003.

 

7  Afonso Almeida e Castro nasceu em Lazarim em 1921, filho de lavradores. O pai foi Regedor em Lazarim. Em 1944 emigrou para o Brasil, trabalhou na pesca, e viveu em Caju, no Rio de Janeiro, onde vivem actualmente os filhos e netos. Regressou a Lazarim em 1970 e dedicou-se à construção de máscaras. É o mais antigo artesão de máscaras de madeira. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 3 de Março de 2003.

 

8  Joaquim Simões foi professor de Educação Visual e Tecnológica (EVT) na Telescola de Lazarim durante 23 anos. Vive em Lamego e é Subdirector da região norte da Telescola. Foi responsável pela recuperação das práticas carnavalescas nas escolas de Lazarim. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 4 de Março de 2003.

 

9  Isabel Loureiro nasceu no Lazarim em 1978, mas migrou com os pais para Lisboa, onde vive actualmente. É escriturária de profissão. Faz parte do grupo das Comadres e todos os anos se desloca a Lazarim para participar na feitura do testamento. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, dia 4 de Março de 2003.

 

10  Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 3 de Março de 2003.

 

11  Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 3 de Março de 2003.

 

12  Paulo Loureiro nasceu em Lazarim em 1977. É filho de comerciantes locais e empresário no ramo de lavandarias em Lamego. Faz parte do grupo dos Compadres desde os 15 anos de idade. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 3 de Março de 2003.

13  Márcia Castro Almeida nasceu em Lazarim em 1981, e é empregada de comércio em Lamego. Faz parte do grupo das Comadres. Excerto da entrevista realizada em Lazarim, a 3 de Março, de 2003.


 

 

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