por Eugénio Lisboa*

Num vigoroso texto – como costumam ser os seus... – publicado por Guilherme Valente, na coluna “Opinião”, do suplemento “Mil Folhas” , do Público, de 10 de Janeiro, o inestimável editor da Gradiva levanta (mais uma vez), em tom polémico e fervilhante de indignação, o problema da “cultura [exclusivamente] literata”, que condicionaria e dominaria os meios da comunicação social e a “actividade cultural portuguesa, limitando a sua diversidade.” A reacção de Guilherme Valente tinha, como motor de arranque próximo, o facto de o inquérito do “Mil Folhas”, de 3.1.2004, feito a 29 personalidades sobre “As leituras de 2003”, ter incidido sobre “22 literatos, uma filósofa, uma socióloga e cinco cientistas”. De aqui concluía o editor de tantas e excepcionais obras de divulgação científica “o domínio asfixiante da cultura literata e dos intelectuais literários no suplemento de livros de um dos mais importantes jornais de referência portugueses.” Conclusão justa. Mas outras conclusões igualmente justas e pelo menos tão graves se poderiam tirar: por exemplo, a da completa falta de apetência pelo pensamento científico (e, em grande parte, também pelo filosófico) da maior parte dos nossos literatos. Com consequências visíveis e, já agora, “asfixiantes”, para quem tem que os ler com alguma regularidade... No seu livro, hoje clássico, Souvenirs d’enfance et de jeunesse, Renan, diz, a certa altura, com um triunfalismo só em parte justificado: “O mais vulgar rapazinho de escola está actualmente familiarizado com verdades pelas quais Arquimedes teria sacrificado a sua vida.” Talvez isto fosse verdade – não sei – para os alunos franceses do tempo em que Renan escrevia. Julgo que o mesmo se não poderia dizer, hoje, de tantos dos nossos literatos que apenas ouvem – quando ouvem – “falar de” coisas de ciência, cujo sentido profundo de todo lhes escapa. O que é pena, porque o rigor e a cautela – e o cuidado de “ir verificar” - a que a metodologia cientifica obriga impedi-los-ia de tanta afirmação dogmática, sem perspectiva e tantas vezes francamente disparatada. “A ciência”, dizia Adam Smith, “é o grande antídoto contra o veneno do entusiasmo e contra a superstição.” Este “entusiasmo” tem a conotação pérfida que lhe dão os britânicos e coincide muito aproximadamente com aquela “coragem de afirmar” que o nosso Eça escalpelizava e que é tão frequentemente usada pelos nossos literatos em transe de descoberta de um novo “talento incontornável”. Observava o grande cientista inglês Thomas Henry Huxley que “a ciência não é outra coisa senão bom senso treinado e organizado.” Ora é precisamente uma boa dose de bom senso – bem treinado e bem organizado – que falta, tantas vezes, a tantos dos nossos avaliadores literários (e criadores literários...), aflitivamente desprovidos, por isso mesmo, de um equipamento de travagem que lhes modere o excesso de...entusiasmo.

Uma boa “passagem” pelo universo da ciência, pelas exigências da ciência, pelo rigor e cautela, repito, que a ciência requer e recomenda daria ao discurso literário de quem o produz outra nitidez, outra transparência, outro sabor – e outro valor... Tenho, a propósito de Régio, como ensaísta e crítico literário, chamado a atenção para a cautela com que levantava uma hipótese e longamente a sujeitava a um contraditório cerrado e implacável. Era capaz de ruminar uma hipótese de trabalho, uma ideia, durante anos, sempre suspeitoso de um algo que poderia demoli-la - tão ao contrário daqueles literatos quimicamente puros que, ao primeiro vislumbre de uma ideia ou do fantasma de uma pseudo-ideia, a convertem impetuosamente em teoria inamovível e, logo a seguir, em dogma a aceitar, sob pena de execução sumária. “Toda a ciência tem como ponto de partida um cepticismo, contra o qual se eleva a fé”, dizia, com alguma perfídia, André Gide – e, por outras palavras, disse-o também esse filósofo da ciência que foi Karl Popper.

A ciência ensina o respeito pelos factos, e, quando estes contradizem a bonita hipótese, esta cede o passo a outra que eventualmente os acomode melhor. A ciência, para bem progredir, exige humildade e repele a arrogância e o contentismo fácil. Miguel de Unamuno, apesar da sua desesperada fome de imortalidade, imortalidade que os factos não confirmam facilmente, não hesitou em escrever estas palavras que aqui deixo como tónico incentivador aos nossos “entusiásticos” literatos: “A ciência é a mais intima escola de resignação e humildade porque nos ensina a inclinarmo-nos diante dos factos aparentemente mais insignificantes.” Mas a ciência não se limita a uma lisinha humildade perante os factos: procura, na linguagem em que se exprime, a maior simplicidade e transparência, rejeitando, com vigor, a opacidade em que se revêem, com deleite, os cultivadores de uma falsa “profundidade”. Já tenho visto literatos que buscam a opacidade como um valor precioso a resguardar e promover. Suspeito, sempre, nestes casos, de fraude: a opacidade deliberada esconde sempre uma grande falta de ideias com pernas para andar. Dizia o filósofo americano, Emerson, que “é prova de alta cultura dizer as coisas de maior monta da forma mais simples.” Só os parolos e os provincianos temem a simplicidade e buscam os torturados e invios caminhos da opacidade. Para eles, inovar, “ser avançado”, pisar território novo implica uma escrita tortuosa, “difícil”, opaca e apetecidamente indigerível. Como se enganam! O romancista inglês, George Meredith, no seu romance The Ordeal of Richard Feverel diz ou faz dizer o seguinte, que merece ser meditado pelos “souteneurs” do turvo e do opaco: “A perfeita simplicidade é inconscientemente audaciosa.” E foi por isso que um dos maiores físicos do século XX, Ernest Rutherford, afirmou com energia e acinte, que “uma boa teoria científica deve poder ser explicada a uma empregada de bar.”

Um mundo parece, de facto, separar os modos de estar no mundo – e no pensamento...- dos literatos e dos cientistas. Um mundo parece, de facto separar as “duas culturas”, como lhes chamou C. P. Snow, no seu ensaio célebre: a dos humanistas que não fazem ideia nem do significado, nem da importância do segundo princípio da termodinâmica, e a dos cientistas que nunca leram o David Copperfield, nem o Middlemarch, nem The Waste Land, ou, para nos virarmos para Portugal, Camilo Pessanha, ou Pessoa, ou Pascoais, ou Aquilino, ou Régio (ou Camões, ou Bernardim, ou Florbela...). Este fosso entre as “duas culturas”, com tendência a agravar-se (agudizar-se), devido à aceleração da produção criativa, a ritmo quase alucinante – acabará por  constituir-se em perigo iminente de incomunicabilidade – e suas previsíveis consequências  - entre dois extractos importantes de humanidade, que se confrontam sem hipótese de diálogo. Com, além disso, forte prejuízo de ambas as partes: cientistas, porque lhes escapa o canto profundo que emerge da poesia de Keats, de Baudelaire ou de Sophia, os humanistas, porque lhes foge a poesia igualmente profunda que se esconde (pouco) na demonstração de um teorema de geometria ou numa elegante e fulgurante lei da física. “A verdade” observava Herbert Spencer, “é que aqueles que nunca se ocuparam da ciência não tiveram acesso à décima parte de poesia que os rodeia”. 

Gostaria, no entanto, de fazer uma observação, a bem da verdade: pelo menos, a nível de excelência, mas não só, parece hoje mais fácil encontrar, entre nós, cientistas que leram e amaram Eça, Pessoa, Régio, Sophia, Eugénio de Andrade, Ruy Belo ou David Mourão Ferreira, do que literatos que se tenham mostrado sensíveis à poesia da matemática ou da física. O espírito de abertura mostra-se mais do lado da ciência do que do lado das humanidades: é corrente ouvir escritores ou professores de literatura, não só confessarem que odeiam as ciências, mas, o que é pior, parecerem regozijar-se com isso! Que digo?: gabarem-se disso, exibirem essa inapetência como um troféu, essa incapacidade como um título de glória. De aí, penso eu, a legitimidade do grito de indignação de Guilherme Valente, que, de certo modo, faz eco a uma pergunta-desabafo do grande químico inglês, Sir George Porter, Prémio Nobel em 1967: “Deveremos nós enfiar a ciência pelas goelas abaixo daqueles que não têm por ela qualquer gosto? Será nosso dever arrastá-los, esperneando e aos gritos, para dentro do século vinte e um?” A esta pergunta violenta e deliberadamente extremista, respondia o grande químico: “Receio que sim.” Sir George exagerava: enfiar seja o que for pelas goelas abaixo de seja quem for não é processo eficaz de se criar um gosto duradouro por aquilo que assim se engole. Mas o exagero era puramente retórico, pretendendo enfatizar um desespero com fundamento.

Não sei se era qualquer coisa como isto que o editor da Gradiva pretendia dizer. Mas foi o que me apeteceu escrever, a propósito do seu texto no “Mil Folhas”. Nenhum de nós, nem o editor de Gradiva, nem eu, quisemos propor apenas o triunfo do primário e do óbvio. Até porque, como pode ser nada primária, como pode ser infinitamente subtil e de complexas consequências a sondagem feita pela linguagem mais simples e mais transparente! Realmente, como é belo e não opaco o binómio de Newton. E não será tão belo como o texto de Newton aquele com que Voltaire o celebrou nas Lettres Philosophiques? 


*texto enviado pelo autor à Mural Sonoro para republicação, publicado originalmente na revista LER.

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