[1] por Viviane Mosé
[2] fotografia Orlando Farya
I
Tudo explode em pedaços
Aos poucos, tudo cai
Antigas ordens despencam
Sobre cabeças assoberbadas
Que já não enxergam nada
Além
Das telas de suas janelas
Sem mundo
Nem mesmo há mundo
Senão rastros
Finamente compostos
Fórmulas que geram castas
Cada vez mais nada
Nem ninguém
Signos de um mundo que desaba
O tecido social, o corpo
Da Terra
Tudo desaba
Também por dentro
A guerra
De cada um consigo
Em um luto abstrato
E sem abraço
Pessoas padecem
II
Sem nada do lado de fora
Em gestos
Cada vez mais dentro
Em confinamento
O corpo
Sem nexo
Sem sexo
O corpo perplexo
O corpo parado
Lá fora o pânico
Do teto que todo dia
Desaba
A terra furada de covas
Coletivas
Para desafogar as filas
Falta ar
Falta ar
É preciso respirar
O corpo de dor agora ruge
Cada célula espera
Dias melhores
Que não chegam
Os poros expostos
Em suas antigas feridas
Ardem
(Porque a vida arde)
A vida urge
No abismo da morte o amor
Amor é o que adere
Os poros um a um
Formando este tronco
De furos
Somos feitos de falhas
Vazados por micro vazios
Mas temos medo
De tanto mundo
Por dentro
Medo do peito aberto
Medo da mão aberta
Medo dos pés
Por caminharem
Muitas vezes sem chão
Falta ar
Falta ar
É preciso respirar
Fora da bolha
Abrir os pulmões ao vento
A mão os poros o coração
Enquanto há tempo
Ainda estamos aqui
III
Se estamos aqui há algo
Ainda
A transbordar do peito
Feito um rio
Sedento de mar
Estamos aqui, ainda
A matar mosquitos
A rondar os restos
Dessa guerra tão antiga
Mas ainda tão viva em nós
Permanecemos sós
Juntando pedaços do que não foi
Se ainda vibra
Algo nestes retratos amarelados?
Se ainda há vida
Nestes potes de dores
Escondidas
Sob camadas e camadas
De desamor?
Ainda estamos aqui
Entre restos e sempre em risco
De contaminação
Da nuvem sombria
Do amor estagnado em rancor
Ou ainda há amor
Ainda há
Algo a brotar
Deste corpo tão antigo?
para Revista Mural Sonoro 2022
[1] Viviane Mosé (Vitória, 16 de janeiro de 1964) é poetisa e filósofa.
[2] Orlando Farya é artista visual, doutorado pela FBAUL, docente do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo.
MARGENS, exposição de fotografia, pode ser visitada até ao fim do ano no AH!, espaço multiusos da Associação Mural Sonoro, Calçada de Santana 169, Lisboa.