Hoje é um grande dia para nós.
A ideia de criação de uma revista digital trimestral arboresceu no início da pandemia, fruto do recolho prolongado, primeiro auto-imposto, depois obrigatório. A ela juntaram-se muitos ramos que aprecio de diferentes formas, tons e feitios.
O que irá encontrar em cada número são autores que, de maneiras distintas, se foram cruzando com projectos da Associação Mural Sonoro e da plataforma Mural Sonoro, sobretudo com os seus assuntos de fundo.
Por um lado, pareceu-nos uma forma feliz de celebrar dez anos de existência da plataforma Mural Sonoro, repensando daqui em diante outros modelos de comunicação e divulgação de conhecimentos.
Continuamos a privilegiar a relação entre os estudos produzidos dentro da academia e o conhecimento empírico, de quem faz acontecer (as artes). Sendo para a maioria dos autores que aqui publicam as duas realidades coexistentes.
Esta revista actua em quatro linhas fundamentais: o género, o racismo, as artes e a cultura. Procura estabelecer uma ligação entre áreas do saber e das práticas culturais e artísticas (história contemporânea, sociologia, antropologia, história da arte, musicologia, jornalismo, pintura e literatura, videoarte, história oral) fomentando sempre a inclusão de perspectivas e reflexões.
A pandemia alterou radicalmente os nossos hábitos de produção, de consumo e de recepção. O universo artístico e o universo cultural foram profundamente lesados. Por outro lado, a peste inesperada trouxe à superfície vulnerabilidades, não só destes sectores como as nossas fraquezas enquanto sociedade, mas simultaneamente uma contumácia generalizada reflectida nas redes de solidariedade criadas, em momentos únicos de partilhas e de reflexões.
Portugal, é um dos poucos países onde ainda estamos a desbravar o terreno da discussão pública sobre temas que são matéria de estudo e de debate sério há mais de duas décadas em diversos países europeus e não europeus. O problema em falar abertamente sobre a colonização, parte integrante da sua história, tem vindo a desaguar inevitavelmente na dificuldade em falar do tema do racismo, herdeiro do processo colonial português, de forma séria e informada, na comunicação social mas também no campo das artes e da cultura (...) in apresentação Revista digital Mural Sonoro Nr 1 [1]
Neste primeiro número
A historiadora Eunice Relvas explica-nos como há 102 anos durante a pandemia de pneumónica não acabaram os espectáculos em Lisboa.
A investigadora do Centro de Estudos Sociais Dora Fonseca questiona se o Teletrabalho é um trabalho digno para todos.
João Silva Jordão, investigador na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, mostra-nos como o Hip-Hop se tornou um dos domínios musicais mais lucrativos em algumas partes do mundo – numa força cultural dominante –, mas que sempre foi uma força visionária: o clássico de 1982 de Grandmaster Flash and the Furious Five, The Message, é, segundo o autor, «um manifesto da experiência urbana relevante até aos dias de hoje, assim como uma narrativa na primeira pessoa de problemas urbanos endémicos». O primeiro verso da música “broken glass everywhere” foi ouvido pela primeira vez apenas alguns meses após a publicação do artigo “Broken Windows”, que mudou de um modo significativo a política de planeamento urbano, cuja influência inspirou um policiamento urbano mais rígido assim como abriu o caminho para formas de gentrificação mais agressivas.
O músico e musicólogo Manuel Pedro Ferreira deixa-nos um testemunho corajoso num artigo intitulado “A Pandemia no quotidiano de um Músico”.
O curador Manuel Pessôa-Lopes explica-nos porque é que o Adamastor é de todos e para todos.
O escritor Nuno Camarneiro escreve-nos sobre o seu processo criativo, possíveis cruzamentos entre história contemporânea e ficção, na peça “Eu, Salazar”, um desafio que aceitou com o actor Ricardo Vaz Trindade, e em colaboração com a companhia de Coimbra “Teatrão”.
O historiador Paulo Jorge Fernandes traça-nos importantes perspectivas sobre percepção, acção, reacção num artigo sobre humor visual, cartune editorial e protesto na América de Trump.
Pedro Aires Oliveira, historiador e director do Instituto de História Contemporânea, descreve-nos as muitas apropriações de uma canção, dando como exemplo uma das mais conhecidas de Springsteen, explicando como elas são, em si mesmas, um fenómeno desconcertante que nos ajuda a ler a história política americana das últimas décadas.
Pedro Schacht Pereira, professor numa universidade americana, explica-nos porque tem «a pele virada do avesso» deixando-nos ainda uma galeria de imagens que fotografou durante as sucessivas manifestações nos Estados Unidos, e que marcam o actual momento de reacção colectiva ao racismo institucional e estrutural após a morte de George Floyd.
O historiador afro-americano Wynton Guess analisa o impacto do covid-19 na indústria das artes e procura analisar como a crise económica nos EUA e o seu subsequente resgate podem afectar as estruturas de financiamento.
Há ainda para ler os poemas de FernandoNobre, Marta Domingos, Leonel Ventorim, Pedro Branco, Regina Guimarães, Rui Almeida e Sandra Baptista, a conversa com Sérgio Godinho, as sugestões da Associação Mural Sonoro para visitar no portal como o podcast sobre Mulheres na Música, o vídeo da entrevista sobre racismo estrutural nos EUA com Wynton Guess e a exposição TRUST de Paulo Moreira, visitável até ao dia 30 de Setembro na nossa plataforma.
Boas leituras, sessões e audições.
Soraia Simões de Andrade, coordenação revista Mural Sonoro.
Actualização: Fruto da actual situação pandémica a Revista Mural Sonoro terá sete números no digital e um número anual impresso (o primeiro em Março de 2021).