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Terra dos Pássaros: a permanência de elementos da contracultura na produção de Toninho Horta nos anos de 1970, por Thaís Nicodemo e Rafael Santos

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Terra dos Pássaros: a permanência de elementos da contracultura na produção de Toninho Horta nos anos de 1970, por Thaís Nicodemo e Rafael Santos

por Thaís Nicodemo e Rafael dos Santos

 

 

RESUMO

Esse artigo apresenta uma análise da produção do compositor e instrumentista Toninho Horta, com enfoque em sua atuação ao longo dos anos 1970 e no processo de elaboração de seu disco inaugural, Terra dos Pássaros, lançado de forma independente, em 1979. Tendo como ponto de partida a MPB e os festivais da canção, em fins dos anos 1960, em um contexto marcado pelo regime autoritário e pela consolidação da indústria cultural, procuramos discutir a permanência de elementos ligados à contracultura na produção de Toninho Horta, perceptíveis em seu discurso, em seu processo criativo e no conteúdo de suas canções, durante os anos 1970. Levamos em consideração a correspondência entre sua concepção musical, ligada a uma dimensão lúdica e "informal", com outras produções, como a do chamado Clube da Esquina e do coletivo de poesia Nuvem Cigana, com os quais Toninho Horta estabeleceu relações. O estudo dessas produções pode contribuir para a compreensão de transformações da canção popular brasileira, durante os anos 1970.

Palavras-chave: MPB; Toninho Horta; Clube da Esquina; guitarra; violão; contracultura.

ABSTRACT

This article presents an analysis of the production of the composer and player Toninho Horta, with emphasis on his performance throughout the 1970's and on the process of elaboration of his inaugural record Terra dos Pássaros, which was released independently in 1979. Starting from MPB (Brazilian Popular Music) and the song festivals of the late 1960's, in a context marked by the politics of an authoritarian regime and by the consolidation of the cultural industry, we have attempted to discuss the permanence of elements of counterculture in the production of Toninho Horta. These elements were noticeable in the artist's creative discourse and in the content of his songwriting during the 1970's. We have taken into account the correspondence between his musical conception, linked to a ludic and informal dimension, and other productions such as Clube da Esquina and the poetry collective Nuvem Cigana, with which Toninho Horta established relationships. The study of these production shall contribute to the understanding of the transformations of Brazilian popular song during the 1970's.

Keywords: Brazilian Popular Music; Toninho Horta; Clube da Esquina; eletric guitar; acoustic guitar; counterculture.

 

Thaís Lima NicodemoI; Rafael dos SantosII

IUnicamp, Campinas, SP. thaisnicodemo@gmail.com
IIUnicamp, Campinas, SP. rdsantos@unicamp.br

1- Introdução

Esse artigo1 tem como ponto central o estudo das canções do primeiro disco autoral de Toninho Horta, Terra dos Pássaros2, gravado de forma independente. Buscamos, desse modo, refletir sobre aspectos relativos a seus hábitos composicionais e à sua atuação no cenário da música popular brasileira, durante os anos 1970. Esse foi um período de intensa produtividade artística na trajetória profissional de Toninho Horta e, também, um momento de transição entre sua atividade como músico acompanhador e artista solo.

De modo geral, percebemos que em sua prática musical, tanto como compositor, quanto como instrumentista, há o predomínio de determinados valores ligados à contracultura, tais como a artesanalidade, a espontaneidade e a informalidade. Discutiremos sobre a permanência desses aspectos em sua produção na década de 1970, procurando trazer a lume o panorama de transformações que perpassam a canção popular brasileira desse período, em meio a um regime político autoritário e à consolidação da indústria cultural. Devido ao estreito vínculo que Horta estabeleceu com uma produção cancional consolidada em torno dos festivais televisivos, propomos, primeiramente, analisar particularidades dessa relação, assim como de seu contexto.

 

2- Toninho Horta nos festivais da canção X MPB "engajada"

Toninho Horta despontou profissionalmente em fins dos anos 1960, como guitarrista e violonista, em Belo Horizonte, sua cidade natal. Sobressaiu-se como compositor ao se apresentar em festivais da canção promovidos por emissoras televisivas. Após ter concorrido com duas composições3 no II Festival Internacional da Canção (FIC), da TV Globo, em 1967, o artista ampliou sua projeção, visto que, em um curto intervalo de tempo, outros intérpretes, como Joyce, Roberto Menescal e Nana Caymmi, começaram a gravar suas canções e que logo passou a ser requisitado para atuar como instrumentista em discos e apresentações.

Desde meados dos anos 1960, os festivais da canção foram um dos principais polos de difusão da música popular brasileira, que passou então a ser designada MPB e, como assinala NAPOLITANO (2007, p.94), tornaram-se "o espaço de convergência entre os interesses do mercado e as tarefas ideológicas assumidas pelos músicos engajados e nacionalistas". O ideário nacional-popular que orientava a esquerda4 transpunha-se de certa forma para o conteúdo poético-musical das canções, refletindo a busca pela construção de uma identidade nacional através de uma arte participante. O repertório de canções promovido nos festivais passou, também, a desempenhar o papel de porta-voz da resistência ao regime autoritário5. Esses aspectos coexistiam com a ascensão de uma cultura de consumo, resultante da consolidação da indústria cultural como um todo, em meio ao processo de internacionalização do capital no país, impulsionado pelo governo militar. A MPB se articulou, portanto, em um jogo ambíguo, no qual representava os ideais de oposição e conscientização política através da cultura, ao mesmo tempo em que se firmava como um produto privilegiado no mercado de bens simbólicos.

Embora participasse de festivais, concorrendo com canções de sua autoria, Toninho Horta mostrava-se aparentemente avesso às questões político-ideológicas que balizavam a MPB. É possível notar essa característica tanto no conteúdo de suas composições desse período, como Litoral (Toninho Horta/ Ronaldo Bastos) e Yarabela (Toninho Horta), nas quais prevaleciam temas ligados à natureza e ao amor, com referências musicais preponderantemente bossanovistas, assim como em seu discurso: "(...) naquela época, tinha essa efervescência cultural, uma coisa política. Política eu nunca dei bola. Até naquela em 1968, que teve a Passeata dos Cem Mil. 'Aí, Toninho, vai na passeata?' 'Não, vou dormir' "6. Sua atitude de "descaso" pode ser relacionada com as reverberações da contracultura no Brasil, que ecoavam, principalmente, através do surgimento de uma movimentação cultural jovem, contrária ao "universo da cultura canonizada oficial, e dos comportamentos socialmente sancionados" (RISÉRIO, 2005, p.29). A contracultura repercutiu em diversos setores da produção cultural, como na imprensa alternativa, com os jornais O Pasquim, Flor do Mal e Bondinho, no Cinema Novo, nas artes plásticas, em obras de Hélio Oiticica e Cildo Meireles, na literatura, na música, com os grupos Os Mutantes e os Novos Baianos.

Essas produções tinham em comum a busca por uma "nova forma de pensar o mundo", rompendo com "a lógica racionalizante da esquerda e da direita (HOLLANDA, 2004, p.78). Conforme destaca RISÉRIO (2005, p.26), o movimento contracultural se distinguia pelo anticapitalismo, pelo anti-intelectualismo, pelo antitecnicismo e pela recusa aos padrões de bom comportamento social. Nesse sentido, a contracultura refletiu, em escala mundial, uma reação às condições impostas pelas transformações estruturais ligadas ao desenvolvimento capitalista e ao processo de modernização. Assim, a recusa explícita da fala de Toninho Horta, como aparente "alienação", não deixa de ser uma forma consciente de assumir um posicionamento crítico, opondo-se em relação aos espectros significativos da MPB.

No que se refere ao círculo dos festivais, a produção tropicalista trouxe à tona os ideais da contracultura e dos movimentos jovens que irradiavam dos EUA e Europa. O tropicalismo sinalizava, também, a crise do referencial nacional-popular que norteava a MPB, incorporando, sobretudo por meio de procedimentos satíricos, paródicos e alegóricos, a crítica ao discurso populista, além de elementos da cultura de massa (HOLLANDA, 2004, pp.63, 64), repudiados então pela esquerda anti-imperialista.

A crença nos ideais de transformações sociais e políticas se contrapunha a um distanciamento cada vez maior do acesso direto aos segmentos populares da sociedade, ao mesmo tempo em que os sinais de "engajamento" da MPB se diluíam em seu caráter de produto de consumo. O questionamento em relação a esses aspectos crescia, também, à medida em que se acentuavam o autoritarismo e a institucionalização do governo militar, agudizados com o recrudescimento da repressão após o decreto do AI-5, em 1968. Como aponta HOLLANDA (idem p.99), surgia, nesse período, uma geração que passava a recusar "os pressupostos do engajamento populista e vanguardista e mais exposta à influência pós-tropicalista, sem contudo identificar-se com essa tendência". Podemos considerar Toninho Horta um personagem chave desse processo, que transitou à margem do "sistema", engendrando uma produção de caráter "alternativo", atrelada a um conceito mais artesanal de criação, como veremos mais adiante. Essa característica se torna mais evidente ao longo dos anos 1970, com sua participação no LP Clube da Esquina (Milton NASCIMENTO, Lô BORGES, 1972), assim como em outros discos lançados por Milton Nascimento e, principalmente, no processo de elaboração de seu disco inaugural, Terra dos Pássaros.

 

3- Milton Nascimento e o Clube da Esquina nos anos 1970

No final da década de 1960, Milton Nascimento, convidou Toninho Horta para acompanhá-lo, tocando violão e guitarra, no disco Milton Nascimento (Milton NASCIMENTO, 1969), além de ter gravado seu samba Aqui, Ó! (Toninho Horta e Fernando Brant). No decorrer de toda a década seguinte, Horta atuou como instrumentista em shows e discos desse artista e teve canções de sua autoria gravadas por ele. Em 1972, Horta participou da gravação do álbum Clube da Esquina, que simboliza um dos marcos iniciais de uma proposta coletiva de criação, promovida por Milton Nascimento. O nome de duas canções que esse último escreveu em parceria com Lô e Márcio Borges, e de dois discos - Clube da Esquina e Clube da Esquina nº2 - foi utilizado com o passar dos anos para se referir a um grupo de compositores, arranjadores, letristas, instrumentistas e intérpretes, que produziu um significativo repertório de canções ao longo da década de 1970. Musicalmente, o Clube da Esquina incorporou as novas tendências trazidas pelo tropicalismo, assimilando diferentes vertentes culturais como o rock, o rock progressivo, a bossa nova, o psicodelismo, a sonoridade orquestral, a música mineira de origem africana, a música sacra e a música hispânica.

A concepção conjunta do álbum Clube da Esquina se deu desde sua pré-realização, durante uma temporada em uma casa na praia de Piratininga (Niterói, RJ), onde seus integrantes compunham e ensaiavam as canções, até sua gravação nos estúdios da EMI-Odeon. Apesar de ter permanecido por apenas um dia na casa de praia, durante as gravações, Toninho Horta tocou guitarra, violão, percussão, contrabaixo e cantou no coro de algumas canções. O artista esclarece que durante as gravações havia instrumentistas que estavam no bar, ou que ainda estavam dormindo e, assim, os músicos presentes no estúdio tocavam seus instrumentos principais e, também outros, conforme a necessidade do momento7. Como é possível notar nessas descrições, o processo de criação do Clube da Esquina é ligado à características contraculturais, relativas à grande importância conferida ao senso coletivo de elaboração musical e à espontaneidade que a envolvem. A atividade musical desse grupo se relaciona, de maneira geral, a uma dimensão lúdica, que foge do modelo mercadológico de produtividade, conforme observa GARCIA (2000, pp.113, 114), sublinhando o referencial de práticas musicais "informais" diversas, ligadas ao ritual, à tradição oral, ou à improvisação, transposto para essa produção:

Genericamente, a distância crítica do Clube em relação a certas estratégias discursivas dos meios de massa não se deu através de ironia e auto-ironia, como fariam os Beatles ou os Mutantes. Sua recusa explícita da eficiência produtivista vinha através da afirmação da dimensão lúdica e informal da música. Suspeito que se trata aqui de "tradições" que informam o trabalho dos músicos de dimensões sociais que se recusam à diluição no fetiche da mercadoria. Pode-se pensar em seu papel ritual (ligado à tradição religiosa), em sua dimensão lúdica e desinteressada, ligada à jam session jazzística, às serenatas e rodas de violão, em seu caráter narrativo (próprio das músicas populares) (...).

Entretanto, é importante frisar que apesar de se afastarem por meio de seus discursos e atitudes dos modelos de criação e produtividade capitalistas, enfatizando o caráter grupal e artesanal de sua obra, havia por trás desses artistas grandes esquemas de produção, endossados por gravadoras multinacionais. O disco Clube da Esquina foi lançado como um álbum duplo pela EMI-Odeon, representando um investimento ousado para a gravadora, registrado em estúdio de grande porte, com a participação de orquestra e de um elevado número de instrumentistas8.

É importante lembrar que, desde meados dos anos 1960, as gravadoras passaram a constituir elencos fixos de artistas ligados à MPB, que mantinham uma vendagem regular de discos, gerando um lucro mais garantido e duradouro em comparação à faixa de artistas considerados "comerciais", que obtinham sucesso explosivo, porém efêmero. Por essa razão, músicos da MPB gozavam de maior autonomia em suas produções, beneficiando-se com investimentos de alto custo por parte das gravadoras, como é o caso de Milton Nascimento. Nesse sentido, havia uma certa "liberdade" de criação, que resultava em álbuns "mais acabados, complexos e sofisticados" (NAPOLITANO: 2002, p.5). Tanto o elevado custo de produção do LP Clube da Esquina, como a relevância de sua vendagem9 denotam uma contradição na relação recusa X inserção de seus integrantes diante do funcionamento da indústria cultural.

Toninho Horta também não estava fora da lógica da indústria fonográfica, basta atentar para sua atuação como instrumentista nos anos 1970. Isso fica evidente, tendo em vista sua elevada e frequente produtividade discográfica, nessa década, como músico acompanhador em álbuns de artistas de prestígio da música popular brasileira, ligados à grandes gravadoras, como Elis Regina, Milton Nascimento, João Bosco, Edu Lobo, Airto Moreira, Taiguara, Sidney Miller, Flora Purim, Nana Caymmi, Gal Costa, Simone, Sérgio Mendes, Boca Livre, dentre outros. Horta teve, também, suas canções gravadas por artistas como Nana Caymmi, Paulo Moura, Simone, MPB-4 e Sueli Costa. Toninho Horta possuía considerável inserção nos grandes esquemas de gravação, como instrumentista, em discos de MPB, ao mesmo tempo em que, ao decidir gravar seu primeiro álbum autoral, Terra dos Pássaros, experimentou as consequências da nova dinâmica de estruturação da indústria fonográfica que se estabelecia.

 

4- Terra dos Pássaros e a cena independente

Ao longo dos anos 1970, a indústria de discos passou por uma crescente racionalização de seu funcionamento, que envolveu a divisão e a especialização de diversas áreas, como produção, marketing e distribuição, além de seu significativo aperfeiçoamento tecnológico. Esse novo perfil de gestão empresarial buscava reduzir cada vez mais a imprevisibilidade do mercado e otimizar o lucro (MULLER, 2005, p.19), o que implicou no estreitamento do espaço destinado a novos artistas. Esses deviam ser avaliados por produtores e pelo departamento de marketing, e passaram a ser considerados investimentos arriscados por essas empresas. Em reação a esse novo contexto, começaram a despontar atitudes independentes de artistas que não obtinham o aval das grandes gravadoras, como observa TATIT (2007, p.123):

Marginalizados por este panorama fortemente cristalizado e rendoso para os grupos financeiros e, ao mesmo tempo cômodo e farto para os artistas já eleitos, alguns novos compositores e músicos, depois de muito tempo de trabalho (alguns com mais de dez anos) sem a possibilidade de registro e divulgação, iniciaram um processo de contra-ataque à ação das gravadoras.

Ao longo dos anos 1970 e, principalmente no final da década, um considerável contingente de artistas, como Antônio Adolfo, João Donato, Danilo Caymmi, Arrigo Barnabé, Luli & Lucinha, Marlui Miranda, o grupo Boca Livre, Joyce, Maurício Maestro e Tom Jobim, optou por gerir a produção de seus próprios trabalhos. No caso de Toninho Horta, o processo de elaboração de seu primeiro disco autoral teve início com sua participação como instrumentista nos álbuns Milton (Milton NASCIMENTO, 1976) e Promises of the Sun (Airto MOREIRA, 1976), nos Estados Unidos. As gravações do álbum Milton terminaram antes do tempo previsto, com horas de estúdio e fitas de gravação já pagas a serem utilizadas. Milton Nascimento cedeu o material remanescente a Toninho Horta, que começou a registrar suas canções. O letrista Ronaldo Bastos, produtor do disco de Milton Nascimento, associou-se a Horta na idealização e na produção de seu disco. Os mesmos músicos que tocaram no álbum Milton, como Raul de Souza (trombone), Robertinho Silva (bateira/ percussão), Airto Moreira (bateria/ percussão), Laudir de Oliveira (percussão), Novelli (contrabaixo) e Hugo Fattoruso (piano/ órgão/ sintetizadores), gravaram as bases de Terra dos Pássaros. Além dos músicos citados, Milton Nascimento cantou em duas faixas. Com essa ajuda inicial, Toninho Horta registrou as bases das canções e, junto com Ronaldo Bastos, retornou ao Brasil para apresentar o projeto a algumas gravadoras, que recusaram a proposta, devido à imprevisibilidade lucrativa da produção. Mesmo assim, decidiu dar continuidade à gravação de forma independente, entre julho de 1976 e setembro de 1979, destinando, paulatinamente, seus recursos financeiros para a realização do disco e acrescentando, aos poucos, instrumentos e detalhes às músicas10.

Como era comum a muitos produtores independentes, Toninho Horta participou de todas as etapas de concepção de seu álbum, desde a composição e a execução das músicas, arranjos e regência, até registro de fotos, concepção da capa e mixagem. Em quase todas as faixas, sobrepôs-se tocando mais de um instrumento, como violão, guitarra, baixo elétrico, piano elétrico, órgão, percussão e vocais. Esse método de produção reforça um caráter artesanal, se distanciando da racionabilidade do funcionamento da indústria fonográfica. Nesse sentido, pode-se considerar que a postura autônoma assumida por Horta e outros artistas remete à atitude contracultural que marcou o início da década, como chama a atenção NAPOLITANO (2006, p.125):

Culturalmente falando, os independentes seguiam a tradição dos malditos e do desbunde, marcas da cultura jovem underground do início dos anos 1970. A abertura para o humor, as ousadias formais e a recusa dos grandes esquemas de produção e distribuição do produto cultural foram incorporadas como herança do início da década.

A permanência do caráter contracultural na produção inaugural de Toninho Horta se evidencia, tanto na maneira como seu disco foi concebido, quanto no conteúdo poético e musical de suas canções. É possível perceber a valorização da espontaneidade, da experiência de criação artesanal e grupal, de elementos ligados ao um universo bucólico, idílico e sentimental. Esses aspectos são reforçados no texto escrito por Toninho Horta para o encarte de Terra dos Pássaros, no qual o artista procura poetizar a vivência em torno da confecção do disco, subentendendo a busca da "arte pela arte". Vale reproduzir o texto completo para uma melhor compreensão desses aspectos:

Este disco conseguiu povoar meus pensamentos nestes últimos três anos e sobreviver a todo tipo de alegrias e dificuldades, mas a variedade de condições de trabalho não impediu o desejo de realizar um disco como sempre idealizei. Com muita liberdade, ele se desenvolveu paralelo à minha maturidade como ser humano. As canções cantadas no final de uma juventude podem hoje representar apenas o registro de um sonho que custou a se realizar: a voz em Diana era só de guia e ficou definitiva com o passar do tempo. Não havia razão para tentar cantar outra vez, anos depois, mesmo que viesse melhorar a qualidade técnica, a dicção e o volume de som. Toda a emoção do início do disco, o Bituca [Milton Nascimento] dando as fitas pra gente, a porta sempre aberta, o mar através dos janelões do estúdio, cachorros entrando e saindo, todo esse clima estava na voz de Diana. Eu comecei despretensiosamente a gravar uma fita onde tocava e cantava minhas músicas, sem pensar que seria o princípio de uma aventura. Os amigos apareciam para visitar e acabavam gravando, as ideias iam fluindo e a gente estava partindo naturalmente para fazer um disco com produção própria sem cogitar as dificuldades que viriam pela frente. [grifos nossos]

Nota-se que Toninho Horta utiliza palavras como "sonho", "liberdade" e "aventura" para se referir à gravação do disco, ressaltando a espontaneidade e a informalidade que a envolveram, como na escolha por manter a "voz guia" na versão definitiva da canção Diana (Toninho Horta/ Fernando Brant), por conter a emoção do momento em que foi registrada. Descreve o ambiente do estúdio, como um lugar em que a porta estava sempre aberta, com cachorros entrando e saindo, de onde se via o mar, onde recebia a visita de amigos que acabavam gravando por "acaso", em um processo "despretensioso" e "natural". Horta foge de elos de ordem profissional, vinculando seu fazer musical à relações informais e espontâneas. Muitas dessas características se traspõem para o conteúdo das canções gravadas, como Diana, Pedra da Lua (Toninho Horta/ Cacaso), Viver de Amor (Toninho Horta/ Ronaldo Bastos), Beijo Partido (Toninho Horta), Serenade (Toninho Horta/ Ronaldo Bastos) e Céu de Brasília Toninho Horta/ Fernando Brant).

Não por acaso, as atitudes contraculturais de Toninho Horta se alinhavam com outras produções desse mesmo período. Além da já mencionada relação com o Clube da Esquina, chamamos a atenção para a ligação com o coletivo de literatura Nuvem Cigana. Esse grupo trazia em seus textos poéticos uma linguagem associada à experiência imediata, ao cotidiano, à artesanalidade, independente de comprometimentos programáticos (HOLLANDA: 2004, p.109). Ronaldo Bastos, poeta, letrista e produtor, e Cafi, fotógrafo, membros do Nuvem Cigana, tiveram, também, uma significativa participação no disco Terra dos Pássaros e na produção ligada ao Clube da Esquina. Conforme destaca HOLLANDA (2004, p.107), essas produções buscavam atuar no modo de produção, procurando subverter as relações estabelecidas pela indústria cultural. No poema a seguir, de Chacal (COHN, 2007, p.163), membro do Nuvem Cigana, é possível notar alguns desses propósitos:

in-constante

a 1

a 2

a 3x 4

20 anos recolhido

 

chegou a hora de amar desesperadamente

  apaixonadamente

  descontroladamente

chegou a hora de mudar o estilo

 

de mudar o vestido

chegou atrasada como um trem atrasado

mas que chega

O poema é marcado pela linguagem informal, pela valorização da experiência imediata e cotidiana, e da fruição do amor.

Vale ressaltar ainda, a presença do poeta Antonio Carlos de Brito, conhecido como Cacaso, um dos principais representantes da poesia chamada marginal, como letrista no Clube da Esquina e como parceiro de Toninho Horta em suas canções. No poema abaixo, Cacaso lança os propósitos que permeiam sua produção artística evidenciando o elo entre a vivência e o próprio ato de escrever poesia - esses se confundem, trazendo a poesia para o plano da experiência cotidiana.

Na corda bamba

Poesia
Eu não te escrevo
Eu te vivo
E viva nós!

Essas convergências evidenciam a correspondência existente entre diferentes formas de expressão artística que marcaram a cultura jovem dos anos 1970 que, desde a virada da década, passou a mobilizar-se em circuitos marginais, consolidando formas de produções alternativas à cultura oficial e à cultura ligada ao ideal nacional-popular, como observa HOLLANDA (idem, p.107):

No teatro aparecem os grupos "não empresariais", destacando-se o Asdrúbal Trouxe o Trombone; na música popular, os grupos mambembes de rock, chorinho, etc.; no cinema surgem as pequenas produções, preferencialmente os filmes em "Super-8" e, em literatura, a produção em livrinhos mimeografados. Todas essas manifestações criam seu próprio circuito - não dependem, portanto, da chancela oficial, seja do Estado ou das empresas privadas - e enfatizam o caráter de grupo e artesanal de suas experiências.

Ainda que tenha realizado seu disco de forma independente, após ter finalizado as gravações de Terra dos Pássaros, Horta conseguiu um acordo com a gravadora EMI-Odeon, que propôs a gravação de um novo álbum, comprometendo-se a prensar, distribuir e licenciar seu disco inaugural. O desenvolvimento das tecnologias de gravação e a redução de custos desses recursos permitiram que a qualidade do produto final de produções autônomas se equiparasse com o padrão de qualidade previsto pelo mercado. No entanto, os independentes encontravam dificuldades, principalmente, na reprodução, marketing e distribuição de seus produtos. As grandes gravadoras encarregaram-se destas etapas, passando a incorporar a diversidade musical excedente, ao estabelecer associações com artistas ou selos independentes. Nessa relação, de certa forma, contraditória, artistas e pequenas empresas se transformaram em provedores de produtos acabados às grandes gravadoras, que encontraram uma maneira de testar as produções, assumindo investimentos de forma mais segura e diminuindo suas despesas. Assim, pode-se falar em um quadro de complementaridade que passou a existir entre a produção independente e as grandes gravadoras (DIAS, 2000, p.129)

 

5- Concepção musical

Embora tenha se aprimorado tecnicamente ao longo dos anos que ultrapassam as demarcações desse trabalho, notamos que desde seu primeiro disco autoral, Toninho Horta possui uma concepção integrada de composição, podendo-se considerar a pluralidade uma das principais marcas distintivas de seu processo criativo. Suas composições possuem harmonias elaboradas, longas introduções instrumentais e interlúdios, e são permeadas por improvisos e contracantos, que dialogam, também, com os arranjos de base e orquestrais e com o conteúdo poético das letras. Essa particularidade é bastante aparente no álbum Terra dos Pássaros pelo fato de Horta ter participado de todas as etapas de criação, tocando diversos instrumentos, elaborando os arranjos de base e orquestrais e cantando.

Essa característica também se alinha, de modo geral, com a concepção que perpassa a produção ligada ao Clube da Esquina. Apesar de serem produções marcadamente cancionais, possuem um forte vínculo com a música instrumental. Nos álbuns de Milton Nascimento e, também, dos demais integrantes do Clube da Esquina, percebemos essa relação através da presença constante de arranjos com formações orquestrais, seções instrumentais e seções de improvisos. Em sua dissertação sobre a sonoridade específica do Clube da Esquina, NUNES (2005, p.97) discute a inseparabilidade dos elementos instrumentais nas canções produzidas pelo grupo:

No grupo, composição e arranjo estão bem interligados. Recursos do tipo modulação, ampliação harmônica, contraste entre seções, geralmente utilizados por arranjadores para incrementar composições são características musicais recorrentes nas composições do grupo. Para o intérprete que pretende gravar este repertório, esta forte ligação entre composição e arranjo apresenta uma série de dificuldades, pois restringe as possibilidades de alteração da versão original. Um outro fator limitante diz respeito ao timbre. Violão, guitarra, viola caipira, órgão, piano, baixo, bateria, voz, vocais, percussão, orquestra criam cores e combinações que, somadas a superposições instrumentais, resultam em uma grande densidade sonora (...).

Tanto a integração da canção com o arranjo, como a alta densidade sonora, proporcionada pela soma de timbres diversos, que demarcam a produção do Clube da Esquina, distinguem a concepção composicional de Toninho Horta. Outro aspecto relevante de seu pensamento musical é a forte ligação com a canção, embora tenha adquirido grande reconhecimento de público e mídia por seus atributos de instrumentista. Horta dedicou-se à música instrumental em discos lançados durante o período em que viveu nos Estados Unidos, entre o final da década de 1980 e o final dos anos 1990, no entanto, a canção predomina como opção estética em seus discos autorais. Esse aspecto pode estar relacionado com sua maneira de compor. Conforme sua própria descrição, toca os acordes e o acompanhamento rítmico ao violão, enquanto canta as melodias em vocalize:

Nunca desenvolvi o lado de violão solo, sempre preferi utilizar a voz. Para compor eu canto as melodias junto com os acordes, então acabei virando cantor. Acho que isso virou uma marca do meu trabalho, esses vocalizes que faço. (HORTA, Toninho. In: GOMES & CARRILHO, 2007, p.25)

O uso da voz no ato da composição restringe o contorno das melodias às possibilidades técnicas vocais. Notamos que nas músicas gravadas no disco Terra dos Pássaros, o âmbito das melodias corresponde, possivelmente, à capacidade vocal do compositor, limitando-se ao máximo em duas oitavas de extensão. Além disso, o uso recorrente da mesma região harmônica nas tonalidades empregadas nas canções pode estar relacionado com sua região de abrangência vocal. No entanto, essas características não reduzem sua inventividade melódica em suas composições, que são, muitas vezes, de difícil execução técnica devido ao emprego frequente de dissonâncias, que geralmente são extensões dos acordes utilizados no acompanhamento, além de modulações, saltos intervalares e cromatismos.

O emprego de recursos idiomáticos ao violão representa um significativo componente da concepção musical de Horta. Ele utiliza aberturas de acordes pouco comuns e um pensamento harmônico ligado à condução de vozes, que contribuem para escolhas de caminhos inesperados, combinados a movimentos cadenciais mais comuns. A harmonia de suas músicas é predominantemente constituída por acordes que, geralmente, possuem cinco ou seis vozes, tocados com o uso de pestanas específicas e por acordes com cordas soltas, com o emprego constante de 7as, 9as, 11as e 13as e caracteriza-se pelo uso de campos harmônicos ampliados, com acordes não-diatônicos, provenientes de empréstimos modais, de meios de preparação secundários e estendidos, modulações, além do uso recorrente de dominantes substitutos.

Para uma melhor compreensão dos elementos que demarcam a produção de Toninho Horta, propomos a análise musical e poética de uma das canções gravadas no disco Terra dos Pássaros.

5.1 - Análise de Céu de Brasília (Toninho Horta/ Fernando Brant)

A canção Céu de Brasília (Toninho Horta/ Fernando Brant), primeira faixa de Terra dos Pássaros, ilustra poética e musicalmente as perspectivas contraculturais e a concepção criativa que caracterizam a produção de Toninho Horta nos anos 1970. Nessa canção, que pode ser considerada um rock progressivo, prevalece a imagem onírica de um personagem, que em um arroubo de "bebedeira louca, ou lucidez", sobrevoa Brasília, deixando de lado a cidade grande e o mundo solitário e produtivista do trabalho, indo ao encontro da vida bucólica, da natureza, conforme a letra a seguir:

A cidade acalmou
Logo depois das dez
Nas janelas a fria luz
Da televisão divertindo as famílias
Saio pela noite andando nas ruas parte A

  

Lá vou eu pelo ar
Asas de avião
Me esquecendo da solidão
Da cidade grande do mundo dos homens
Num voo maluco que eu vou inventando parte A

  

E voo até ver nascer
O mato, o sol da manhã
As folhas, os rios, o azul
Beleza bonita de ver parte B

  

Nada existe como o azul sem manchas
Do céu do planalto central
E o horizonte imenso aberto
Sugerindo mil direções
E eu nem quero saber
Se foi bebedeira louca ou lucidez parte C

A temática dessa canção, escrita em 197411, converge para os ideais difundidos pela contracultura no que se refere ao "retorno à natureza" que, conforme destaca RISÉRIO (2005, p.27), retomou o romantismo literário dos séculos XVIII e XIX, exaltando a contemplação e a harmonia e celebrando "o mito da pureza do ser humano em contato com o mundo natural (...)". Esse imaginário se opunha à "alienação trabalhista" e ao "pragmatismo cientifista", como fica evidente na letra, na qual o eu lírico exprime a busca pelo mundo idílico: "me esquecendo da solidão/ da cidade grande do mundo dos homens/ (...) voo até ver nascer/ o mato, o sol da manhã (...)".

Alguns elementos musicais também podem ser associados ao caráter de "liberdade" da canção, como a estrutura formal irregular, constituída por parte A, com 10 compassos, parte B, com 8 compassos e parte C, com 11 compassos. Há ainda o uso de mudanças de fórmula de compasso, na introdução e na Coda, de 4/4 para 7/8 e ao longo da composição, de 4/4 para 2/4. Essas mudanças contribuem para uma "quebra" da expectativa da regularidade rítmica da canção, como pode-se observar no Ex.1 abaixo:

 


Ex. 1 - Clique para ampliar

 

A harmonia possui uma relação intrínseca com a afinação específica das cordas do violão. Horta lança mão do recurso da scordatura, utilizando uma afinação pouco comum, ao mudar o som da segunda corda, si, para sol sustenido, um tom e meio abaixo, gerando um intervalo de segunda menor entre a segunda e a terceira cordas. O uso constante da corda mi solta, somado à mudança da afinação, proporciona acordes de cinco e seis vozes, com a presença frequente de intervalos de segundas, maiores ou menores, como é possível perceber no Ex.2, a seguir12:

 

A atipicidade das aberturas empregadas ao violão se equipara ao pensamento antitecnicista e à valorização da espontaneidade de criação, recorrentes em sua atividade musical. Se por um lado o autodidatismo pode limitar o conhecimento musical e técnico, por outro permite a criatividade e o desenvolvimento de linguagens peculiares. A recusa às formas tradicionais de conhecimento na prática musical de Toninho Horta se alinha aos ideais da contracultura, que prezam pelo distanciamento do pensamento acadêmico e intelectual. É possível perceber em seu discurso a ênfase dada à liberdade de criação e à "autenticidade", que perpassam, de modo geral, sua produção:

exatamente porque eu queria ser meio liberto (...) de estudar as mesmas coisas que todo mundo, então eu sempre fui muito solto. (...) Eu desenvolvi a harmonia e uma concepção muito própria em cima de tudo o que eu gostava, que eram as orquestras, que era a improvisação, a liberdade de criar (...). [grifos nossos] (Violões de Minas, 2007, 1DVD, 9'12" - 11'40")

No que se refere ao arranjo, a orquestra desempenha ora função contrapontística, ora de sustentação sonora, sobressaindo-se nos momentos mais conclusivos da letra, como na parte C, onde a dinâmica atinge seu ápice. Nesse momento, as linhas melódicas, em frequências agudas, executadas em dinâmica forte pela orquestra, unem-se à melodia principal e correspondem ao conteúdo poético da letra, que sugere imagens do céu, da imensidão, do horizonte. Esse arranjo revela, também, a alta densidade sonora que distingue a produção de Toninho Horta, assim como a do Clube da Esquina, mencionada anteriormente. Sobrepõem-se os sons de bateria, contrabaixo, guitarra elétrica com distorção, violão, sintetizador, voz, oboé, flauta e orquestra de cordas, formada por violoncelos, violinos e violas.

A melodia de Céu de Brasília é marcada por indicativos passionais, segundo a sistematização sugerida por TATIT (2002, p.23), na qual define a passionalização pela continuidade melódica, decorrente do prolongamento das vogais, da desaceleração do andamento, da extensão da melodia, dos saltos intervalares e da exploração das frequências agudas.

A dominância da passionalização desvia a tensão para o nível psíquico. A ampliação da frequência e da duração valoriza a sonoridade das vogais, tornando a melodia mais lenta e contínua. A tensão da emissão mais aguda e prolongada das notas convida o ouvinte para uma inação. Sugere, antes, uma vivência introspectiva de seu estado. Daqui nasce a paixão que, em geral, já vem relatada na narrativa do texto. Por isso, a passionalização melódica é um campo sonoro propício às tensões ocasionadas pela desunião amorosa ou pelo sentimento de falta de um objeto de desejo.

De todas as canções do disco Terra dos Pássaros, essa é a que possui a maior extensão melódica, com o âmbito de duas oitavas. Sua melodia é de difícil execução vocal devido à presença de notas não harmônicas que sublinham as extensões dos acordes, de saltos intervalares ascendentes e descendentes e de tríades e tétrades arpejados. Esses elementos correspondem ao conteúdo da letra e se evidenciam, principalmente, na parte C da canção - o momento de maior exaltação do sujeito ao encontrar a natureza acontece ao mesmo tempo em que a extensão melódica atinge seu ápice. No Ex.3, é possível notar o uso de recursos passionais, na parte C, com saltos intervalares e arpejos de acordes, além do prolongamento das vogais nos finais das frases e do alcance da nota mais aguda (lá), percorrendo toda a extensão melódica da canção, até chegar na nota (si), no final da seção:

A integração dos elementos musicais e poéticos passionalizantes de Céu de Brasília somada à cumplicidade interpretativa de Toninho Horta, traduzem ao ouvinte seu caráter tensivo, que, segundo Tatit, busca trazer "o ouvinte para o estado em que se encontra" (idem, p.10).

 

6- Elementos contraculturais em outras canções

A realidade simbolizada nas canções de Toninho Horta faz alusão à vida familiar, cotidiana, figurando uma representação nostálgica da vida, figurando um mundo idílico e sentimental. Essas características estão presentes em todas as composições do disco Terra dos Pássaros, como pontuamos brevemente, a seguir13:

Diana (Toninho Horta/ Fernando Brant): o interlocutor se dirige a uma cachorra, que faleceu: "velha amiga, eu volto à nossa casa/ já não te encontro alegre, quase humana". O ambiente da casa e a vivência cotidiana de seus frequentadores são tomados pelo vazio decorrente de sua ausência: "almoço aos domingos, a velha farra/ (...) fica a ausência branca e marrom/ e uma tristeza milenar".

Dona Olímpia (Toninho Horta/ Ronaldo Bastos): no arranjo, tocado ad libitum, Horta coloca em primeiro plano a gravação do discurso de Olympia Angélica de Almeida Cotta, D. Olímpia, personagem abandonou sua vida economicamente privilegiada para viver nas ruas de Ouro Preto, nos anos 1960. Em seu discurso nostálgico, D. Olímpia descreve ter escolhido viver como uma mendiga, buscando cumprir uma promessa, com a qual pretendia "socorrer os pobres" e "fazer valer" a sua pessoa. No final de seu depoimento emociona-se e chora.

Pedra da Lua (Toninho Horta/ Cacaso): seu conteúdo poético fragmentado imprime ce em à figura da mãe e à infância do interlocutor, como é possível notar nos versos "minha mãe calma e serena", "minha mãe no seu piano", "menino levante cedo/ menino não chegue tarde".

Serenade (Toninho Horta/ Ronaldo Bastos): nessa canção sentimental, o enunciador faz um convite para o amor impulsivo e livre: "vem comigo/ você pode até se arrepender", "deixa o coração bater".

Falso Inglês (Toninho Horta/ Fernando Brant): a letra dessa canção apresenta um personagem cantor, que, incapaz de compreender o idioma inglês, inventa à sua própria maneira palavras que imitam o som dessa língua. A organização do texto corresponde a um tipo de metalinguagem da canção, na qual seu conteúdo poético é utilizado para explicar os procedimentos empregados na elaboração da própria canção. No refrão e no final da gravação, apresentam-se versos sem significado, que evidenciam as experiências narradas pelo enunciador ao longo da canção: "no rádio eu sempre ouvi/ mas não entendia nada de inglês/ mas eu guardava o som/ toda a melodia sem poder cantar/ eu tinha que inventar um jeito de cantar inglês".

Beijo Partido (Toninho Horta): essa uma canção ligada ao sentimentalismo. Seu conteúdo poético trata da desilusão amorosa.

No Carnaval (Caetano Veloso/ Jota): nessa letra de Caetano Veloso, a temática se volta para a história de um amor efêmero de Carnaval: "no coração, meu tamborim/ o amor cresce em samba assim", e quando o amor chega ao fim, modifica os versos para: "no coração, meu tamborim/ o amor chora um samba assim".

Além das canções do disco Terra dos Pássaros, diversas composições de Horta são marcadas por um conteúdo ligado ao sentimentalismo, à natureza e às experiências do cotidiano. Alguns exemplos são: Manuel, o Audaz (Toninho Horta e Fernando Brant), sobre as viagens a bordo de um jipe, em busca da natureza; Meu Canário Vizinho Azul (Toninho Horta), sobre a morte de um canário; Minha Casa (Toninho Horta), que retrata cenas do cotidiano; Caso Antigo (Toninho Horta, Ronaldo Bastos e Fernando Brant), que trata sobre a espontaneidade do amor. Como mencionamos, os temas abordados nas canções de Horta pertencem a um universo comum, ligado ao cotidiano e a um mundo idílico.

 

6- Considerações finais

A atuação de Toninho Horta ao longo dos anos 1970, ajuda a elucidar o surgimento de vertentes contraculturais, sobretudo pós-tropicalistas, que demarcaram uma nova produção cultural brasileira. Na âmbito da canção popular, essas produções distanciavam-se dos pressupostos de engajamento político que orientavam a MPB, consagrada na segunda metade dos anos 1960. O "desbunde" e a aparente "alienação", que demarcam sua produção e outras formas de expressão ligadas à cultura jovem dos anos 1970, como o Clube da Esquina e o grupo Nuvem Cigana, refletem um pensamento crítico, ligado a uma geração que passou por um processo de descrença, em um contexto marcadamente repressivo e de severas transformações econômicas e sociais. Os ideais da contracultura perpassaram a produção de Toninho Horta durante toda a década de 1970 e sobressaem em seu processo criativo, ligado à confecção de seu primeiro álbum autoral Terra dos Pássaros, trazendo à tona peculiaridades de sua concepção artística e os conflitos de uma produção de caráter alternativo em convívio com a consolidação de uma dinâmica cada vez mais racionalista e tecnicista, que se impunha sobre a produção cultural no Brasil.

 

Referências de texto

COHN, Sérgio (org). Nuvem Cigana - poesia e delírio dos anos 70. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2007.         

DIAS, Márcia Tosta. Os Donos da Voz - Indústria Fonográfica Brasileira e Mundialização da Cultura. São Paulo: Boitempo Editorial, 2000.         

GARCIA, Luiz Henrique Assis. Coisas que ficaram muito tempo por dizer: o Clube da Esquina como formação cultural. 2000. 154 p. Dissertação (Mestrado) - História, UFMG, Belo Horizonte, 2000.        

GOMES, Vinícios & CARRILHO, Fábio Entrevista com Toninho Horta. ViolãoPro, M&M Editorial, fevereiro de 2007, nº 9, pp.22-26.         

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de Viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/ 70. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2004.        

MORAES, Renato de. "A voz da esfinge". Veja . São Paulo: Abril, 3/05/1972, p.56       

MULLER, Daniel Gustavo Mingotti. Música Instrumental e Indústria Fonográfica no Brasil: A Experiência do Selo Som da Gente. 2005. 191 p. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Artes, UNICAMP, Campinas, 2005.       

NAPOLITANO, Marcos. A música popular brasileira (MPB) dos anos 70: resistência política e consumo cultural. In: Anais do IV Congreso de la rama latino-americana del IASPM, 2002.        

Cultura Brasileira - utopia e massificação (1950-1980). São Paulo: Contexto, 2006.       

A síncope das ideias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.       

NICODEMO, Thaís Lima. Terra dos Pássaros: uma abordagem sobre as composições de Toninho Horta. Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP, 2009.        

NUNES, Thais dos Guimarães Alvim. A sonoridade específica do Clube da Esquina. 2005. 130 p. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Artes, UNICAMP, Campinas, 2005.         

RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000.         

RISÉRIO, Antonio (vários autores). Anos 70: trajetórias. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2005.        

TATIT, Luiz. O Cancionista - Composição de Canções no Brasil. São Paulo: Edusp. 2002.         

Todos Entoam: Ensaios, conversas e canções. São Paulo: Publifolha, 2007.        

 

Referências de áudio

HORTA, Toninho & Orquestra Fantasma. Terra dos Pássaros. Brasil: EMI, 1980 (LP 064 422855); Dubas Música, 2008 (CD).         

MOREIRA, Airto. Promises of the Sun. Brasil: Arista/EMI-Odeon, 1976 (LP ARL 33209).       

NASCIMENTO, Milton. Milton Nascimento. Brasil: EMI-Odeon, 1969 (LP MOFB 3492)       

Milton. EUA: A&M Records; Brasil: EMI-Odeon, 1976 (LP XEMCB 7024).        

Clube da Esquina. Brasil: EMI-Odeon, 1972 (2 LP MOAB 6005/6), 1989 (2 CD).         Clube da Esquina 2. Brasil: EMI-Odeon, 1978 (2 LP 164 422831/2), 1988 (2 CD).        

Referência em vídeo

VIOLÕES de Minas. Roteiro e direção Geraldo Vianna. Documentário. 2007, 1 DVD. Duração: 101 min.    

Entrevista

HORTA, Toninho. Por email, no dia 20/03/2012.        

 

Notas

1 Tal pesquisa apresenta alguns excertos de minha dissertação de mestrado: NICODEMO, Thaís Lima. Terra dos Pássaros: uma abordagem sobre as composições de Toninho Horta. Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP, 2009.

2 HORTA, Toninho. Terra dos Pássaros. Brasil: EMI-Odeon, 1980, LP.

3 Concorreu com a marcha-rancho Nem é Carnaval (Toninho Horta e Márcio Borges), defendida pelo cantor Márcio José, e com a valsa Maria Madrugada (Toninho Horta e Junia Horta), interpretada pelo grupo paulistano O Quarteto.

4 Como ressalta RIDENTI (2000, p.17), nesse contexto, o termo esquerda é empregado para: "designar as forças políticas críticas da ordem capitalista estabelecida, identificadas com as lutas dos trabalhadores pela transformação social".

5 Conforme argumenta NAPOLITANO (2007, pp.85, 86), a identidade nacional-popular que antes orientava a produção cultural com um sentido reformista, passa a se tornar o centro de uma construção ideológica em torno da resistência ao regime militar, após o golpe de 1964.

6 Conforme HORTA, Toninho. In: http://www.museuclubedaesquina.org.br/museu/depoimentos/toninho-horta/. Acesso no dia 23/02/2012.

7 Conforme depoimento de Toninho Horta ao site www.museudapessoa.net/clube, acesso em 05/03/2012.

8 Músicos que participaram do disco: Milton Nascimento, Lô Borges, Tavito, Wagner Tiso, Beto Guedes, Toninho Horta, Robertinho Silva, Luiz Alves, Rubinho, Nelson Ângelo, Paulo Moura (maestro), Eumir Deodato, Paulo Braga, Gonzaguinha, Alaíde Costa. Letristas: Márcio Borges, Ronaldo Bastos, Fernando Brant.

9 Conforme MORAES, Renato de. In: "A voz da esfinge". Veja . São Paulo: Abril, 3/05/1972, p.56., o LP Clube da Esquina havia vendido cerca de 10.000 cópias em apenas dois meses.

10 Cf. informações do site www.toninhohorta.com.br/pt/terra-dos-passaros/a-guitarra-e-o-disco, acesso em 14/03/2012.

11 Conforme Toninho Horta, por email, no dia 20/03/2012.

12 Aberturas de acordes escritas por Toninho Horta, cedidas a autora.

13 Não comentamos sobre o conteúdo das composições Viver de Amor (Toninho Horta e Ronaldo Bastos) e Aquelas Coisas Todas (Toninho Horta) por apresentarem-se como músicas instrumentais no disco Terra dos Pássaros.

 

 

 

Thaís Lima Nicodemo é doutoranda pelo Departamento de Música, no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas. Sua pesquisa, que se iniciou em 2010, tem como enfoque principal a produção do compositor brasileiro Ivan Lins, entre os anos de 1970 e 1990. Tem no prelo em co-autoria com Soraia Simões, Investigadora/Presidente da Associação Mural Sonoro, um livro baseado no percurso do músico Ivan Lins. Thaís é Mestre em Música pela mesma instituição, onde desenvolveu a dissertação "Terra dos Pássaros: uma abordagem sobre as composições de Toninho Horta", defendida em 2009. Além de pesquisadora, possui bacharelado em Piano Popular, pela Faculdade Santa Marcelina e atua como musicista no cenário da música instrumental e da canção popular na cidade de São Paulo.

Rafael dos Santos é Doutor em Música/Piano pela Universidade de Iowa - EUA, sob a orientação do Prof. Daniel Shapiro. É Docente do Departamento de Música, Instituto de Artes da UNICAMP, onde participou da criação do curso de Música Popular. Coordena juntamente com o Prof. José Roberto Zan o Grupo de Pesquisa "Musica Popular: História, Produção e Linguagem" (CNPq).

 

 
  

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Uma experiência do rap no Brasil na primeira pessoa. Breve consideração, por Dom Billy

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Uma experiência do rap no Brasil na primeira pessoa. Breve consideração, por Dom Billy

[ ver RAProduções de Memória Cultura Popular e Sociedade]

*Sou Brasileiro, de São Paulo, nasci num hospital da zona leste da capital.

Fui um dos pioneiros do hip hop no Brasil, fiz parte do conhecido grupo Funk Cia, ao lado de Nelson Triunfo no início da década de 1980.

Sou músico, compositor, dançarino, integrante do Projeto Preto Véio, um grupo musical que criei e que alberga vários ritmos brasileiros regionais, aliados a elementos musicais de cariz urbano como o rap

Nesse momento me encontro escrevendo um livro e preparando um Documentário sobre minha trajetória dentro da cultura hip hop no Brasil,  desde os ''bailes negros'' na cidade de São Paulo dos anos de 1970 até aos dias de hoje. 

De certo modo essa cultura mexeu com a auto-estima do jovem negro que vivia nas periferias da cidade, e buscava um meio de se integrar na juventude da sua época, encontrando o que dizemos hoje de 'identidade cultural' dentro de uma sociedade minada de preconceitos, e que vivia num regime de ditadura.

Segue aqui um pequeno trecho desse meu livro que em breve estarei lançando: 

Esta é a fase em que eu comecei a curtir os bailes mais nervosos de São Paulo. Chic Show no Palmeiras e Zimbabwe no Guilherme Giorgi eram os bailes que eu mais freqüentava. Vi inúmeros shows no Palmeiras. Foram muitos e inesquecíveis. 

 A Chic Show foi um verdadeiro império na produção de bailes e shows, no seguimento de Baile Black, aqui no Brasil. Realmente ela ditou uma tendência desde a sua criação nos anos 70. A princípio era apenas um hobby entre irmãos que curtiam dar bailes na casa dos amigos, e se tornou uma empresa de linha de frente. Trouxe para o Brasil alguns dos nomes do primeiro time da música negra norte americana: Jimmy “Bo” Horne, Cheryl Lynn, Chaka Khan, James Brown, Glória Gaynor, Roger Troutman, Koll Moe Dee, Kurtis Blown, Whodini, Cash Money, Too Short, só para citar alguns internacionais.

Seus DJ’s foram verdadeiras lendas e são lembrados, até hoje, com saudade e respeito. Kitão e Natanael Valêncio foram personagens que embalaram uma geração de amantes da música negra.  E tudo isso acontecia numa época em que o DJ ficava escondido - dentro da cabine. Ele tinha que ter um extremo bom gosto aliado a um alto conhecimento musical. Não fazia performances como hoje vemos. Ele era um ilustre desconhecido. Houve uma época anterior aos anos 80, na qual os DJs eram simples executores de músicas. Os mais famosos eram os que trabalhavam nas rádios como locutores. 

Com suas vozes bonitas entravam nos lares, e faziam a alegria das empregadas domésticas, dos taxistas, das donas de casa em seus afazeres ou simplesmente para as pessoas que ouviam os programas de rádios a fim de ouvir uma música que lhes agradasse o coração. Nos bailes o papel do DJ também era o de tocar as músicas, mas de uma forma que mantivesse o público animado com a seqüência musical, ou seja, a pista não poderia esvaziar. 

Hoje, a pista ainda tem que continuar cheia, mas o conceito de DJ mudou e muito. Atualmente o DJ é um show-man, uma celebridade. Ele se tornou uma atração a mais num baile, são mestres de cerimônia, verdadeiros especialistas na arte de manter a pista cheia, com suas exibições performáticas e equipamentos de última geração. Creio que seja por isso que esta dupla Kitão e Natanael Valencio são reverenciados até os dias atuais. 

O perfil da massa, que curtia esses bailes, era muito especial. Os bailes eram muito esperados, pois, aconteciam uma vez por mês. Tínhamos de ter uma roupa exclusiva. No dia do baile os salões de cabeleireiros afro da Rua 24 de Maio, (no centro de São Paulo), bem como os dos bairros, lotavam de clientes. À noite, os ônibus que vinham dos bairros em direção à Rua Turiassu, 1840 (endereço do Ginásio do Palmeiras) eram tomados especialmente por essa Massa Black, muito animada, com seus cabelos afro “redondinhos” e elegantemente trajada para uma noite de sonhos, de embalos e de conquistas. Todos com a auto-estima nas nuvens e embalados por timbres lindos, grooves fantásticos e puro soul (...)

Links disponíveis:

 Nélson Triunfo: do Sertão ao Hip-Hop

 

*Dom Billy é rapper, escritor, compositor e foi dançarino de break-dance. Vive em Itaquera, um dos bairros periféricos distrito da zona leste cidade de São Paulo, no Brasil.

 

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Martinho de Assunção, o violista que marcou e se deixou marcar pelo Fado, por Soraia Simões

Martinho de Assunção, o violista que marcou e se deixou marcar pelo Fado, por Soraia Simões

por Soraia Simões de Andrade [*]

republicado no Portal do Fado

O mais referenciado violista de Fado durante anos. Nasceu no ano de 1914 na freguesia de Santos-o-Velho, Lisboa, e faleceria em 1992 na mesma cidade. Tocou vários cordofones: guitarra, violino, bandolim, mas foi à viola que acabou por se profissionalizar e ser reconhecido 'criando uma escola' e servindo de referência a muitos intérpretes de viola no domínio do Fado até aos dias de hoje. 

Conta o seu neto, Vital de Assunção[1], também violista e compositor de fados, «que executava guitarra clássica como nenhum outro influenciado por alguns dos maiores mestres de guitarra espanhóis como Andrés Segóvia, por quem nutria grande admiração e fascínio».

No seu espectáculo de estreia, que aconteceria com apenas doze anos de idade em Setúbal, Martinho da Assunção substituiria João da Mata Gonçalves, seu professor, sessão na qual acompanharia Armandinho.

Martinho da Assunção é hoje considerado pela grande maioria dos intérpretes de Fado «a maior referência na viola de Fado», como exprime também Joel Pina[2] (viola baixo, acompanhante de Amália Rodrigues, entre outros, até ao fim do percurso da fadista). Curiosamente, quer Martinho da Assunção como Joel Pina são chamados carinhosamente de «professores» entre as várias comunidades de prática do Fado em Lisboa.

Filho do 'cantador' e poeta Martinho d’ Assunção, que fora um socialista, um dos fundadores do Partido Comunista Português e delegado no seu Primeiro Congresso, chamado de «poeta vermelho», autor do poema ‘Fado Lenine’ e colaborador em várias publicações jornalísticas no universo da Música Popular e publicações do movimento operário, como: 'Canção de Portugal' e 'Guitarra de Portugal', 'Revolta', 'Bandeira Vermelha' ou 'Voz do Operário'.

Martinho de Assunção Júnior (Jr.), como era conhecido na comunidade do Fado, actuaria em vários espaços, Casas e Retiros fadistas. Bar Avenida, Salão Jansen, Café Mondego, Estribo, Luso, A Toca, Lisboa à Noite e O Faia, foram os mais frequentes no seu percurso como violista.

Deu espectáculos um pouco por todo o mundo e em circunstâncias diversas. Actuou nas ilhas da Madeira e Açores, com Ercília Costa e João da Mata, em Angola, Moçambique e ex Rodésia do Norte com Armandinho, Berta Cardoso, Madalena de Melo e João da Mata. Assim como espectáculos para militantes do partido ao qual pertenceu em Cuba e para refugiados, entre outros.

O célebre Quarteto Típico de Guitarras Martinho d’ Assunção seria um marco, não só no seu percurso como violista e compositor como no domínio quer do Fado como da Música Popular feita em Portugal de um modo transversal. Deste Quarteto faziam parte Francisco Carvalhinho, António Couto (guitarras), Martinho De Assunção (viola), Joel Pina (viola-baixo).

Reuniu e dirigiu, entre 1937 e 1938, outros intérpretes que inscreveriam o seu nome e marca individual na História do Fado, como José Duarte Costa (na viola), os guitarristas Francisco Carvalhinho, Constança Maria (na voz) e Fernando Freitas (este último sobejamente elogiado como «guitarrista de eleição» pelo estudioso e dinamizador do género José Pracana assim como, num plano quer afectivo quer profissional, pelo seu filho, também músico, Fernando Girão[3] em entrevista.

Comporia ainda músicas conhecidas[4] como ‘’Fado Faia’’ com letra de Linhares Barbosa, ‘’Bom Dia, Meu Amor’’ com letra de Vasco Lima Couto, ‘’Uma História’’ com letra de Aníbal Nazaré, ‘’Fado do Chiado’’ com letra de José Carlos Ary dos Santos ou ‘’Fado Corridinho’’ e ‘’Casinha de um Pobre’’ ambas com letras de Frederico de Brito.

Durante o seu percurso como violista de Fado foram vários os momentos em que a sua técnica e o seu estilo interpretativo o levaram a actuar como solista no universo da ‘música clássica’.

Sem dúvida que tanto para os seus alunos directos, quando se dedicou ao ensino da viola de fado, como para os alunos indirectos, no domínio do Fado Martinho de Assunção vincaria a ‘sua escola’ que o transformaram para a maioria dos fadistas, ainda hoje, volvido um século da sua existência, na grande influência pelo papel de destaque que conferiu à viola.

«Foi muito precoce na aprendizagem da viola de fado», conta o seu neto Vital d’ Assunção acrescentando que nos anos 20, com apenas doze anos de idade, as aulas com o espanhol Agustín Rebel Fernandez eram já regulares. «Sabes que naquela altura ele era, ainda hoje é, o mais elogiado dos violistas. Imagina tu que nessa altura já acompanhava o Armandinho». Martinho de Assunção acompanhara com uma notável mestria Armando Augusto Freire (mais conhecido por  Armandinho[5]). 

«O Armandinho rendeu-se logo à actuação do meu avô. E até é engraçado porque o meu avô tinha ido ao encontro dele acompanhado pelo meu bisavô ali perto da Avenida Luísa Tody em Setúbal, numa esplanada. O Armandinho achou que era uma brincadeira, pois faltavam poucas horas para o espectáculo começar e tinham-lhe trazido um miúdo de calções. Depois do meu avô actuar, ficou rendido».

Mas, não seria só Armandinho, outra figura/intérprete indissociável para uma História mais completa do Fado, que começou a tocar guitarra em 1914 influenciado pelo mais famoso guitarrista da sua época, Luís Petrolino, que se sentiria dominado pela presença e execução do jovem intérprete, como toda a assistência do Luísa Tody. «O Teatro Luísa Tody ia vindo abaixo com os aplausos do público que se pôs de pé para aplaudir o meu avô. Ele abria-se pouco, mas quando lhe pedia contava-me estas histórias. Ainda tenho uma ou duas fotografias para aí com ele de calçõezinhos  e meias brancas nesse espectáculo ao lado do Armandinho» volta a afirmar, na lembrança sob a importância da inscrição da história do seu avô no Fado, no decorrer de uma longa conversa para o meu trabalho no Mural Sonoro[6].

No ano em que se comemoram cem anos sobre a existência de Martinho De Assunção tudo o que possa sobre ele escrever, mesmo tendo como base fontes primárias da pesquisa de onde destaco o relato de quem com ele viveu, conviveu e actuou parecerá sempre muito pouco.

 

Vídeo 1: grupo Opus Fado, constituído por Chico Madureira (Voz), Arménio de Melo (Guitarra), Martinho d' Assunção e Vital d' Assunção (Violas), no Fado "8 de Março, Bom dia Mulher" com letra de Rui Manuel e música do sueco Torstein Bergmann, com arranjos de Vital d' Assunção. 

Vídeo 2: Tema «Nostalgia», Martinho d'Assunção na guitarra clássica.

Imagem/fotografia de um dos discos em que fez arranjos e direc.musical (''O Homem na Cidade'', Carlos do Carmo) com um agradecimento expresso na capa do fadista a Martinho D'Assunção.

all rigths reserved Mural Sonoro

 

[*] texto integrado no centenário de Homenagem a Martinho D' Assunção, Portal do Fado

[1] Vital D’Assunção violista e compositor de fado em entrevista para Arquivo Mural Sonoro

[2] Joel Pina, viola-baixo, recolha de entrevista disponível online, com o número 76, em Arquivo (muralsonoro.com)

[3] Recolhas de Entrevistas para Arquivo Mural Sonoro

[4] Guinot, Maria, Ruben de Carvalho e José Manuel Osório (1999) "Histórias do Fado", Colecção "Um Século de Fado", Lisboa, Ediclube

[5]  Armandinho (11 Outubro, 1891 - 21 Dezembro, 1946), o seu percurso no Fado é traçado quando, em 1914, conhece o mais famoso guitarrista da época - Luis Carlos da Silva, conhecido por Luis Petrolino, e se torna seu discípulo. No ano de 1926 fez  a sua primeira gravação em Portugal com um microfone de bobine eléctrica móvel, através do qual gravaria seis composições, acompanhado à viola por Georgino de Sousa, para a His Mater's Voice , que em Portugal era vendida/divulgada/financiada pela Valentim de Carvalho.No ano de 1928, também acompanhado por Georgino de Sousa, gravaria em duas sessões no Teatro S. Luís, um conjunto de Fados, variações em tons diferentes uma marcha, editados também no formato de 78 rpm. Estas gravações serão reeditadas em CD pela editora Heritage no ano de 1994. Foi dos primeiros a realizar digressões artísticas fora de Portugal. Acompanhou as vozes tanto ao vivo em Casas de Fado e espectáculos como na gravação de fonogramas de, entre outros/as, Alberto Costa, Maria Vitória, Ângela Pinto, Adelina Ramos, Berta Cardoso, Madalena de Melo ou Ercília Costa.

Foi, com Raul Nery, José Marques Piscalareta, Jaime Santos, Carvalhinho ou Fontes Rocha dos intérpretes mais marcantes à guitarra portuguesa no domínio do Fado.

[6] «Fado (s): Escritas e Autorias» no Ciclo: Conversas à volta da Guitarra Portuguesa, Alfama, Muralha, 14 Dezembro de 2013, moderado por Soraia Simões

 

 

Viola Campaniça

Viola Campaniça

É uma das mais antigas violas populares ainda existentes. Típica da região do Baixo-Alentejo, durante algum tempo foi relativamente fácil encontrá-la desde a zona litoral até à raia e percorrendo ainda algumas franjas da região algarvia. Hoje, como reforça a conversa com o músico e divulgador Pedro Mestre, o mais comum e de um modo cada vez mais aceite é encontrá-la com grande dinamização, tanto do ponto de vista do ensino como  cultural, em Castro Verde.

Porém, a viola campaniça gozou outrora de satisfatória popularidade na animação de balhos (bailes cantados), despiques (nas tabernas), rodas e no acompanhamento de grupos corais (alguns deles mistos).

Cada tocador imprime o seu estilo interpretativo na execução, mas a afinação mais usada é: sol, mi, dó, fá, dó, embora também se possa usar outra mantendo contudo a afinação relativa entre cordas.

Este cordofone por norma arma com dez cordas de metal de cor amarela e aço em cinco ordens embora o cravelhal apresente doze cravelhas com a afinação já referida. Sobre a escala, rasa com o tampo, vêem-se dez pontos e dois ou três meio pontos suplementares sob as cordas agudas.

Na década de 1960 a viola campaniça entrou em desuso, voltando  na segunda metade da década de 1980 mas principamente nos anos de 1990/2000 a assumir o papel de destaque, especialmente em Castro Verde, que outrora tivera, como poderá mais tarde pesquisar no Colóquio-Sessão do Mural Sonoro que moderei em Março no Museu da Música com o Tema: «Cante Alentejano: a adaptação na Música Popular, o discurso sobre as identidades e o território» através dos testemunhos de José Francisco Colaço Guerreiro e Janita Salomé.

Ainda assim, durante a década de 1960 a viola conseguia manter alguma vitalidade entre um reduzido número de indivíduos que a tocavam na faixa ocidental da planície alentejana (zona do Alandroal).

Quanto aos materiais usados na sua construção habitualmente as suas ilhargas são feitas em madeira oriunda da Austrália, o seu tampo em pinho originário de Flandres, o seu braço em mogno e o seu interior em casquinha ou mesmo choupo enquanto a escala em pau-preto.

Pedro Mestre durante recolha de entrevista para Arquivo Mural Sonoro. Viola Campaniça construída por si no ano de 1999.

Pedro Mestre durante recolha de entrevista para Arquivo Mural Sonoro. Viola Campaniça construída por si no ano de 1999.

Pedro Mestre durante recolha de entrevista para Arquivo Mural Sonoro. «Carrilhões mecânicos» adaptados por si na construção da viola

Pedro Mestre durante recolha de entrevista para Arquivo Mural Sonoro. «Carrilhões mecânicos» adaptados por si na construção da viola

Fontes usadas na pesquisa: recolha de entrevista feita para Arquivo Mural Sonoro a Pedro Mestre; SARDINHA, José Alberto, Viola Campaniça - O Outro Alentejo.

O Fado nas suas concomitâncias. Outros lados do Fado, por Soraia Simões

O Fado nas suas concomitâncias. Outros lados do Fado, por Soraia Simões

Primeira Parte: Fados em contexto de tertúlia

Durante muito tempo a literatura e documentação (televisiva, radiofónica) existente no domínio do fado foi assumindo uma dualidade que, embora hoje não tão presente, marcou profundamente a sua leitura na sociedade portuguesa: ou se era a favor do género e se enaltecia a paixão pelo mesmo ou se era contra e o repúdio ou o ódio faziam-se notar por todas as vias possíveis. Ainda hoje, ou se gosta muito ou se detesta, diz Nuno Siqueira advogado de formação, coleccionista, gravado em entrevista para o Arquivo Mural Sonoro e presença assídua nas Tertúlias de Fado e Guitarradas desde os anos de 1980 em várias Casas e Retiros, primeiramente no Arreda em Cascais, propriedade outrora de outro entusiasta, estudioso e dinamizador do género: José Pracana, também gravado para o Arquivo Mural Sonoro; e posteriormente Casa Cordeiro, também conhecida por ‘’Morangueiro’’, em São João do Estoril; Adega do Ribatejo no Bairro Alto; nos anos de 1990 por Colectividades como: Vendedores de Jornais Futebol Clube na Rua das Trinas; Santos Futebol ClubeComuna 2 em Alcântara; Luís Vaz de Camões à Rua dos Remédios; Senhor Fado, também na Rua dos Remédios, entre  2008 e 2013; ou desde 2013 no restaurante A Muralha-Tasca Típica numa tertúlia que tem atraído no último ano amadores e profissionais uma vez por semana, de várias idades e esferas sociais.

No âmbito recreativo e de espectáculo, um pouco por todo o mundo, a articulação entre este domínio local e o estrangeiro foi permitindo um maior alcance sobre a sua receptividade, apesar de, mesmo assim, como poderá verificar mais à frente deste texto, nele coexistir uma contínua resistência  durante quase todo o século XX, que só se diluiria a partir da década de 1980 com os estudos de Joaquim Pais de Brito no ISCTE (veja-se Fado, um Canto na Cidade em Etnologia I, ano de 1983, pp. 147-186) e o início dos trabalhos levados a cabo pelo Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos de Música e Dança da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa (INET-MD), como seja a Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, dirigida por Salwa Castelo-Branco (Círculo de Leitores, Lisboa, 4 volumes, 2010) também gravada em entrevista para o Arquivo Mural Sonoro.

Ercília Costa, Maria Alice e mais tarde Amália Rodrigues, cuja primeira internacionalização se dava no ano de 1943 quando, a convite do Embaixador de Portugal Pedro Teotónio Pereira, actuou em Madrid, situando-se a segunda presença além-fronteiras nos anos de 1944 e 1945 no Brasil, este último ano onde gravaria, sob a etiqueta Continental, dezasseis temas, foram contribuindo para que um maior interesse pelo aprofundamento da reflexão crítica sobre o fado acontecesse, seja a partir de fontes poéticas tradicionais, pelo seu papel nem sempre bem visto num plano transnacional, seja pela ligação da lírica deste universo musical às problemáticas da esfera social e política que marcaria a existência diária do género dentro das comunidades populares, onde se criava e recriava no seio de uma outra dualidade: por um lado a sua vivência durante a ida para a guerra (1914-1918), por outro o seu não sucumbir face ao regime político posteriormente em vigor (1928).

Tanto no contexto de uma grande guerra, como no do movimento operário e até à sua intervenção política asfixiada pela censura do Estado Novo, a memória viva sobre este domínio é diversificada e patenteada especialmente através da recriação ou reinterpretação permanente das suas letras e poesias, que foram acompanhando a mobilidade das esferas sociais e o paulatino reconhecimento do género e ‘culminaria’ (no plano da aceitação e da receptividade) já com o seu reconhecimento na UNESCO ao integrar, em Novembro de 2011, a Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade.

Também nos processos de transmissão de saberes e de repertórios poéticos e musicais, nomeadamente através do surgimento dos meios de difusão, o relacionamento entre os meios rurais, o cosmopolita e o urbano tornam-se mais evidentes muito embora de alguma complexidade, dado à celeridade das transformações operadas internamente e aos processos de transmissão oral e escrita que passaram a conviver com o papel assumido pela rádio e televisão.

Desde as primeiras inscrições literárias ou documentadas acerca da prática do Fado em Lisboa que os testemunhos sobre as alterações sociais foram explorados, quer de um modo implícito como em alguns dos casos explícito. Na passagem para a década de 1830/1840 um conjunto de ‘’analistas’’ da prática do fado reflexionavam este domínio cultural e musical, à luz dos seus padrões socio-culturais, como tratando-se de uma expressão popular revestida de uma amoralidade, marginalidade ou pertencente a uma ‘’baixa cultura’’, perspectivas essas expressas habitualmente sem quaisquer rigores de investigação, a não ser meros relatos pessoais no modelo de crónicas de costumes. Mas, também no plano da investigação e da literatura o ambiente hostil relativamente a este domínio esteve explícito, quer nos trabalhos de Teófilo de Braga (História da Poesia Popular Portuguesa, Tipografia Lusitana, 1867) e Leite de Vasconcelos a respeito dos Estudos sobre Culturas Populares, como em alguns textos de Eça de Queirós, Fialho de Almeida ou Camilo Castelo-Branco, entre outros, para quem o Fado era sintomático de uma decadência cultural da sociedade oitocentista (Dançava o Fado à noite nas Tabernas, diz o poema ‘’Marialva’’ de Alexandre da Conceição incluído no Cancioneiro Alegre de Camilo Castelo-Branco). Rejeições relativas ao género que seriam perpetuadas no século XX por intelectuais de esferas político-sociais não coincidentes como Luís Moita (O Fado Canção dos Vencidos, Empresa do Anuário Comercial, 1936), António Arroio, Fernando Lopes-Graça ou António Osório. Se por um lado, para Luís Moita e António Arroio a permeabilidade do género face às interculturalidade e transnacionalização verificadas não permitiam afirmá-lo como género emblemático ou identificativo português e lisboeta; por outro lado as visões esquerditas de António Osório e Fernando Lopes-Graça viam no género um rosto de aparente fatalismo, tristeza, cinzentismo ou morbidez impossível de compatibilizar com as suas visões sociais progressistas que primavam pelas lutas frequentes numa mudança do panorama social vigente.

A designação de fados operários que fui por vezes escutando nesta viagem pelos ambientes amadoristas de tertúlia, que a espaços incluem alguns profissionais, da prática do Fado em Alfama levou-me ao registo de testemunhos baseados nas memórias descritivas dos («meus») interlocutores e a uma tentativa de compreensão das relações de alguns intérpretes de Fado com esta designação. Foi assim que, por sugestão do violista e compositor de Fado Vital de Assunção, figura pontual das Tertúlias em Alfama, encontrei e registei algumas letras dos seus avô e bisavô censuradas e a expressão de ‘’poeta vermelho’’ referente a um deles (Martinho de Assunção), bem como a alusão frequente durante as conversas que fui travando com Vital ao Fado Lenine da autoria do seu bisavô. A exaltação pontual desta designação pareceu-me igualmente importante, apesar da representatividade a respeito da temática em grande parte da literatura contemporânea no início da minha convivialidade com o Fado se me apresentar exígua.

com Vital D'Assunção

com Vital D'Assunção

À relação pessoal e frequente, iniciada no ano de 2013, com o ambiente em volta da tertúlia em Alfama e os seus participantes/executantes, juntaram-se as recentes conversas mantidas com Ruben de Carvalho (Historiador, autor de Um Século de Fado, Lisboa Ediclube, 1999; As Músicas do Fado, Clube das Letras, Colecção Campo da Música, 2005) ou o livro O Fado Operário no Alentejo da autoria de Paulo Lima, editado pela Tradisom em 2011, e cruzaram-se leituras sugeridas nestas conversas e onde pude comprovar o teor de uma agitação social e reflexão política que envolvia as suas obras no início do século XX, como A Triste Canção do Sul de Alberto Pimentel, editado pela Livraria Central Gomes de Carvalho no ano de 1904 e reeditado pela Dom Quixote no ano de 1989.

O ambiente de tertúlia, o qual visito de quinze em quinze dias, em Alfama foi o prenúncio que daria continuidade a um conjunto de constatações acerca deste vasto universo e de outras das suas particularidades, para lá dos palcos. A disponibilidade semanal de Nuno Siqueira em me abrir as portas da sua Colecção e Biblioteca foi-me permitindo apreender a existência de uma série de textos que reconfirmariam algumas das conversas que vamos mantendo entre os fados da Tertúlia semanal (para mim quinzenal).

A partir do repertório cantado nestas tertúlias  fui ao encontro dos textos escritos. Percebi, claramente, que havia partes distintas nestas tertúlias semanais e que elas continuam a ser não só uma extensão da vivência do Fado entre as camadas mais populares, com os seus modus operandi  de acordo com as suas aspirações, conhecimentos adquiridos e vivências, como entre as elites mais eruditas, mas ainda entre os ambientes amadorísticos e os profissionalizantes, que mesmo fora do ambiente de/desta Tertúlia em que esta primeira parte do texto se pretendeu focar, se relacionam. Por vezes com ambiente de grande intimidade, outras vezes de alguma demarcação territorial balizada fundamentalmente pela escolha dos repertórios.

Estas Tertúlias que têm em Nuno Siqueira o ‘meu anfitrião’ congregam um conjunto de pessoas de faixas etárias e esferas sociais e políticas impossíveis provavelmente de se encontrar ou conviver sem ser num ambiente destes. Uma fadista que tem discos gravados e trabalha num restaurante em Alfama (Susana Rodrigues), um engenheiro agrónomo que canta (Eduardo Falcão), um engenheiro civil que toca (José Burnay), uma jurista que canta (Maria da Luz Mesquitela), uma reformada que ali se junta para o mesmo (Maria Júlia), um profissional do fado que é sempre diferente, uma doutoranda oriunda de Nápoles com tese na área de Estudos Literários sobre o género que ali canta e ensaia (Martina Maffione), um advogado que toca guitarra, tem letras registadas no âmbito e é coleccionador (Nuno Siqueira) e os menos assíduos Vital D’ Assunção (violista e compositor de fado), José Pracana (estudioso, guitarrista e entusiasta do género) ou Daniel Gouveia (estudioso, letrista, intérprete e entusiasta) entre os e as que todas as semanas se vão juntando ao ambiente criado.

Carlos Albino (guitarras portuguesa), José Burnay (guitarra portuguesa), Maria da Luz Mesquitela (voz), Hugo Cação (viola)

Carlos Albino (guitarras portuguesa), José Burnay (guitarra portuguesa), Maria da Luz Mesquitela (voz), Hugo Cação (viola)

Nuno Siqueira (guitarra portuguesa), Maria Júlia (voz), Hugo Cação (viola)

Nuno Siqueira (guitarra portuguesa), Maria Júlia (voz), Hugo Cação (viola)

Grande parte das suas visões do mundo e do fado em particular ficam patentes no jantar antes dos fados e nos intervalos de cada actuação, não só nas observações que emitem como através da escolha dos seus repertórios. Passamos de um fado com conteúdo mais jocoso, humorístico a um intervencionista, ou a um fado com uma estrutura melódica mais tradicional. E também se discute política. Não esquecerei de uma das acérrimas discussões entre fados naquela mesa, que é desde 2013 a mesma com os mesmos lugares reservados mais os livres para os que se espera que venham, sobre a política actual, um debate aceso entre um defensor do regresso do regime monárquico e um marxista convicto, de quem não estou autorizada a revelar nome, que me acabaria entusiasmado por oferecer umas gravações dos programas de rádio que gravava na República da Guiné em 1970 às escondidas – emissões do PAIGC.  É o único espaço em que se calhar era possível eu conhecer e estar com estas pessoas. Não por nada de especial, mas porque as nossas vidas diárias ou profissionais não coincidem, nem mesmo o nosso modo de ver o mundo, só o fado para nos unir, diz no jantar que antecedeu uma das Tertúlias uma das figuras residentes, José Burnay, engenheiro civil de formação, que tal como Nuno Siqueira começou cedo a tocar de um modo amadorístico em espaços nocturnos onde foi conhecendo muita gente do fado. Dos anos de 1974 no Arreda, ao Viela do Sérgio Dâmaso ali para os lados do Príncipe Real, ao Solar da Hermínia, Forte do Rodrigo, Senhor Fado, eu sei láTambém tenho cadastro aqui, apesar de não fazer disto vida. É uma paixão. Uma paixão que nos une.

Curiosamente os repertórios cantados nestas tertúlias semanais em Lisboa, alguns deles, já os tinha escutado na infância em Coimbra. Numa reminiscência induzida pelas minhas histórias cheguei a lembrar e a comentar nesta ‘’nossa mesa semanal’’: eram fados que a minha avó Laura, oriunda dos arredores de Coimbra, Semide em Miranda do Corvo mais precisamente, cantava durante as tardes quando regressávamos da escola! E eram mesmo, com pequenas alterações é certo, à capela e sem guitarra, muitas vezes com uma marcação de palmas e até bater de pés, mas eram algumas das suas cantigas enquanto nos preparava, a mim e às minhas primas, o lanche. O que ela mais cantava era o Fado Menor do Porto disse um dia ao violista Vital De Assunção e, já fora deste circuito de tertúlia, ao violista (viola baixo) Joel Pina, que também gravaria para o Arquivo  Mural Sonoro. O que será explicado pelo facto de, como escrevi no início, a difusão e comunicação de massas, quer através da rádio como da televisão, ter possibilitado a um conjunto de pessoas de outras áreas geográficas, tanto no litoral como no interior, fora do meio cosmopolita lisboeta, a apreensão de alguns dos repertórios e os adaptassem algumas vezes no seu contexto rural. Ideia também reforçada por Joel Pina (viola baixo que acompanhou Amália Rodrigues até ao seu fim de percurso), oriundo da aldeia do Rosmaninhal, em conversa comigo. Em Idanha-a-Nova, no Rosmaninhal, comecei por ouvir a Maria Alice na grafonola de um vizinho e depois na rádio.

com José Pracana

com José Pracana

Sem dúvida que o modo como as melodias de cariz urbano foram apropriadas em contextos periféricos, afastados do centro (Lisboa) e se integraram no universo das práticas tradicionais expressivas de cada uma destas regiões se deveu em grande parte, na minha óptica, à presença da gravação sonora e sua comercialização, assim como da sua difusão através dos meios de comunicação de massas, que naturalmente amplificaram o Fado dentro e fora de Portugal. Tarefa conseguida a par, embora com maior eficácia, da aparentemente conseguida no regresso dos emigrantes portugueses, durante as férias festivas anuais, às suas vilas ou aldeias. Durante muito tempo no Luxemburgo e em Toronto as pessoas viviam um Portugal e um fado que já nem Portugal vive em si, dizia em Janeiro Eduardo Tereso, também engenheiro de formação, apaixonado pelo fado, ‘estudioso no oculto’ e figura habitual nas Tertúlias. A ideia mantida e perpetuada pelos emigrantes portugueses dentro das suas comunidades, talvez como forma de legitimarem a presença portuguesa através da impressão  da sua cultura no estrangeiro, entre Sociedades de Recreio, Colectividades e algumas Casas de Fado de imigrantes conterrâneos lá, especialmente entre os anos de 1970 e 1990, era a de um ‘’Portugal Musical’’, nomeadamente no domínio do fado, inalterado, que não se deixou acompanhar pelas mudanças estruturais da sociedade e da própria Música Popular, como o que aqui deixaram antes de partir, e há uns anos era dificílimo demovê-los dessa ideia (....) Já ninguém canta  ‘’É uma Casa Portuguesa’’, nem ninguém vive já amarrado a um xaile (…) agora há coisas que convém manter. Fazem parte do fado, refere Maria Júlia, aposentada mas figura habitual da tertúlia, numa das noites, ideia com a qual Susana Rodrigues, fadista e trabalhadora de uma casa de fados em Alfama que, entre furos e folgas, dá um salto à Muralha para acrescentar a sua interpretação na tertúlia e visitar o meu viola preferido, replica tantas vezes, quando é achada por lá. Hugo Cação, violista de fado que acompanha com regularidade Alice Pires (artista de revista e fadista), e é outra das figuras assíduas do encontro semanal.

Através da atmosfera de proximidade criada numa Tertúlia semanal com traços tão heterogéneos é possível perceber que o afastamento entre rural e urbano é tão presente quanto a sua aproximação, e que a analogia ao modo como estas melodias são incluídas no ambiente local fora do seu habitat e a transmissão geracional posterior que essa apropriação implicou faz todo o sentido pelos interesses e aspirações frequentes: a ideia de um meio interior que sonha com a capital e de uma capital que por vezes se vê representada através do interior.

Ao mesmo tempo, num ambiente fora deste de Tertúlia congregadora de dois universos à partida dissonantes, a apropriação local de um contexto urbano com o qual não se quis ou pôde conviver directamente, fez com que o impugnar sobre as suas características contextuais na cidade de Lisboa se perdessem na memória colectiva da maioria das pessoas. Para a minha avó, para mim e para as minhas primas, o Fado Menor do Porto era tão só  uma cantiga que a minha avó materna cantava e da nossa memória afectiva fez parte durante largos anos.

O interesse crescente por este domínio, potenciado pelos meios de comunicação e difusão, possibilitou um número grande de informações a seu respeito.

A tese sobre o enraizamento da guitarra portuguesa entre as camadas populares  antes do Fado assumir, pelo menos, este nome associando este instrumento musical inicialmente ao acompanhamento feito nos bailes em ambiente rural ao longo do país, mas especialmente na Estremadura (tese defendida por Rodney Gallop), bem como a utilização da guitarra servir para a bailação, fado em versão instrumental ou fado cantado à desgarrada, tese defendida por José Alberto Sardinha. que apresenta nas suas recolhas, situadas entre os anos de 1980 e 1990, alguns documentos do que designa de fados dançados alguns tocados com flauta e com um andamento vivo e apropriado para dançar, é quer uns queiram quer outros arranjem as mais estranhas explicações para justificar o contrário, a inquestionável presença de um modo geral de um género urbano não só na Cultura Popular urbana como no seio da Cultura Tradicional em contexto não urbano, que tanto apropriou, como em alguns dos casos adaptou uma cultura expressiva do centro e a fez coexistir com a sua local. Se pensarmos, fora desta esfera, com o aparecimento de pequenas orquestras e mais tarde, anos de 1970 e 1980, de conjuntos eléctricos fora de Lisboa percebemos que a natureza de um determinado domínio quando aponta um epicentro para as suas práticas e manifestações é porque ela já está, mesmo sem a ‘’intensidade’’ primeira que atingiu a superfície do solo, um pouco espalhada pelo resto das regiões fora dessa superfície ou centro.

Susana Rodrigues (fadista)

Susana Rodrigues (fadista)

Havia letras que eram já uma denúncia à exploração exercida sobre as classes trabalhadoras, e anteriores poemas de oposição à monarquia, entre outros e em Fevereiro de 2014 reparo num trabalho com algum tempo já de Rui Vieira Nery intitulado Propaganda pela Trova: Movimento Operário e Ideal Republicano no Fado de Lisboa até à Ditadura, que veio fortalecer ainda mais a ideia, que foi evoluindo de tertúlia para tertúlia, de que a expressão fados operários exaltada por uns e silenciada, aquando das minhas perguntas, por outros afinal estava aqui contextualizada, através de um levantamento de diversificadas fontes literárias e não só que demonstravam a lógica do seu uso.

Eu tenho muito cadastro no fado, disse numa das minhas visitas à sua Colecção Nuno Siqueira, quase contrastando com o anfitrião sempre cavalheiro que acompanha e elucida sobre algumas das histórias de dentro do género em cada tertúlia onde nos encontramos.

De facto, o cadastro que Nuno Siqueira a jeito de graça reclama, talvez nem esteja só confinado ao momento em que começa a ser presença assídua nas tertúlias e retiros de fado e a coleccionar objectos e documentação relacionados com o mesmo, talvez seja algo ainda mais longínquo e interiorizado dentro do ambiente familiar, já que Nuno Siqueira é primo direito de Teresa Siqueira Archer de Carvalho, mãe da fadista Teresa Siqueira e avó da fadista Carminho, sendo um paralelismo evidente a traçar entre a sua memória familiar e a expressividade de uma prática que abraçou desde muito jovem, mas que representa ou legitima uma série de comunidades populares sobretudo da cidade de Lisboa com as suas idiossincrasias embora simultaneamente inseparáveis quer do contexto global como da cultura popular tradicional.

Na descrição abrangente da primeira parte deste texto, mas que parte de questões que norteiam o meu trabalho de campo,  inserida no ambiente  de Tertúlia, resolvi destacar alguns dos repertórios tocados e interpretados

Eduardo Tereso

Eduardo Tereso

 Os oito registos no terreno aqui

Registo 1

‘’Variações em Ré’’ – Guitarrada

Nuno Siqueira, José Burnay, Carlos Albino (guitarras portuguesas)

Hugo Cação, Ricardo Caixado, José Infante (violas)

 Registo 2

Fado: ‘’Marcha do Alfredo Marceneiro’

Letra: João Ferreira-Rosa

Música: Alfredo Marceneiro

Tema: ‘’Fadista Velhinho’’

Intérprete: Eduardo Falcão

 Registo 3

Música: Joaquim Campos

Fado: ‘’Fado Tango’’

Letra: Nuno Siqueira

Tema: ‘’Rosa Vermelha’’

Intérprete: Eduardo Falcão

Registo 4

Música: José Marques

Fado: ‘’Fado Triplicado ’’

Letra: Maria Manuel Cid

Tema: ‘’Passeio à Mouraria’’

Intérprete: Maria Júlia

 Registo 5

Música: João Black

Fado: ‘’Fado Menor do Porto’’

(melodia tradicionalmente conferida a José Cavalheiro Jr e posteriormente atribuída ao fadista anarquista João Black)

Interpretação: Eduardo Tereso

 Registo 6

Música: Casimiro Ramos

Fado: ‘’Fado Alberto’’

Tema: ‘’Não Passes Com Ela à Minha Rua’’

Letra: Carlos Conde

Intérprete: Susana Rodrigues

 Registo 7

Música: Carlos da Maia

Fado: ‘’Fado Perseguição’’

Tema: ‘’ O Meu Rosário’’

Letra: Autor desconhecido

Intérprete: Maria da Luz Mesquitela

egisto 8

Música: Fernando Pinto Coelho

Tema: ‘’Verdes Campos’’

Letra: Maria Manuel Cid

Intérprete: Maria da Luz Mesquitela

 

 

referências biliográficas:  Alberto Pimentel, A Triste Canção do Sul, Livraria Central Gomes de Carvalho, 1904; António Arroio, O Canto Coral e a Sua Função Social, Coimbra/França Amado; 1909, Luís Moita, Canção dos Vencidos, Empresa do Anuário Comercial, 1936; Fernando Lopes-Graça, A Canção Popular Portuguesa, Public. Europa- América, 1953;  António Osório, A Mitologia Fadista, Livros Horizonte, 1974; Joaquim Pais de Brito, Fado Um Canto na Cidade, Etnologia I, 1983; Ruben de Carvalho, As Músicas do Fado, Campo das Letras; Salwa Castelo-Branco, Enciclopédia da Música em Portugal no Séc.XX, Círculo de Leitores, 2010;  Paulo Lima O Fado Operário no Alentejo, Tradisom 2011; Entrevistas: Vital D’Assunção, Joel Pina, Nuno Siqueira, José Pracana, Ruben de Carvalho, Arquivo Mural Sonoro

 

Viola de boca redonda

Viola de boca redonda

No que respeito diz às violas predominantes no arquipélago dos Açores já aqui lhe falei escrevendo da viola de corações, mas há ainda três tipologias de violas de boca redonda pelas ilhas açorianas: a viola de cinco parcelas, que arma com doze cordas e integra dois ou três bordões, a viola de seis parcelas, que integra quinze cordas, distribuídas em três parcelas de duas cordas e três parcelas de três cordas e a viola de sete parcelas, que integra dezoito cordas e que apresenta dificuldades no que concerne à sua afinação, execução e funcionalidade para o tocador, o que talvez justifique a sua raridade e o seu desuso.

Se na viola de corações a escala é composta por vinte e um trastos, doze deles no braço e nove deles sobre o tampo, na viola de boca redonda o número de trastos é variável bem como a forma como eles são distribuídos: doze deles sobre o braço na viola de cinco parcelas e dez deles na viola de seis parcelas, sem esquecer que elas ainda se distinguem e diferenciam de violeiro para violeiro no número dos restantes trastos sobre os tampos.

A viola composta por quinze cordas e conhecida na ilha Terceira por viola de seis parcelas tem o braço mais curto e uma caixa de ressonância mais larga. Tem dez trastos sobre o braço e entre sete e nove sobre o tampo.

Consta que os violeiros da família do Lobão imprimiam uma flor no extremo da pá da viola, uma prática que era comum em vários países europeus em que se esculpia uma flor ou figura do sexo feminino.

Quanto à discussão sobre a sua origem, existem variadíssimas referências quanto à origem da viola de seis parcelas, pelo que dada a não consensualidade e até controvérsia em torno deste capítulo não o abordarei aqui, sem contudo deixar de referir que entre as variadas teses consta a de Francisco José Dias em Cantigas do Povo dos Açores que na página 53 reflecte sobre a possibilidade de influencia por parte da presença castelhana no arquipélago durante os séculos XVI e XVII respectivamente. Há ainda quem refira a proximidade com o violão e a possibilidade da viola de boca redonda se ter deixado influenciar por esse instrumento musical, pedindo de empréstimo a ele o bordão mais grave (nota ''mi'') e as dimensões maiores da caixa de ressonância.

Em O Baile Popular Terceirense, Machado Drumond que se dedicou ao estudo do folclore na ilha Terceira aborda a presença frequente  dos tocadores em quase todas as freguesias rurais da ilha ainda no início do século XX. Munidos da respectiva viola de cinco parcelas e de dezasseis pontos, suspensa do antebraço esquerdo pelas salientes cravelhas.

É  de salientar que também no encordoamento destas violas há uma variação consoante o tocador e a ilha em que são tocadas. Há uma abrangente variedade de métodos, de cordas e combinações, que lhe mostrarei num outro texto respectivo aos diferentes modelos, construtores, métodos de execução e aprendizagens.

A fotografia que destaco foi cedida por  Maria Antónia Fraga Esteves e pertencem à sua colecção.

São ambas violas  terceirenses. A primeira, do lado esquerdo, mais pequena (parece maior mas não é) foi construída por Ernesto da Costa, Vale Farto, Terceira; é uma viola de cinco parcelas e doze cordas. A segunda, do lado direito, foi construída, segundo dados de Maria Antónia, perto do ano de 1987 por José Augusto Lobão, Angra do Heroísmo, Terceira, e é uma viola de seis ordens e quinze cordas.

os direitos de todas estas fotos são reservados. Colecção de Maria Antónia Esteves

os direitos de todas estas fotos são reservados. Colecção de Maria Antónia Esteves

Fontes usadas na pesquisa: Cantigas do Povo dos Açores, Francisco José Dias, O Baile Popular Terceirense, Machado Drumond, conversa e troca de impressões com Maria Antónia Esteves.

 

 

Viola de corações

Comment

Viola de corações

Há praticamente 100 anos o musicólogo português Michel' Angelo Lambertini (1852-1820) referenciava este instrumento musical no Catalogo Sumario do Primeiro Nucleo de um Museu Instrumental em Lisboa (ano de 1914).

Com uma caixa estreita e comprida, uma cintura pronunciada e uma boca em forma de dois corações unidos com as pontas de fora, é assim que imediatamente a maioria das pessoas descreve uma das violas portuguesas mais características.

 

A viola tem dez cordas

Juntamente dois bordões

E acima do cavalete

Também tem dois corações

(Quadra Popular, autor desconhecido)

 

Mas, há elementos de ordem concreta e técnica neste cordofone, como sejam a sua escala composta de vinte e um trastos, dos quais doze estão sobre o braço e nove sobre o tampo. O braço é comprido, numa escala até à boca e o seu tampo é distinguido pela diferença das madeiras.

Arma com doze cordas, dispostas em cinco parcelas: as três primeiras duplas e as duas seguintes triplas.

Com uma forte predominância, do ponto de vista geográfico, em todo o arquipélago dos Açores à excepção da ilha Terceira, ilha onde apesar de alguma presença não é tão predominante, esta viola apresenta aspectos diferenciados na sua construção, afinação e encordoamento consoante a ilha.

A sua expressão transnacional não surge só no século XXI com a crescente globalização, como nos comprova a exposição com o tema: Intstrumentos musicais e viagens dos portugueses organizada no ano de 1986/7 no Museu de Etnologia em Lisboa onde era apresentada uma viola na ilha de Maio (ilha que faz parte do grupo de Sotavento. A maior povoação desta ilha em Cabo Verde é a Vila do Maio) que se aproximava da viola de dois corações: cinco ordenamentos de cordas duplas, abertura sonora em forma de dois corações, escala rasa com o tampo, com doze trastos sobre o braço. Além disso, em Junho do ano de 2007 a RDP-África apresentou um programa acerca da ilha Brava (ilha de  Cabo Verde situada no Sotavento, a oeste da ilha do Fogo e que conta com cerca de 6800 habitantes) no qual um grupo musical que actuou apresentava uma viola com este tipo de abertura sonora.

Também no Brasil, Osvaldo Ferreira de Mello cuja investigação se centrou no ''Estudo das identidades da música catarinense com origens açorianas'', há referência da presença da quase inexistente viola de doze cordas na ilha de Santa Catarina (em  documentação da Universidade Federal de Santa Catarina encontram-se estes dados) e até de um só coração. Doralécio Soares, folclorista e presidente da Comissão Catarinense de Folclore também o afirmou em entrevistas.

A viola de corações é muitas vezes confundida com a amarantina na sua figura e por ter dez trastos, mas na realidade a viola que mais proximidades tem com esta viola açoriana é a viola toeira de que já aqui lhe falei, na medida em que possuem doze cordas em cinco parcelas e afinações semehantes, exceptuando a afinação mais usada nas ilhas do grupo oriental, já a amarantina tem os dez trastos sobre o braço, alguns meio trastos suplementares e dez cordas de afinação diferente e possui ainda ornamentos distintos. Talvez as diferenças mais visíveis entre estas violas sejam o género de abertura sonora mais comum em cada uma: abertura de boca oval deitada na viola toeira, abertura de boca redonda na ilha Terceira que aprofundarei num outro texto nesta área do Portal; dois corações encostados um ao outro com a frente virada para lados opostos nas outras ilhas.

Num outro texto exporei os tamanhos e moldes a que corresponde cada uma das designações da viola de corações, bem como alguns violeiros (construtores deste instrumento), especificamente: Adelino Vicente e João Barbosa da Silva.

 

Vídeos de demonstração de execução de Violas da Terra

Vídeo 1: Foi integrado num concerto que ocorreu em Abril de 2013 na Casa do Povo de São Mateus do Pico, nos Açores. "Trinando os Dois Corações" - Carinhosas é interpretado por dois tocadores, dinamizadores e formadores de violas da terra no arquipélago: Rafael Carvalho e Orlando Martins.

Vídeo 2: Uma transcrição e interpretação de Rafael Carvalho de ''Fado Velho'', um dos temas que integra o fonograma Preciosos Imprevistos de Miguel de Braga Pimentel.


Vídeo com ligação externa de uma actuação do Conjunto Cisa - Irmãos Unidos em Cabo Verde, onde aparece a viola de corações

 

Fontes usadas na Pesquisa: Instrumentos Musicais Populares dos Açores, Ernesto Veiga de Oliveira, Centro de Documentação Museu da Música, A viola de dois Corações, Manuel Ferreira - Ponta Delgada, 1990.

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Coimbra: Canção e Guitarra  (a figura de Adriano Correia de Oliveira), opinião

Coimbra: Canção e Guitarra (a figura de Adriano Correia de Oliveira), opinião

por Soraia Simões [*]

O fado de Coimbra não é de direita nem de esquerda: é um depósito cultural, é um produto que tem a sua época e se justifica em determinado contexto coimbrão, José Afonso (25 de Novembro de 1981, Jornal Se7e)

 

Muito para além de quem se situava à esquerda ou à direita a Canção de Coimbra a partir da sua ‘nova fase’ no ano de 1978 foi progredindo quer no tempo como nas suas variantes. Como acontece a grande parte das práticas de cariz local, apesar das novas influências que apareceram, houve características que se mantiveram dando sentido  à manifestação cultural e musical viva que é, exposta também no seu ressurgimento e aparecimento de 'novos' letristas, poetas e executantes que atribuíram à canção um novo fôlego.

 

Coimbra menina e moça

Rouxinol de Bernardim

Não há terra como a nossa

Não há no mundo outra assim

 

Coimbra é de Portugal

Como a flor é do jardim

Como a estrela é do céu

Como a saudade é de mim

(Coimbra Menina e Moça, Fausto Frazão)

 

A cabra da velha torre

Meu amor chama por mim

Quando um estudante morre

Os sinos tocam assim

 

Ó quem me dera abraçar-te

Junto ao peito, assim, assim

Passar a morte e levar-te

Bem abraçadinha a mim

(A Cabra da Velha Torre) 

 

Ainda que a maioria das práticas musicais na cultura popular reclamem invariavelmente até si noções de ancestralidade e tradição, tantas vezes reforçando a sua componente de preservação, afirmando a partir daí a sua suposta ‘identidade’’, a realidade é que elas são mutáveis e como tal as retóricas que evidenciam esse imaginário de pertença e preservação são na sua franca maioria discursos públicos do foro promocional ou jornalístico.

Se observarmos, como exemplo, os textos que acompanham os fonogramas gravados na década de 60 neste domínio musical e cultural, nomeadamente os textos de Manuel Alegre e Artur Jorge Marinha no primeiro e segundo fonograma de Adriano Correia de Oliveira, notaremos que há já um pensamento contrário e uma reflexão crítica no que respeito dizia a esse passado romantizado e inscrito na história musical coimbrã, papel assumido sobretudo pelos meios de difusão dominantes.

A tradição pela tradição sem questionamento, a arte pela arte e o desapego e desvalorização a um foco que não estivesse ancorado na denúncia das fragilidades sociais que os atingia à época tornaram-se aspectos elucidados claramente em alguns dos seus textos, mas também das suas mensagens públicas (sejam orais ou escritas). Exemplo: O que tem havido sempre, através das gerações que passam por Coimbra, é a necessidade de cantar, e de exprimir cantando, os sentimentos próprios da juventude. Mas esses sentimentos são condicionados pelas circunstâncias históricas e sociais de cada geração (…) versa Manuel Alegre numa das partes do seu texto.

No segundo EP de Adriano Correia de Oliveira no tema ‘’Balada do Estudante’’ (depois ‘’Capa Negra Rosa Negra’’) de Manuel Alegre (as duas primeiras quadras) e António Aleixo (a terceira estrofe, apesar de algumas alterações) percebe-se de imediato o foco na situação que então se vivia no seio académico e cultural coimbrão:

Capa Negra rosa negra

Rosa negra sem roseira

Abre-te bem nos meus ombros

Como ao vento uma bandeira

 

 

 

Eu sou livre como as aves

E passo a vida a cantar

Coração que nasceu livre

Não se pode acorrentar

 

Quem canta por conta sua

Canta sempre com razão

Mais vale ser pardal na rua

Que rouxinol na prisão

 

Adriano Correia de Oliveira, figura  ímpar da história musical coimbrã, envolveu-se como estudante universitário de forma activa na vida académica (cívica, política e cultural) da AAC (Associação Académica de Coimbra). No ano de 1960 ficaria associado ao Grupo Universitário de Danças Regionais da AAC, no ano de 1961 seria subscritor do manifesto ‘’Protesto’’, que por sua vez fora atacado pela direita por altura da publicação de ‘’Carta a Uma Jovem Portuguesa’’ da autoria de Artur Jorge Mourinha de Campos numa das edições da revista Via Latina, no ano de 1964 Adriano integrava ainda o CITAC (Iniciação Teatral da Academia de Coimbra), no ano de 1965 foi mencionado pelo Conselho de Repúblicas para a Assembleia Geral da AAC (a substituta), mas seria sem sombra de dúvida a inscrição e militância no Partido Comunista Português no ano de 1964 que mais firmava a sua veemente oposição ao regime do Estado Novo. Tal actividade refectir-se-ia de modo natural no seu desempenho como intérprete e no cunho contestário que imprimiu e que ficaria para sempre ligado à história da Canção de Coimbra.

Acompanhado por António Portugal e Rui Pato, Adriano Correia de Oliveira gravaria, entre outros, estes quatro marcos no chamado ‘’Canto de Intervenção’’ associado à cidade do Mondego: ‘’Trova do Vento que Passa’’, ‘’ Pensamento’’, ‘’Capa Negra Rosa Negra’’ e ‘’Trova do Amor Lusíada’’, temas que compunham o EP Trova do Vento Que Passa.

Neste EP, decisivo na afirmação de Adriano C. de Oliveira no âmbito da Canção de Coimbra, ‘’Capa Negra Rosa Negra’’ deixa cair a quadra de António Aleixo e aparece como segunda estrofe uma nova quadra de Manuel Alegre: Abre-te bem nos meus ombros/Vira costas à saudade/ Capa negra rosa negra/ Bandeira de liberdade. Além de, como anteriormente referido, serem gravadas duas canções de explicita impressão política: ‘Pensamento’’ e ‘’Trova do Vento que Passa’’.

Pergunto ao Vento que passa

Notícias do meu país

E o vento cala desgraça

O vento nada me diz.

 

Mas há sempre uma candeia

Dentro da própria desgraça

Há sempre alguém que semeia

Canções no vento que passa.

 

Mesmo no tempo mais triste

Em tempo de servidão

Há sempre alguém que resiste

Há sempre alguém que diz não!

 

Trova do Vento que Passa (Manuel Alegre/António Portugal, Adriano C.de Oliveira)

 

Meu Pensamento

Partiu no Vento

Podem prendê-lo

Matá-lo não.

 

Meu pensamento

Quebrou amarras

Partiu no vento

Deixa  guitarras.

Meu pensamento

Por onde passas

Estátua de vento

Em cada praça.

 

Foi à conquista

Do novo mundo

Foi vagabundo

Contrabandista

 

Foi marinheiro

Maltês ganhão

Foi prisioneiro

Mas servo não.

 

E os reis mandaram

Fazer muralhas

Tecer as malhas

De negras leis.

 

Homens morreram

Chamas ao vento

Por ti morreram

Meu pensamento.

 

Pensamento (Manuel Alegre/António Portugal, Adriano C. de Oliveira)

 

A permeabilidade da Canção de Coimbra para os temas mais reaccionários contribuiu para que segmentos mais progressistas da vida académica ligados à guitarra e à canção depreendessem na Canção de Coimbra uma ‘’arma de natureza política’’ e a Canção de Coimbra passa a ser uma das partes fundamentais do combate associativo e da luta estudantil.

 

O designado de ‘’Movimento das Trovas e Baladas’’ sustentar-se-ia de um discurso político-ideológico pensado e estruturado. A poesia de  Artur José Marinha, José Carlos Vasconcelos, Manuel Alegre e a interpretação e postura de Adriano Correia de Oliveira deram origem a um novo capítulo na história musical da Canção de Coimbra, enquanto António Portugal  (co-fundador do ‘’Movimento das Trovas’’ e com trabalho gravado entre 1956 e 1958 com o grupo Coimbra Quintet) também se afirmava, distanciando-se da figura do segundo guitarra de A.Pinho Brojo.

A dimensão da Guitarra de Coimbra especialmente a partir destes acontecimentos passa a ter um impacto notável a um nível transnacional. Aspecto que desvendarei um pouco mais numa terceira parte destas considerações neste Portal e que fazem parte do trabalho maior  feito para o Documentário referenciado já na primeira parte destas  considerações online.

De salientar que no ano de 1969 Adriano Correia de Oliveira foi mencionado como um dos grandes protagonistas do movimento intervencionista associado à Canção em Coimbra no Programa Zip-Zip , inclusive por Luiz Goes que esteve presente, um programa onde muitos criticaram a ausência de José Afonso, que não marcaria a sua presença devido a uma imposição da sua não comparência, sob pena de represálias, dirigida ao programa em questão pela PIDE.

A crise académica de 1969 (a partir de Abril) seria mais profunda, como relata o Historiador e Cultor da Canção de Coimbra Jorge Cravo fundamentalmente no seu livro ‘’A Canção de Coimbra em Tempo de Lutas Estudantis’’, muito por força da falta de abertura de Américo Tomás, então Presidente da República, em dar voz ao Presidente da Direcção Geral da AAC no decorrer de uma cerimónia integrada na inauguração de um novo edifício na Universidade de Coimbra, no Edifício das Matemáticas.

[1] para citar esta opinião: Simões, Soraia «Coimbra: Canção e Guitarra (a figura de Adriano Correia de Oliveira), opinião» Breves Considerações, plataforma Mural Sonoro em 13 de Março de 2014.

Mais em filme A Guitarra de Coimbra, 2019, RTP2 de Soraia Simões e realização de José Ricardo Pinto .

Imagem usada na capa deste texto do livro ''Adriano Correira de Oliveira - Songbook'' de 2012, Chancela: Prime Books

Viola Beiroa

Viola Beiroa

Na região centro do país, região da Beira Baixa, nomeadamente na zona leste do distrito de Castelo Branco, há uma viola com afinações variadas  chamada ainda, especialmente pelos mais velhos da região (tocadores e não tocadores/simpatizantes da prática deste instrumento musical), de bandurra. Não consegui identificar, por ser uma informação mutável, ou seja: que varia consoante a bibliografia e o que referem os executantes, qual é o momento/data em que se começa a designar este cordofone de viola beiroa, contudo é assim que entre os organeiros, ou os que centram o seu estudo nos instrumentos musicais tradicionais em Portugal (da área da Conservação e Restauro inclusivé), ela é chamada.

Esta viola arma com dez cordas distribuídas por cinco parcelas e com duas cordas complementares (designadas de requintas) que se encontram presas a um cravelhal que se situa no fundo do braço da viola perto da sua caixa de ressonância.

 

Um dos pormenores mais singulares deste instrumento é a afinação. Entre as afinações variáveis a mais difundida no circuito de músicos e executantes é a que é utilizada em Idanha-a-Nova: ré, si, sol, ré, lá.

As duas cordas suplementares, as requintas, possuem um comprimento curto e uma sonoridade aguda. Tocam-se habitualmente soltas e são afinadas em ré.

Um dos mais influentes  tocadores desta viola foi Manuel Moreira (imagem referente a ele na capa deste texto), cuja técnica  consistia no uso da mão direita com utilização do polegar para os 'bordões de requintas' enquanto o dedo indicador em dedilhado (expressão cujo sentido já expliquei aqui) para as fundeiras, segundas e toeiras. Movimento, aliás, com que fraseava a melodia.

Entre os colectores e folcloristas dedicados ao registo e levantamento deste instrumento destaco: Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira, enquanto no que toca à transcrição de algum deste repertório para este instrumento nesta região: Domingos Morais.

É ainda de salientar que uma das entidades que tem promovido este instrumento é a Associação Cultural e Recreativa As Palmeiras  através do seu Grupo de Danças e Cantares de Castelo Branco. 

Ao contrário de outras violas tem uma capacidade ilimitada de se entrosar noutros domínios que não só o da 'música tradicional', pelo que mostro duas interpretações do mesmo instrumento. Uma de Amadeu Magalhães e outra de um conjunto/orquestra de violas beiroas, que tem nos seus integrantes um dos dinamizadores activos desta viola: Miguel Carvalhinho, na interpretação de um tema tradicional assaz popular.

Biliografia usada na pesquisa: Música Popular Portuguesa, Armando Leça, Instrumentos Musicais Populares Portugueses, Ernesto Veiga de Oliveira, Transcrições de Domingos Morais, Recolhas de Benjamin Pereira

Viola Braguesa

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Viola Braguesa

As violas tradicionais de Portugal continental compreendem duas formas basilares: a viola das terras ocidentais com uma pequena cintura e a viola do leste com uma cintura mais acentuada.

Dentro da forma das violas das terras ocidentais encontramos a viola braguesa, a viola amarantina e a viola toeira acerca da qual já escrevi neste portal.

A viola braguesa, viola de Braga, ou simplesmente braguesa como se apelida mais frequentemente, é considerada uma das violas em Portugal com um maior número de simpatizantes e tocadores, o instrumento de destaque no Minho, Entre Douro e Minho. É bastante usada para tocar repertórios no domínio da 'música tradicional'  como rusgas, chulas ou desafios.

Na gíria, entre executantes, diz-se que ela se ''toca de rasgado'' (rasgueado), pelo facto de ser executada em passagens rápidas, para cima e para baixo, com auxílio das unhas, por norma na formação harmónica de tónica e dominante (Dicionário de Música, T.Borba e L.Graça, entrada ''rasgado'').

Como grande parte das violas continentais a viola braguesa tem uma escala rasa com o tampo e apresenta dez trastos sobre o braço da viola. À excepção de três dos seus bordões arma com dez cordas de aço de espessura fina tendo uma afinação semelhante à por norma usada na guitarra portuguesa (sol, ré, lá, sol, dó ou lá, mi, si, lá, ré) do agudo para o grave.

A abertura de som desta viola é oval, redonda ou, como também se diz na gíria, em ''boca de raia'', pois é caracterizada estética/visualmente como uma viola com dois olhos e uma boca que ri.

Notas:

A expressão ''Varejar as cordas'' significa que elas são tocadas com um dedo, já ''rasgar as cordas'' (rasgueado) significa que elas são tocadas com dois ou mais dedos. Na prática varejar e rasgar, dois dos termos mais usados entre os tocadores, significam dedilhar só que é possível fazê-lo com ambas as partes dos dedos: a parte de fora (unha) e a parte de dentro (polpa).

Viola braguesa por Amadeu Magalhães

Braguesa, disco de Júlio Pereira (1983)

 

Bibliografia/fontes usadas na pesquisa: Dicionário de Música, T.Borba e L.Graça, Instrumentos Musicais Populares Portugueses, Ernesto Veiga de Oliveira, Entrevista a Amadeu Magalhães para Arquivo

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Viola Toeira

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Viola Toeira

A viola toeira é um instrumento musical  inicialmente predominante na região da Beira, onde acompanhou as danças e cantigas no contexto rural da população dessa região. Na cidade de Coimbra foi durante um largo período de tempo o instrumento predilecto dos estudantes da Academia. Foi usado em serenatas até ao aparecimento da guitarra que aconteceria por volta do ano de 1850 (pág 122, Música Popular Portuguesa, Armando Leça).

Característica do centro litoral e região de Coimbra esta viola diferencia-se da viola braguesa especialmente no seu encordoamento. Arma com doze cordas alinhadas em cinco ordenamentos: as três primeiras cordas duplas e as outras triplas. Ao contrário da viola braguesa que possui dez cordas. 

A viola toeira é, sem qualquer dúvida, um dos instrumentos musicais que melhor caracteriza a ''sonoridade coimbrã'' entre os séculos XVIII e meados do século XIX.

O seu papel é de tal relevância que tanto entre a comunidade académica coimbrã como nas áreas rurais da cidade marca presença.

É comum encontrarmos outras designações quando o assunto é este instrumento. Em variada documentação sobre cordofones que se tocavam na região centro litoral, que inclui quadras populares, mencionam  “viola” e “viola de arame” (de salientar que a viola de arame, típica no arquipélago dos Açores é, com a guitarra de Coimbra, dos primeiros instrumentos a entrar no ensino), também com mais recorrência encontramos o nome “banza” associado a este instrumento.

Armando Leça (1893-1977) adoptou a denominação, comum entre os violeiros de Coimbra e usada de igual modo por um escritor/cronista conimbricense de nome Octaviano de Sá no início do século XX, de ''viola toeira'' no livro “Música Popular Portuguesa”. Também no livro ''Instrumentos Populares Portugueses” do ano 1966 da autoria de Ernesto Veiga de Oliveira voltamos a encontrá-la sob esta designação.

A identificação pelo nome atribuído a este instrumento deixa de estar confinada ao circuito de executantes/à sua comunidade de prática - violeiros, cantadeiras e versejadores -, e passa a ser usada por um maior leque de indivíduos fora desse núcleo: nomeadamente folcloristas, cronistas e também jornalistas, historiadores e poetas/ensaístas.

Além das serenatas futricas e encontros de boémios, nas romarias e festas religiosas era comum encontrá-la, como os casos: da Festa do Espírito Santo em Santo António dos Olivais, Santo Amaro, (Lages), Senhor da Serra (Semide, Miranda do Corvo), São João da Figueira da Foz, Nossa Senhora da Encarnação (Buarcos), Santa Comba (Quinta dos Melros), arraiais de São João, São Martinho do Bispo e Fala (margem esquerda do Mondego), Rainha Santa Isabel, e até à beira-rio (Mondego) em encontros de fim de tarde.

A viola toeira marcou presença tanto no domínio plebeu como nos salões e teatros. Quer os mais clássicos repertórios como as melodias mais populares nela se tocaram.

Quanto ao alcance público da sua feitura/produção destacam-se versões patentes no Museu Nacional Machado de Castro (oficina dos Brunos) e no Museu da Música (Lisboa, Estação de Metropolitano do Alto dos Moinhos, ver exemplares de José Bruno e António Augusto dos Santos).

A publicação do método de Manuel da Paixão Ribeiro no ano de 1789, onde o cordofone é associado a um repertório de salão que remete para a fidalgia e burguesia (modinhas e minuetos), e o seu fabrico na oficina dos irmãos Brunos, no Paço do Conde, nas décadas de 1850 e 1860 dão-lhe ecos de uma preocupação e exigência no que concerne ao seu contexto, estudo e fabrico.

Também no apogeu do seu destaque no seio da recepção musical (entre os executantes) por volta de 1960, salientam-se entre essa exigência e foco na credibilidade de execução/produção continuadores como os construtores/executantes  António Augusto dos Santos e  Raul Simões. Este último, que acompanhava a cantadeira Estela Abrantes revelando notável mestria na execução dos rasgados, alternados com “pancadas” de tampo. Raul Simões é referenciado, por quem conviveu com ele na sua oficina no bairro de Santana, não só pelo seu papel na  construção de violas como na mestria com que percutia e ''rasgava'' o instrumento.

Actualmente, há músicos que retomam o som e musicalidade deste instrumento. Na recolha de entrevista no âmbito deste trabalho (História Oral, 29 de Abril de 2013) feita ao músico Amadeu Magalhães ele expressa algumas das características individuais das várias violas que toca, reflectindo que há uma proximidade entre a toeira e braguesa no modo de as executar.

 

Notas

Fotografias de Violas construídas por Raul Simões.

Vídeos de execução de viola toeira por Raul Simões e viola da terra e toeira por Rafael Carvalho e Amadeu Magalhães.

Bibliografia usada na pesquisa:  Nova Arte da Viola, 1789, Manuel da Paixão Ribeiro, Música Popular Portuguesa de Armando Leça, Instrumentos Populares Portugueses de Ernesto Veiga de Oliveira, Elementos para a abordagem da Tocata Tradicional Mondeguina, Blogue Guitarra de Coimbra, de António Manuel Nunes.

Tampo em pinho, ilhargas e costas em pau rosa

Tampo em pinho, ilhargas e costas em pau rosa

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Gramofone

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Gramofone

Com a invenção do gramofone por Emil Berliner no ano de 1888  e a concorrência de outro formato: os discos de goma-laca, o fonógrafo inventado por Thomas Edison entra em declínio.


O circuito de comercialização de  cilindros foi diminuindo e o dos discos aumentando. No início, não porque o fonograma (o disco) fosse um meio  com melhor "qualidade" que o cilindro, mas especialmente porque o fonograma/disco suplantava as dificuldades técnicas da reprodutibilidade das gravações e  das dificuldades do cilindro enquanto produto.


O disco possibilitava ainda a prensagem como técnica de reprodução em massa, além de que o cilindro não permitia selos fonográficos, não tinha espaço para capas e dois cilindros com a mesma música do mesmo músico não eram exactamente semelhantes, na medida em que a sua reprodução exigia várias gravações por parte dos músicos. Era consideravelmente limitado o número de cópias que podiam ser feitas a partir de um cilindro.


Em 1912, a Edison Records (editora de Edison) passou a comercializar discos e aparelhos que tocavam esses discos.


O gramofone, do alemão Emil Berliner, e o disco de 78 rpm transformaram-se à época no padrão do mercado mundial, que só seria suplantado  com a invenção das gravações eléctricas em 1925, às quais Edison não adere até Junho de 1927, quando já era tarde e a grande depressão provocava a falência da sua companhia discográfica  (Edison Records) em Outubro de 1929.


Em contraste com o cilindro de Thomas Edison, o gramofone incluía um disco giratório coberto com cera, goma laca, vinil, cobre, entre outros, onde eram, através de uma agulha, gravadas vibrações de um som emitido e afunilado numa corneta, interligada a uma membrana, que sustentava a agulha. 


Com a emissão do som, o ar movimentava-se vibrando essa espécie de 'membrana laminada' que por sua vez fazia a agulha riscar em forma de ondas a superfície do disco que ia girando.

Ao girar o disco  de forma inversa já riscado com outro tipo de agulha em contacto, esta lia-o e transmitia as vibrações para a membrana referida. As vibrações, amplificadas pela corneta, emitiam o som.

 

Som gravado durante recolha de entrevista a Nuno Siqueira acerca da sua Colecção. Toca Ercília Costa no gramofone.

Caixa com agulhas, Velharias, Jardim da Estrela, Lisboa

Gramofone, Antero Santos, Velharias no Jardim da Estrela, cidade de Lisboa

Gramofone, Antero Santos, Velharias no Jardim da Estrela, cidade de Lisboa

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Fonógrafo

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Fonógrafo

O fonógrafo é um aparelho que foi criado  no ano de 1877 por invenção de Thomas Edison. Tinha como objectivo principal  a gravação e reprodução de sons através de um cilindro. Foi o primeiro aparelho capaz de gravar e de reproduzir sons. 

Antes do fonógrafo, houve um conjunto de invenções que tentaram cumprir a gravação de forma mecânica usando para tal as vibrações sonoras. O caso do  vibroscópio inventado por Thomas Young, que foi o primeiro a traduzir as vibrações sonoras sob representação gráfica analógica utilizando, para o efeito, como meio um cilindro, ou do fonoautógrafo inventado por Leon Scott, o qual utilizava já um sistema semelhante ao que viria mais tarde a ser utilizado pelo fonógrafo de Edison: um cone acústico  para captar o som e fazer vibrar um diafragma localizado no final do cone. Sob a vibração do diafragma uma agulha gravava sinais num cilindro que representavam as ondas sonoras que se propagavam no ar. Na realidade, eram  aparelhos criados em que a principal preocupação era a de  executar representações gráficas das ondas sonoras, de modo a possibilitar estudos de acústica, sem  pretensão de  reproduzirem o som gravado para quaisquer fins comerciais.

Ao contrário destas e outras tentativas, o fonógrafo assume ainda a capacidade de também reproduzir os sons que gravava, incitando a novas leituras e possibilidades, como a hipótese de comercialização dos sons.
Só com a informação descritiva de Charles Cros do parleofone é que a preocupação com a gravação e a reprodução do som gravado no mesmo aparelho começa a ganhar força e é suplantada por T.Edison na medida em que, apesar do alerta de C.Cros este nunca chegou a conceber as suas ideias.


Os impactos da invenção do fonógrafo na História da Música são notórios. O aparelho anunciado por T. Edison no final do ano de 1877  foi apresentado ao público e assumiu-se ao longo das décadas seguintes e até hoje como um feito notável nos finais do século XIX.


O aparelho que congregava um cilindro com pequenos sulcos era revestido por uma folha de estanho. Uma ponta aguda era pressionada contra este cilindro e na ponta oposta estava um diafragma (uma membrana circular, cujas vibrações convertiam sons em impulsos mecânicos e vice-versa) acoplado a um bocal de grande dimensão em forma de cone. O cilindro era girado manualmente e, à medida que o operador  falava para esse  bocal, a voz fazia o diafragma vibrar, o que permitia a ponta aguda criar um sulco parecido na superfície do cilindro. Quando a gravação estava completa, a ponta era substituída por uma agulha e o cilindro era girado no sentido contrário: a máquina desta vez reproduzia as palavras gravadas e o cone amplificava o som.


O aparelho foi patenteado em 1878 e apresentou, apesar de tudo, dificuldades no início da sua comercialização. Houve pouco interesse da parte de músicos e editores e T. Edison chegou a recusar a utilização da sua invenção  para fins de entretenimento, acabando por se dar prioridade à lâmpada incandescente.


Só quando Charles Tainter e Alexander Graham Bell, já no ano de 1886, aperfeiçoam a invenção de Edison, criando o cilindro removível (uma vez que até então o meio usado na gravação encontrava-se fixo ao aparelho) e mudando a sua composição para papelão coberto com cera, é que T.Edison resolve voltar a trabalhar na sua criação inventando um cilindro feito inteiramente à base de cera (resolvendo o problema da fragilidade do cilindro que rachava devido à dilatação diferente dos materiais em resposta ao calor).


Duas empresas  foram formadas para explorar o cilindro e, no final da década, a comercialização deste e outros aparelhos e de cilindros virgens e gravados com música ou palavra falada começou a dar lucros significativos nos Estados Unidos da América.

 

Aparelho registado durante recolha de entrevista com Nuno Siqueira acerca da sua Colecção.

Aparelho registado durante recolha de entrevista com Nuno Siqueira acerca da sua Colecção.

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Pianola

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Pianola

A pianola é na verdade um piano que possui dispositivo para executar automaticamente a música, por meio de pedais e alavancas manuais. O mecanismo original, patenteado em 1897 pelo engenheiro americano Edwin S. Votey, era instalado diante do teclado e consistia num rolo de papel perfurado com a notação da peça que se pretendia executar, accionado pelos pedais. Cada perfuração baixava uma tecla e impulsionava o respectivo martelo, o que substituía as mãos. Mais tarde o mecanismo foi incorporado ao instrumento, que passou a possibilitar uma considerável variação de dinâmica e andamento.

Foram várias as obras e estudos que este instrumento inspirou, veja-se a Toccata de Hindemith, por exemplo, composta no ano de 1926.

Vários foram os músicos que escreveram peças sem cuidado, dadas as limitações impostas pelo tamanho da mão do executante.

Este instrumento musical também é conhecido como piano mecânico.

 Contudo, o sucesso que a pianola atingiu no início do século XX não foi mantido nas décadas que se seguiram e a sua projecção entre a recepção musical acabou por ser efémera.

A partir dos anos de 1990 os pianos mecânicos assumem grande notoriedade e a sua funcionalidade, à época, é um dos principais factores para a sua popularidade entre a recepção: estes permitiam a utilização dos dados armazenados numa disquete de computador e usando-os conseguiam  gravar e reproduzir com fidelidade uma execução em 'tempo real'.

Nota: Demonstração do funcionamento deste instrumento 

Fotografia: Rolo de papel perfurado com ''Fado da Granja'' de António Menano, que toca na pianola nesta demonstração

História Oral. 2014. Mural Sonoro. Nuno Siqueira.

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Guitarras de Coimbra e Lisboa, breves notas

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Guitarras de Coimbra e Lisboa, breves notas

Página de Facebook conferida à obra de Raul Simões (Guitarra de Coimbra construída por Raul Simões.

Página de Facebook conferida à obra de Raul Simões (Guitarra de Coimbra construída por Raul Simões.

imagem (Guitarra de Coimbra construída por Fernando Meireles)

imagem (Guitarra de Coimbra sem o fundo construída por Óscar Cardoso)

imagem (Guitarra de Coimbra sem o fundo construída por Óscar Cardoso)

O instrumento que hoje chamamos guitarra portuguesa assumiu, até ao século XIX, por toda a Europa nomes como: cistre (França), cetra e cetera (Itália e Córsega), Cítara (Portugal e Espanha), Cittern (Ilhas Britânicas), cister e cithern (Alemanha e Países Baixos).

A afinação nominal, ainda hoje usada na guitarra, mantém características das cítaras do Renascimento (as mesmas relações intervalares).

A guitarra apresenta-se hoje em dois modelos diferentes. A de Lisboa (mais aguda) e a de Coimbra (mais grave). A diferença tímbrica de ambas é notória e tal facto deve-se não só às diferenças da sua construção como da sua execução, além da diferença, já mencionada, de tessitura (mais aguda/mais grave).

A afinação nominal é então, do agudo para o grave, a seguinte: si (3), lá (3), mi (3), si (2), lá (2) , ré (2) no caso da Guitarra de Lisboa e lá (3), sol (3), ré (3), lá (2), sol (2), dó (2) no caso da Guitarra de Coimbra.

Curiosidade: Entre as mais variadas perspectivas, e teses, acerca de Guitarreiros em Coimbra difundidas nos meios de comunicação, mas também académicos, não consta a obra de Raul Simões, um dos primeiros guitarreiros de Coimbra e construtor de Artur Paredes.

Raul Simões tinha por profissão marceneiro, dedicando-se à construção e reparação de instrumentos de cordas na oficina da sua residência, cita na Rua Dr. Felipe Simões, nº 9, Bairro de Santana. Para António Nunes, Raul Simões tem sido referenciado como o último grande violeiro de Coimbra, “elogio que também enuncia um lamento sobre práticas artesanais em vias de desaparecimento no tecido urbano de Coimbra pela década de 1970”. Armando Simões, na sua obra A Guitarra. Bosquejo histórico descreve com pormenor a morfologia da antiga guitarra de Coimbra (toeira), não evidenciando “o papel desempenhado por Raul Simões nem individualizando o novo modelo de guitarra, que se implantou decisivamente na Academia de Coimbra na década de 1950” (Manuel Nunes). Nesta obra, publicada em 1974, o autor refere: “Raul Simões – actualidade – é o único guitarreiro existente em Coimbra. Não começou pela arte, mas fez-se um bom guitarreiro como construtor e restaurador de instrumentos de corda, inclusivamente, instrumentos de arco” (Simões, 1974:130). Na obra “No rasto de Edmundo de Bettencourt. Uma voz para a modernidade”, publicada em 1999, António Nunes refere o papel de Raul Simões na reforma da Guitarra Toeira na década de 1920, precisando que “quando Joaquim Grácio toma contacto com esta realidade, as linhas de força reformadoras do instrumento já estavam basilarmente enunciadas por Artur Paredes e Raul Simões”. Após o estudo sobre a vida, obra e legado de Bettencourt, António Nunes e José dos Santos Paulo deram continuidade a recolhas sobre outros importantes artistas da cidade de Coimbra. Na obra Flávio Rodrigues da Silva. Fragmentos para uma guitarra reproduziram uma imagem da guitarra associada à oficina de Raul Simões e uma ficha técnica com detalhes de construção. As guitarras de Raul Simões estão ainda associadas a executantes como Flávio Rodrigues da Silva, Peres de Vasconcelos, Afonso de Sousa, António Carvalhal e Artur Paredes, entre outros. A guitarra toeira de Coimbra da década de 1920, com a qual Artur Paredes fez gravações para a voz de Edmundo Bettencourt (1927), actualmente exposta no Museu Académico, representa um instrumento fundante e revolucionário, mediante o qual Artur Paredes instaurou pioneiramente o ADN da Guitarra de Coimbra, e foi com ela que Afonso de Sousa gravou as suas próprias peças instrumentais em 1929. Em 1953 Petrónio Ricciulli comprou uma guitarra de Coimbra de 22 trastos a Raul Simões, instrumento que inicialmente fora uma encomenda feita por Artur Paredes, episódio que poderá justificar a ruptura entre Raul Simões e Artur Paredes.
Nos finais da década de 1950, Raul Simões gravou para a Alvorada duas faixas com a cantadeira conimbricense Estrela Abrantes (EP Alvorada, 60.133, 1959); Lado 1 Grupo de Silvares, com os temas: “Que Diacho” e “Farrapeira”. Lado 2 Raul Simões (viola toeira) e Estrela Abrantes (voz), temas: “Estalado” e “Vira de Coimbra”. Como singular executante da arte do toque popular da Viola Toeira, Raul Simões recebeu na sua oficina Ernesto Veiga de Oliveira em 1965, que fixou breves apontamentos de afinação da viola e de exemplificação do toque. Raul Simões interpreta trechos do “Estalado” e do “Vira”, utilizando notável toque misto à base de ponteio, rasgado e percussão. Os originais das gravações estão arquivados no Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa, no arquivo sonoro que serviu de base ao livro Instrumentos Musicais Populares Portugueses. Em 2001, o Prof. Domingos Morais orientou a digitalização destas recolhas, acessíveis online: http://alfarrabio.di.uminho.pt/arqevo/arqetnoevo.html. Num artigo do Jornal de Coimbra, “Raul Simões, o último tocador de viola toeira”, Manuel Dias, salienta: “Raul Simões faleceu levando consigo um património imaterial de Coimbra Popular, da Coimbra dos Futricas, ficando-nos a grata recordação do seu talento”. Raul Simões faleceu a 4 de Novembro de 1981 na freguesia dos Anjos, em Lisboa.

Notas:

A GUITARRA DE COIMBRA (2019, RTP2), um filme de Soraia Simões

Um olhar sobre a Guitarra de Coimbra realizado por Soraia Simões [RTP]

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Sanfona

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Sanfona

(sanfona de Fernando Meireles, fotografada em Coimbra durante recolha de entrevista com o construtor e músico)

(sanfona de Fernando Meireles, fotografada em Coimbra durante recolha de entrevista com o construtor e músico)

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A sanfona pertence à família dos cordofones. Parecida, do ponto de vista sonoro, com um violino com bordões produz um som usado ritmicamente por meio de uma corda apoiada numa ponte móvel (a mosca), e pela fricção das cordas através de uma roda com resina, por via de uma manivela, e a sua melodia é criada através de um teclado.

O som produzido por este instrumento assemelha-se a um cruzamento entre um violino, por ser de corda friccionada e possibilitar melodia, e uma gaita-de-fole, por ter bordões, por intermédio de outras cordas que apenas reproduzem uma nota pedal (ou seja uma nota continuada).

Alguns textos de mestres organeiros afirmam que a sanfona surgiu no século XI, d.C., no norte da Península Ibérica. Embora alguns investigadores na área de especialização em História Medieval reapontem o seu ‘surgimento geográfico’ para o Norte de África.

A sua forma mais arcaica conhecida é o organistro (também conhecido pela designação em latim, organistrum), um instrumento de grande dimensão em corpo de guitarra, que continha apenas uma corda de melodia e que cobria uma oitava diatónica, e dois bordões sem a ponta móvel ainda.

Este instrumento, devido ao seu tamanho, exigia ser tocado por duas pessoas por duas fases em simultâneo: em que uma friccionava as cordas e a outra tocava a melodia pretendida. Este acto consistia em puxar para cima barras de madeira ao longo da escala que, com pinos a meio, encurtavam a corda de modo a obterem diferentes notas. As melodias tocadas eram lentas devido ao esforço associado à tentativa da sua execução.

Com a introdução do órgão, caiu em desuso nos locais de culto, no século XII. A sanfona passa então a ser usada pela nobreza, trovadores, jograis e pelo povo. Com o passar do tempo, mendigos, cegos e vagabundos usam-na para tocar nas ruas e em feiras. No final do século XIX o instrumento entra em decadência, tendo quase desaparecido totalmente. Em Portugal perdurou até princípios do séc. XX, extinguindo-se.

(Fernando Meireles à conversa com Soraia Simões no âmbito deste projecto, categoria: História Oral, fotos de António Freire) Fernando Meireles em execução de 'Bailinho da Madeira' com Sanfona

(Fernando Meireles à conversa com Soraia Simões no âmbito deste projecto, categoria: História Oral, fotos de António Freire)
Fernando Meireles em execução de 'Bailinho da Madeira' com Sanfona

Em 1966, Ernesto Veiga de Oliveira escrevia: «Entre nós, da sanfona queda rara lembrança, e já apenas como instrumento de feira, cada vez mais raro, ao serviço de mendigos e cegos que, sem a saberem tocar, a envelheceram e desacreditaram; e é neste aspecto final que a memória dela se fixou (…)». Fernando Meireles (músico do grupo Realejo, construtor de instrumentos e artesão) pesquisou sobre este instrumento durante muito tempo e dedicou-lhe horas de trabalho, fê-lo renascer e valorizou-o de novo.

O instrumento que no século XIX desaparecera do universo musical português passou a fazer parte do quotidiano de Fernando Meireles Pinto, com um labor de critérios impares, recuperou, reconstruindo-o a partir de diversas fontes, nomeadamente das figuras de presépio dos séc. XVII e XVIII, da autoria do escultor Machado de Castro. Na 62ª recolha de entrevista realizada no âmbito deste trabalho, o músico-construtor, que ao fim de cerca de duas décadas permanece num dos corredores da Associação Académica de Coimbra com a sua oficina-Atelier, relembrou não só o seu percurso como o tempo da sua aproximação à sanfona e as emoções experimentadas ao longo de todo o seu percurso de descoberta e reconstrução do instrumento.

Com anos de trabalho consagrado à feitura de instrumentos, e encomendas várias de músicos como Pedro Caldeira Cabral ou Julio Pereira, as sanfonas, concertina, viola braguesa, bandolim e cavaquinhos tocados no grupo do qual faz parte – Realejo – sairam todos da sua oficina. Fernando Meireles tem o seu trabalho reconhecido em vários pontos do mundo, como a Casa Real Espanhola onde se encontra uma guitarra por si construída, o seu trabalho de recuperação da sanfona foi inequivocamente elogiado por colectores, destaco aqui o médico-psiquiatra de Coimbra Louzã Henriques, que tem dedicado mais de três décadas da sua vida ao coleccionismo e pesquisa de instrumentos tradicionais.

 

Vídeo em baixo: Recolha, adaptacão e arranjos de Janita Salomé
Vozes de Vitorino e Janita Salomé
Sanfona por Carlos Guerreiro

adenda: Carlos Guerreiro (entrevista, September 20, 2013, História Oral), construtor e músico (um dos mentores do colectivo Gaiteiros de Lisboa) construiria, igualmente, uma sanfona procurando (re) introduzir este instrumento, à semelhança de Fernando Meireles, noutros campos das música e cultura populares.

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Alguns instrumentos em contexto de grupos migratórios e sua classificação, construtores e executantes

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Alguns instrumentos em contexto de grupos migratórios e sua classificação, construtores e executantes

A forma com que determinado instrumento é construído tem em atenção algumas limitações anatómicas e fisiológicas do indivíduo.

Os materiais usados para conceber alguns instrumentos têm em conta razões de ordem acústica e prática, como por exemplo a forma e tamanho da mão do executante.

Os instrumentos classificam-se em algumas categorias e sub-categorias.

No meu trabalho de recolha para o Arquivo Mural Sonoro tenho efectuado um levantamento e registado alguns construtores de instrumentos tradicionais com ligações às migrações e diásporas a operar em Portugal.

Nessas recolhas musicais e de entrevistas vão estando instrumentos pertencentes a estas categorias:

idiofones – instrumento em que o som gerado resulta do corpo do instrumento sem estar submetido a uma tensão. Exemplos: o Balafon do Kimi Djabaté, o "tigelafone" da Maria João Magno, os "dununs" construídos e tocados pelo Kula, os tambores construídos através de materiais reciclados diversos do Filipe Henda, nomeadamente para a Orquestra 7, em Almada, ou a timbila de que fala num dos depoimentos transcritos efectuados para o Mural Sonoro a Historiadora moçambicana Julieta Massimbe.

membranofones – em que o som é gerado através de uma membrana esticada (como o caso dos adufes ou pandeiretas tocados, entre outros músicos, por Né Ladeiras)

cordofones – instrumento em que o som se produz através de uma corda tensa (como o caso do cavaquinho de Cabo Verde, de que fala o construtor mindelense Luís Baptista, ou o português com afinações várias de que falam João Pratas ou, em depoimento transcrito motivado pela baixa qualidade da gravação, Júlio Pereira e outros instrumentos de cordas com ligações a outras partes do mundo, mas que existem, se tocam e constroem em Portugal como a korá explicada por Braima Galissá ou Kula para o Arquivo, sem esquecer as guitarras de Lisboa e de Coimbra ou outros instrumentos de cordas)

aerofones – em que o som do instrumento é gerado pela vibração de uma massa de ar criada no instrumento (como alguns dos instrumentos de sopro construídos pelo Oleiro João Sousa ou as várias flautas construídas e tocadas por Nuno Pereira, Rão Kyao ou Carlos Guerreiro de que também se falam nas entrevistas). Os aerofones, com a chegada e repercussão dos instrumentos electrónicos deram origem a uma nova classificação ou categoria: os electrofones – instrumentos em que o som é gerado a partir da intensidade de um campo electromagnético.

(João Sousa – Oleiro construtor de instrumentos em barro em 56ª recolha de entrevista)

(João Sousa – Oleiro construtor de instrumentos em barro em 56ª recolha de entrevista)

(João Sousa – Oleiro construtor de instrumentos em barro em 56ª recolha de entrevista)

(João Sousa – Oleiro construtor de instrumentos em barro em 56ª recolha de entrevista)

(Kula – Músico e Construtor em 47ª recolha de entrevista)

(Kula – Músico e Construtor em 47ª recolha de entrevista)

(Kula – Músico e Construtor em 47ª recolha de entrevista)

(Kula – Músico e Construtor em 47ª recolha de entrevista)

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(Filipe Henda – percussionista, formador e construtor em 22ª recolha de entrevista)

(Filipe Henda – percussionista, formador e construtor em 22ª recolha de entrevista)

(à conversa com Kimi Djabaté – executante e construtor de balafons – em 14ª recolha de entrevista)

(à conversa com Kimi Djabaté – executante e construtor de balafons – em 14ª recolha de entrevista)

(à conversa com Maria João Magno em 54ª recolha de entrevista. Fotografia de Sessão Mural Sonoro no Museu da Música em 2013, sob o tema: Música Popular, Ensino e Experimentação)

(à conversa com Maria João Magno em 54ª recolha de entrevista. Fotografia de Sessão Mural Sonoro no Museu da Música em 2013, sob o tema: Música Popular, Ensino e Experimentação)

(à conversa com Nuno Pereira em 43ª recolha)

(à conversa com Nuno Pereira em 43ª recolha)

Das categorias de instrumentos aqui descritas a dos idiofones é a que apresenta um número mais significativo de instrumentos conhecidos da grande maioria das pessoas e classificam-se de acordo com a forma como ‘vibram’ ou como são ‘gerados em vibração’ e podem ser:

idiofones de percussão: sinos, tubos, placas, bambu, metal, vidro e têm nomes como xilofones, metalofones. Exemplo: o hanpan tocado por Kabeção Rodrigues.

idiofones percutidos: em que a sonoridade é transmitida quando a mão, baqueta ou outro objecto análogo toca/bate na superfície do instrumento: Exemplo: os dununs e djembés tocados por Kula ou o sabar tocado por Nataniel Melo.

idiofones percussivos: quando o som é proveniente do objecto com que se bate.

idiofones de concussão: quando o som da vibração resulta do choque entre dois objectos semelhantes. Exemplo: o peitoque tocado por Sebastião Antunes numa das recolhas ou as castanholas usadas por Né Ladeiras.

idiofones de agitação: quando o recipiente contém sementes ou grânulos que na agitação produzem som. Exemplo: caxixi usado por Ruca Rebordão ou Quiné Teles e Nataniel Melo, maracas ou sistro).

idiofones de raspagem quando funcionam através de um corpo que vibra sobre uma superfície irregular que é ‘raspada’. Exemplo: reco-reco

idiofones beliscados: quando o som se produz através da flexão de uma lâmina. Exemplo: o berimbau também tocado por Ruca Rebordão e falado em entrevista.

idiofones friccionados: quando o som é gerado por fricção do corpo em vibração. Exemplo: violino de pregos.

A categoria dos membranofones é dividida em: tambores, tambores de fricção (como o caso da sarronca) e mirlitão (como as flautas de enuco ou Kazoos).

Já os cordofones são por norma assim classificados mas sub-classificam-se de acordo com o posicionamento das cordas relativamente ao corpo do instrumento, podem ser: liras – quando as cordas estão esticadas entre a caixa de ressonância e a armação, cordofones tipo alaúde – quando as cordas paralelas são esticadas ao longo do braço e se prendem no lado extremo oposto do braço, como o caso das guitarras, cordofones friccionados com arco – como é o caso das violas de gamba ou outras da família do violino, cordofones tipo cítara – quando as cordas se encontram esticadas ao longo do comprimento do instrumento e paralelamente a este como o caso da trombeta marina, cordofones de teclado da família das cítaras como o clavicórdio, cravo ou piano.

Os aerofones assumem seis grupos distintos: aerofones de palheta (acordeão, órgão de boca ou harmónica de boca, saxofone, clarinete, oboé, fagote), aerofones de bocal (trompete, trompa, trombone, etc), aerofones de aresta (são da família das flautas como flauta transversal, flauta de pã ou de apito – bísel), órgão (sendo um instrumento mais complexo e híbrido é quase um instrumento à parte, tanto por conter tubos com embocadura de bisel como por ser munido de um ou mais teclados), aerofones livres nos quais o som se produz através do ar em contacto com um corpo de um instrumento, em que o que faz o corpo vibrar é o ar e não o corpo em si mesmo (exemplo: pião musical).


Quanto à voz, por se tratar de um instrumento humano que não é construído é um caso, embora se insira nesta classificação, complexo já que desempenha igualmente funções extra-musicais, como a comunicação oral.


As características tecnológicas, sociais, europeias e extra-europeias, etnográficas e organeiras dos instrumentos situam-nos pelo valor em si mesmo e não no espaço. A retórica que realça o imaginário de ”pertença geográfica” de um instrumento faz cada vez menos sentido até pelas alterações e desterritorializações de que eles têm sido alvo ao longo dos séculos.

Fontes usadas na pesquisa: HENRIQUE Luís, Fundação Calouste Gulbenkian, Instrumentos Musicais, recolhas de entrevistas a vários construtores, estudiosos e executantes de instrumentos musicais em contexto migratório para Mural Snoro.

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‘Tigelafone’ por Maria João Magno

‘Tigelafone’ por Maria João Magno

por Maria João Magno [1]    

Maria João Magno (exemplificação de som de tigelafone). Ouvir entrevista cedida a Soraia Simões aqui

Maria João Magno (exemplificação de som de tigelafone). Ouvir entrevista cedida a Soraia Simões aqui

História

Tudo começou pela decisão de casar. A construção do lar, que passa pela aquisição de diversos objectos, de entre os quais, loiça. Depois da pesquisa, decidimos adquirir a mais bonita e funcional. Para casa trouxemos pouca coisa – abominamos «tralhas» – que comprámos na entretanto fechada Casa alegre. No meio de pouca coisa vinham três tigelas de tamanhos diferentes e seis iguais, as mais pequenas. Tiveram interesse para nós porque são brancas, condizentes com inúmeras cores de toalhas e guardanapos, e vão ao forno, o que as torna multifuncionais. O pormenor de irem ao forno fez com que o seu lugar oficial fosse a cozinha. Lá habitaram, até ao dia em que, a tigela maior estava sobre a mesa da sala, ao serviço de uma grande salada, e o talher lhe bateu sem intenção. O som despertou-me completamente. Estávamos em 2004.

Dei início à investigação. Uma espécie de encontros secretos com uma tigela e a outra e mais a outra e a descoberta de que tinha encontrado um instrumento musical, se juntasse as três tigelas. Dei-lhe um nome: tigelafone.

Batia nas tigelas com o que tinha à mão – colheres de pau – experimentava diferentes colheres em diferentes sítios das tigelas e ouvia um sem número de timbres, ataques e ressonâncias, sempre afinados: lá2, mi3 e sol3. Experimentei os cabos das colheres na vertical, na horizontal, uma colher, duas, mais colheres e quando as esgotei fui ao encontro dos espetos de madeira. Comecei por tocar com um em cada mão e descobri que era preciso mais volume de som. Juntei espetos, fixei-os com um elástico e fiz dois maços, um para cada mão. O timbre é bastante diferente daquele que se obtém com as colheres.

 

Pairava-me na mente como iria passar do som à música. Como poderia fazer música apenas com três notas? Percebi que o facto de ter um intervalo de sétima enriquece a matéria-prima e não ter a terceira do acorde permite-me decidir sobre o modo (maior ou menor, pelo menos). A quinta é o elemento de estabilidade harmónica, dá jeito.

Rapidamente entendi que teria de apostar na diversidade tímbrica de cada tigela e rítmica da música para fazer música com três sons (notas) percutidos (as).

Inicialmente compus Da Mulher, em Abril de 2004. Tinha feito trabalho de pesquisa para a Universidade sobre canções de embalar, tema que me fascina. Nasceu-me o texto, a música e logo a partitura como registo que ajuda a organizar as ideias. O tigelafone já tinha assumido a importância que lhe dou hoje, pelo que não o tratei como acompanhador da voz, mas sim como parte integrante da mesma por vezes e extensão, por outras. Tal como a mãe e o filho. Tal como a mulher que deseja que a criança durma, porque é preciso fazer outras coisas em casa.

As composições sucederam-se umas às outras. Após um contacto que estabeleci com a empresa que fabrica as tigelas recebi dez, iguais duas a duas, mas todas diferentes em termos sonoros. Este problema obrigou-me a escrever, dentro das tigelas, a referência das notas que produzem. Por exemplo, sib2+ e sib2-, em duas tigelas, semelhantes no tamanho e à vista, mas não na afinação. Actualmente ainda investigo as tigelas que recebi, juntamente com outros exemplares que adquiri quando visitei a fábrica.

A escrita musical é adaptada ao instrumento e é por isso que nas partituras desenho o tigelafone que utilizo em cada música.

 

(debate, coordenação: Soraia Simões Música Popular, Ensino e Experimentação | Museu da Música)

Conceito

O termo tigelafone surgiu de forma espontânea, devido à necessidade de fazer referência, em partitura musical, ao nome do instrumento para o qual estava a escrever música. Pretendia não me esquecer que aquelas notas musicais são específicas das tigelas com as quais andava a fazer experiências sonoras. Tigela = tigela e fone = som. O som das tigelas.

Mais tarde, tigelafone passou a ser um Projecto e, presentemente, o termo engloba dois aspectos:

1) Primeiro define um instrumento musical que se enquadra na categoria dos idiofones (classificação de Hornbostel e Sachs). Nesta categoria de instrumentos musicais «o som é produzido pelo próprio corpo do instrumento, feito de materiais elásticos naturalmente sonoros, sem estarem submetidos a tensão.» [Luís Henrique, Instrumentos Musicais, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1988 - p 23].

À semelhança do xilofone, ou do metalofone, o tigelafone consiste num conjunto, ou colecção de corpos vibrantes – neste caso tigelas de cerâmica – que agrupados geram determinada organização sonora, organização essa que se constitui como a base melódica e harmónica da música para tigelafone.

2) O segundo aspecto do termo está associado à ideia de marca registada, na medida em que tigelafone é, desde 2009, uma marca registada em Portugal.

[1]  para citar este texto: Magno, Maria João* «Tigelafone», Plataforma Mural Sonoro, https://www.muralsonoro.com/recepcao, 25 de Fevereiro de 2015.

*Estudou no Conservatório de Música e licenciou-se em Ciências Musicais pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (1991-1995), onde fez também a Pós-licenciatura no Ramo de Formação Educacional, em Ciências Musicais (2001-2003).

Compositora e intérprete em Gestos, um espectáculo de sua autoria, que integra voz, piano, instrumentos musicais construídos a partir de materiais reutilizáveis e o Tigelafone (2001-2006). Participou em diversas gravações como música.

Recentemente Maria João integrou a equipa da Divisão de Educação Artística, na Direcção Geral do Ministério da Educação e Ciência – Lisboa. Actualmente lecciona disciplinas da Música, pesquisa na área do Tigelafone e continua a compor e a actuar em recitais/espectáculos musicais.

‘El Sistema’ de Orquestras Juvenis de Venezuela, por Francesco Valente

‘El Sistema’ de Orquestras Juvenis de Venezuela, por Francesco Valente

por Francesco Valente [1]

A literatura do ‘multiculturalismo’ sobre a educação geral e em particular musical é muito rica, e é muitas vezes centrada na questão do ensino da música numa perspectiva ‘multicultural’ e de integração, sendo caracterizada pela implementação da música ocidental, e sobre a necessidade de estudar vários tipos de música. Um dos acontecimentos do século XX, do ponto de vista social, económico e cultural mais significativos na Venezuela, foi a criação e o desenvolvimento de El Sistema de Orquestras Infantis e Juvenis (“El Sistema”), cujo mentor foi José António Abreu. Um instrumento revolucionário para combater a pobreza, onde a música é utilizada como instrumento de coesão dos distintos grupos sociais, promovendo as classes mais pobres: dos quase 300.000 músicos integrantes a maioria são de bairros pobres, que frequentemente tocam instrumentos doados, emprestados, normalmente entre os participantes temos crianças e jovens, alguns com problemas ou handicap. Na metade de 2007 o pais estava contando com 135 orquestras e 75 coros integrados no Sistema, que contava com mais de mil colaboradores para assegurar seu funcionamento e sua coordenação.

‘El Sistema’ além da instrução musical específica, que utiliza métodos inovadores, desenvolve seminários sobre a construção e reparação de instrumentos musicais, e outras actividades variadas com meninos a partir dos dois anos de idade. ‘El Sistema’ começou por volta de 1975, e seu fundador foi, ironia da sorte um doutorado em economia petroleira. Foi adoptado depois pelo governo de Chavez como seu “novo programa social do governo bolivariano”, com um certo oportunismo político por querer adoptar e identificar-se num dos programas mais originais e de êxito que foi ensaiado no pais para combater a pobreza. No entanto, para a surpresa de muitos, para o orgulho da região, e para o deslumbramento de personagens como Cláudio Abbado, Plácido Domingo, Ratlle o Daniel Barenboim, Venezuela oferece ao mundo hoje um exemplo de como se pode reduzir a pobreza por meio da arte.

‘El Sistema’ leva já 33 anos produzindo bons músicos e exportando um modelo de gestão cultural: para o grande público, a personagem mais famosa é Gustavo Dudamel, Director Musical da Orquestra Sinfónica Juvenil Simón Bolívar de Venezuela, que com 27 anos de idade, conta com um curriculum invejável, tendo ja dirigido varias orquestras pelo mundo fora. Mas parte da explicação do sucesso deste projecto se deve ao seu fundador Jose Antonio Abreu, que alem de ser musico, é economista: sua obra atravessou nove legislaturas, entre golpes de estados e crises do petróleo, e se espalhou pelo mundo fora atravessando continentes, e representando um modelo de ensino e de abordagem pedagógica.

Um exemplo disto é a Orquestra Geração, que representa este programa inovador aqui em Portugal, gratuito para as crianças, e que foi concebido principalmente com base no próprio modelo das Orquestras Sinfónicas Infantis e Juvenis de Venezuela. Contando na coordenação pedagógica e artística com dois músicos venezuelanos aqui residentes e ainda o apoio de vários formadores do ‘El Sistema’, que se têm deslocado a Portugal por ocasião dos estágios de Verão da Orquestra, o projecto enquadra cerca de 80 professores, na sua maioria jovens músicos recém formados (a quem é ministrada formação na metodologia do sistema) e que aqui encontraram a sua primeira oportunidade de trabalho. A Orquestra Geração já conta no seu currículo com várias apresentações públicas em Lisboa e arredores.

Para quem queira saber mais aconselho os seguintes vídeos:

[1] para citar este artigo: *Valente, Francesco «El sistema de orquestras juvenis de Venezuela», Plataforma Mural Sonoro em 17 de Novembro de 2012 https://www.muralsonoro.com/recepcao.

*Músico e investigador em etnomusicologia

Fotografia de capa: autoria de Gustavo Dudamel, tirada numa favela de Caracas.

Pandeireta com soalhas

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Pandeireta com soalhas

(fotos de Soraia Simões, colecção Museu da Música)

(fotos de Soraia Simões, colecção Museu da Música)

A Pandeireta é um instrumento musical (que permanece desde os tempos romanos) de percussão semelhante ao pandeiro brasileiro mas menor. Usado em músicas tradicionais de vários países europeus como, entre outros, Espanha, Rússia ou Portugal.

No seu formato mais conhecido a pandeireta é constituída por um aro circular (geralmente de madeira) cujo centro é coberto por uma camada de pele. É constituído ainda por um conjunto de soalhas metálicas, agregadas aos pares.

As pandeiretas aparecem em vários formatos e formas apresentando entre si várias diferenças de:

Formas – Os aros podem ser circulares, semi-circulares, rectangulares, triangulares e até geometricamente irregulares.
Materiais – Os materiais dos aros podem variar entre madeira e plástico e a camada que cobre o aro pode ser de pele ou de plástico.
Tamanho – podem ter desde diâmetros de 13cm até 28cm e algumas chegam a atingir 30-40cm de diâmetro, sendo essas chamadas pandeiros.
Soalhas – podem incluir desde 2 até 12 pares de soalhas.

 

Vídeo em baixo e explicação de Jonás Gimeno

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