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Recepção Musical 1

Viola Campaniça

Viola Campaniça

É uma das mais antigas violas populares ainda existentes. Típica da região do Baixo-Alentejo, durante algum tempo foi relativamente fácil encontrá-la desde a zona litoral até à raia e percorrendo ainda algumas franjas da região algarvia. Hoje, como reforça a conversa com o músico e divulgador Pedro Mestre, o mais comum e de um modo cada vez mais aceite é encontrá-la com grande dinamização, tanto do ponto de vista do ensino como  cultural, em Castro Verde.

Porém, a viola campaniça gozou outrora de satisfatória popularidade na animação de balhos (bailes cantados), despiques (nas tabernas), rodas e no acompanhamento de grupos corais (alguns deles mistos).

Cada tocador imprime o seu estilo interpretativo na execução, mas a afinação mais usada é: sol, mi, dó, fá, dó, embora também se possa usar outra mantendo contudo a afinação relativa entre cordas.

Este cordofone por norma arma com dez cordas de metal de cor amarela e aço em cinco ordens embora o cravelhal apresente doze cravelhas com a afinação já referida. Sobre a escala, rasa com o tampo, vêem-se dez pontos e dois ou três meio pontos suplementares sob as cordas agudas.

Na década de 1960 a viola campaniça entrou em desuso, voltando  na segunda metade da década de 1980 mas principamente nos anos de 1990/2000 a assumir o papel de destaque, especialmente em Castro Verde, que outrora tivera, como poderá mais tarde pesquisar no Colóquio-Sessão do Mural Sonoro que moderei em Março no Museu da Música com o Tema: «Cante Alentejano: a adaptação na Música Popular, o discurso sobre as identidades e o território» através dos testemunhos de José Francisco Colaço Guerreiro e Janita Salomé.

Ainda assim, durante a década de 1960 a viola conseguia manter alguma vitalidade entre um reduzido número de indivíduos que a tocavam na faixa ocidental da planície alentejana (zona do Alandroal).

Quanto aos materiais usados na sua construção habitualmente as suas ilhargas são feitas em madeira oriunda da Austrália, o seu tampo em pinho originário de Flandres, o seu braço em mogno e o seu interior em casquinha ou mesmo choupo enquanto a escala em pau-preto.

Pedro Mestre durante recolha de entrevista para Arquivo Mural Sonoro. Viola Campaniça construída por si no ano de 1999.

Pedro Mestre durante recolha de entrevista para Arquivo Mural Sonoro. Viola Campaniça construída por si no ano de 1999.

Pedro Mestre durante recolha de entrevista para Arquivo Mural Sonoro. «Carrilhões mecânicos» adaptados por si na construção da viola

Pedro Mestre durante recolha de entrevista para Arquivo Mural Sonoro. «Carrilhões mecânicos» adaptados por si na construção da viola

Fontes usadas na pesquisa: recolha de entrevista feita para Arquivo Mural Sonoro a Pedro Mestre; SARDINHA, José Alberto, Viola Campaniça - O Outro Alentejo.

Viola de boca redonda

Viola de boca redonda

No que respeito diz às violas predominantes no arquipélago dos Açores já aqui lhe falei escrevendo da viola de corações, mas há ainda três tipologias de violas de boca redonda pelas ilhas açorianas: a viola de cinco parcelas, que arma com doze cordas e integra dois ou três bordões, a viola de seis parcelas, que integra quinze cordas, distribuídas em três parcelas de duas cordas e três parcelas de três cordas e a viola de sete parcelas, que integra dezoito cordas e que apresenta dificuldades no que concerne à sua afinação, execução e funcionalidade para o tocador, o que talvez justifique a sua raridade e o seu desuso.

Se na viola de corações a escala é composta por vinte e um trastos, doze deles no braço e nove deles sobre o tampo, na viola de boca redonda o número de trastos é variável bem como a forma como eles são distribuídos: doze deles sobre o braço na viola de cinco parcelas e dez deles na viola de seis parcelas, sem esquecer que elas ainda se distinguem e diferenciam de violeiro para violeiro no número dos restantes trastos sobre os tampos.

A viola composta por quinze cordas e conhecida na ilha Terceira por viola de seis parcelas tem o braço mais curto e uma caixa de ressonância mais larga. Tem dez trastos sobre o braço e entre sete e nove sobre o tampo.

Consta que os violeiros da família do Lobão imprimiam uma flor no extremo da pá da viola, uma prática que era comum em vários países europeus em que se esculpia uma flor ou figura do sexo feminino.

Quanto à discussão sobre a sua origem, existem variadíssimas referências quanto à origem da viola de seis parcelas, pelo que dada a não consensualidade e até controvérsia em torno deste capítulo não o abordarei aqui, sem contudo deixar de referir que entre as variadas teses consta a de Francisco José Dias em Cantigas do Povo dos Açores que na página 53 reflecte sobre a possibilidade de influencia por parte da presença castelhana no arquipélago durante os séculos XVI e XVII respectivamente. Há ainda quem refira a proximidade com o violão e a possibilidade da viola de boca redonda se ter deixado influenciar por esse instrumento musical, pedindo de empréstimo a ele o bordão mais grave (nota ''mi'') e as dimensões maiores da caixa de ressonância.

Em O Baile Popular Terceirense, Machado Drumond que se dedicou ao estudo do folclore na ilha Terceira aborda a presença frequente  dos tocadores em quase todas as freguesias rurais da ilha ainda no início do século XX. Munidos da respectiva viola de cinco parcelas e de dezasseis pontos, suspensa do antebraço esquerdo pelas salientes cravelhas.

É  de salientar que também no encordoamento destas violas há uma variação consoante o tocador e a ilha em que são tocadas. Há uma abrangente variedade de métodos, de cordas e combinações, que lhe mostrarei num outro texto respectivo aos diferentes modelos, construtores, métodos de execução e aprendizagens.

A fotografia que destaco foi cedida por  Maria Antónia Fraga Esteves e pertencem à sua colecção.

São ambas violas  terceirenses. A primeira, do lado esquerdo, mais pequena (parece maior mas não é) foi construída por Ernesto da Costa, Vale Farto, Terceira; é uma viola de cinco parcelas e doze cordas. A segunda, do lado direito, foi construída, segundo dados de Maria Antónia, perto do ano de 1987 por José Augusto Lobão, Angra do Heroísmo, Terceira, e é uma viola de seis ordens e quinze cordas.

os direitos de todas estas fotos são reservados. Colecção de Maria Antónia Esteves

os direitos de todas estas fotos são reservados. Colecção de Maria Antónia Esteves

Fontes usadas na pesquisa: Cantigas do Povo dos Açores, Francisco José Dias, O Baile Popular Terceirense, Machado Drumond, conversa e troca de impressões com Maria Antónia Esteves.

 

 

Viola de corações

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Viola de corações

Há praticamente 100 anos o musicólogo português Michel' Angelo Lambertini (1852-1820) referenciava este instrumento musical no Catalogo Sumario do Primeiro Nucleo de um Museu Instrumental em Lisboa (ano de 1914).

Com uma caixa estreita e comprida, uma cintura pronunciada e uma boca em forma de dois corações unidos com as pontas de fora, é assim que imediatamente a maioria das pessoas descreve uma das violas portuguesas mais características.

 

A viola tem dez cordas

Juntamente dois bordões

E acima do cavalete

Também tem dois corações

(Quadra Popular, autor desconhecido)

 

Mas, há elementos de ordem concreta e técnica neste cordofone, como sejam a sua escala composta de vinte e um trastos, dos quais doze estão sobre o braço e nove sobre o tampo. O braço é comprido, numa escala até à boca e o seu tampo é distinguido pela diferença das madeiras.

Arma com doze cordas, dispostas em cinco parcelas: as três primeiras duplas e as duas seguintes triplas.

Com uma forte predominância, do ponto de vista geográfico, em todo o arquipélago dos Açores à excepção da ilha Terceira, ilha onde apesar de alguma presença não é tão predominante, esta viola apresenta aspectos diferenciados na sua construção, afinação e encordoamento consoante a ilha.

A sua expressão transnacional não surge só no século XXI com a crescente globalização, como nos comprova a exposição com o tema: Intstrumentos musicais e viagens dos portugueses organizada no ano de 1986/7 no Museu de Etnologia em Lisboa onde era apresentada uma viola na ilha de Maio (ilha que faz parte do grupo de Sotavento. A maior povoação desta ilha em Cabo Verde é a Vila do Maio) que se aproximava da viola de dois corações: cinco ordenamentos de cordas duplas, abertura sonora em forma de dois corações, escala rasa com o tampo, com doze trastos sobre o braço. Além disso, em Junho do ano de 2007 a RDP-África apresentou um programa acerca da ilha Brava (ilha de  Cabo Verde situada no Sotavento, a oeste da ilha do Fogo e que conta com cerca de 6800 habitantes) no qual um grupo musical que actuou apresentava uma viola com este tipo de abertura sonora.

Também no Brasil, Osvaldo Ferreira de Mello cuja investigação se centrou no ''Estudo das identidades da música catarinense com origens açorianas'', há referência da presença da quase inexistente viola de doze cordas na ilha de Santa Catarina (em  documentação da Universidade Federal de Santa Catarina encontram-se estes dados) e até de um só coração. Doralécio Soares, folclorista e presidente da Comissão Catarinense de Folclore também o afirmou em entrevistas.

A viola de corações é muitas vezes confundida com a amarantina na sua figura e por ter dez trastos, mas na realidade a viola que mais proximidades tem com esta viola açoriana é a viola toeira de que já aqui lhe falei, na medida em que possuem doze cordas em cinco parcelas e afinações semehantes, exceptuando a afinação mais usada nas ilhas do grupo oriental, já a amarantina tem os dez trastos sobre o braço, alguns meio trastos suplementares e dez cordas de afinação diferente e possui ainda ornamentos distintos. Talvez as diferenças mais visíveis entre estas violas sejam o género de abertura sonora mais comum em cada uma: abertura de boca oval deitada na viola toeira, abertura de boca redonda na ilha Terceira que aprofundarei num outro texto nesta área do Portal; dois corações encostados um ao outro com a frente virada para lados opostos nas outras ilhas.

Num outro texto exporei os tamanhos e moldes a que corresponde cada uma das designações da viola de corações, bem como alguns violeiros (construtores deste instrumento), especificamente: Adelino Vicente e João Barbosa da Silva.

 

Vídeos de demonstração de execução de Violas da Terra

Vídeo 1: Foi integrado num concerto que ocorreu em Abril de 2013 na Casa do Povo de São Mateus do Pico, nos Açores. "Trinando os Dois Corações" - Carinhosas é interpretado por dois tocadores, dinamizadores e formadores de violas da terra no arquipélago: Rafael Carvalho e Orlando Martins.

Vídeo 2: Uma transcrição e interpretação de Rafael Carvalho de ''Fado Velho'', um dos temas que integra o fonograma Preciosos Imprevistos de Miguel de Braga Pimentel.


Vídeo com ligação externa de uma actuação do Conjunto Cisa - Irmãos Unidos em Cabo Verde, onde aparece a viola de corações

 

Fontes usadas na Pesquisa: Instrumentos Musicais Populares dos Açores, Ernesto Veiga de Oliveira, Centro de Documentação Museu da Música, A viola de dois Corações, Manuel Ferreira - Ponta Delgada, 1990.

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Viola Beiroa

Viola Beiroa

Na região centro do país, região da Beira Baixa, nomeadamente na zona leste do distrito de Castelo Branco, há uma viola com afinações variadas  chamada ainda, especialmente pelos mais velhos da região (tocadores e não tocadores/simpatizantes da prática deste instrumento musical), de bandurra. Não consegui identificar, por ser uma informação mutável, ou seja: que varia consoante a bibliografia e o que referem os executantes, qual é o momento/data em que se começa a designar este cordofone de viola beiroa, contudo é assim que entre os organeiros, ou os que centram o seu estudo nos instrumentos musicais tradicionais em Portugal (da área da Conservação e Restauro inclusivé), ela é chamada.

Esta viola arma com dez cordas distribuídas por cinco parcelas e com duas cordas complementares (designadas de requintas) que se encontram presas a um cravelhal que se situa no fundo do braço da viola perto da sua caixa de ressonância.

 

Um dos pormenores mais singulares deste instrumento é a afinação. Entre as afinações variáveis a mais difundida no circuito de músicos e executantes é a que é utilizada em Idanha-a-Nova: ré, si, sol, ré, lá.

As duas cordas suplementares, as requintas, possuem um comprimento curto e uma sonoridade aguda. Tocam-se habitualmente soltas e são afinadas em ré.

Um dos mais influentes  tocadores desta viola foi Manuel Moreira (imagem referente a ele na capa deste texto), cuja técnica  consistia no uso da mão direita com utilização do polegar para os 'bordões de requintas' enquanto o dedo indicador em dedilhado (expressão cujo sentido já expliquei aqui) para as fundeiras, segundas e toeiras. Movimento, aliás, com que fraseava a melodia.

Entre os colectores e folcloristas dedicados ao registo e levantamento deste instrumento destaco: Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira, enquanto no que toca à transcrição de algum deste repertório para este instrumento nesta região: Domingos Morais.

É ainda de salientar que uma das entidades que tem promovido este instrumento é a Associação Cultural e Recreativa As Palmeiras  através do seu Grupo de Danças e Cantares de Castelo Branco. 

Ao contrário de outras violas tem uma capacidade ilimitada de se entrosar noutros domínios que não só o da 'música tradicional', pelo que mostro duas interpretações do mesmo instrumento. Uma de Amadeu Magalhães e outra de um conjunto/orquestra de violas beiroas, que tem nos seus integrantes um dos dinamizadores activos desta viola: Miguel Carvalhinho, na interpretação de um tema tradicional assaz popular.

Biliografia usada na pesquisa: Música Popular Portuguesa, Armando Leça, Instrumentos Musicais Populares Portugueses, Ernesto Veiga de Oliveira, Transcrições de Domingos Morais, Recolhas de Benjamin Pereira

Viola Braguesa

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Viola Braguesa

As violas tradicionais de Portugal continental compreendem duas formas basilares: a viola das terras ocidentais com uma pequena cintura e a viola do leste com uma cintura mais acentuada.

Dentro da forma das violas das terras ocidentais encontramos a viola braguesa, a viola amarantina e a viola toeira acerca da qual já escrevi neste portal.

A viola braguesa, viola de Braga, ou simplesmente braguesa como se apelida mais frequentemente, é considerada uma das violas em Portugal com um maior número de simpatizantes e tocadores, o instrumento de destaque no Minho, Entre Douro e Minho. É bastante usada para tocar repertórios no domínio da 'música tradicional'  como rusgas, chulas ou desafios.

Na gíria, entre executantes, diz-se que ela se ''toca de rasgado'' (rasgueado), pelo facto de ser executada em passagens rápidas, para cima e para baixo, com auxílio das unhas, por norma na formação harmónica de tónica e dominante (Dicionário de Música, T.Borba e L.Graça, entrada ''rasgado'').

Como grande parte das violas continentais a viola braguesa tem uma escala rasa com o tampo e apresenta dez trastos sobre o braço da viola. À excepção de três dos seus bordões arma com dez cordas de aço de espessura fina tendo uma afinação semelhante à por norma usada na guitarra portuguesa (sol, ré, lá, sol, dó ou lá, mi, si, lá, ré) do agudo para o grave.

A abertura de som desta viola é oval, redonda ou, como também se diz na gíria, em ''boca de raia'', pois é caracterizada estética/visualmente como uma viola com dois olhos e uma boca que ri.

Notas:

A expressão ''Varejar as cordas'' significa que elas são tocadas com um dedo, já ''rasgar as cordas'' (rasgueado) significa que elas são tocadas com dois ou mais dedos. Na prática varejar e rasgar, dois dos termos mais usados entre os tocadores, significam dedilhar só que é possível fazê-lo com ambas as partes dos dedos: a parte de fora (unha) e a parte de dentro (polpa).

Viola braguesa por Amadeu Magalhães

Braguesa, disco de Júlio Pereira (1983)

 

Bibliografia/fontes usadas na pesquisa: Dicionário de Música, T.Borba e L.Graça, Instrumentos Musicais Populares Portugueses, Ernesto Veiga de Oliveira, Entrevista a Amadeu Magalhães para Arquivo

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Viola Toeira

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Viola Toeira

A viola toeira é um instrumento musical  inicialmente predominante na região da Beira, onde acompanhou as danças e cantigas no contexto rural da população dessa região. Na cidade de Coimbra foi durante um largo período de tempo o instrumento predilecto dos estudantes da Academia. Foi usado em serenatas até ao aparecimento da guitarra que aconteceria por volta do ano de 1850 (pág 122, Música Popular Portuguesa, Armando Leça).

Característica do centro litoral e região de Coimbra esta viola diferencia-se da viola braguesa especialmente no seu encordoamento. Arma com doze cordas alinhadas em cinco ordenamentos: as três primeiras cordas duplas e as outras triplas. Ao contrário da viola braguesa que possui dez cordas. 

A viola toeira é, sem qualquer dúvida, um dos instrumentos musicais que melhor caracteriza a ''sonoridade coimbrã'' entre os séculos XVIII e meados do século XIX.

O seu papel é de tal relevância que tanto entre a comunidade académica coimbrã como nas áreas rurais da cidade marca presença.

É comum encontrarmos outras designações quando o assunto é este instrumento. Em variada documentação sobre cordofones que se tocavam na região centro litoral, que inclui quadras populares, mencionam  “viola” e “viola de arame” (de salientar que a viola de arame, típica no arquipélago dos Açores é, com a guitarra de Coimbra, dos primeiros instrumentos a entrar no ensino), também com mais recorrência encontramos o nome “banza” associado a este instrumento.

Armando Leça (1893-1977) adoptou a denominação, comum entre os violeiros de Coimbra e usada de igual modo por um escritor/cronista conimbricense de nome Octaviano de Sá no início do século XX, de ''viola toeira'' no livro “Música Popular Portuguesa”. Também no livro ''Instrumentos Populares Portugueses” do ano 1966 da autoria de Ernesto Veiga de Oliveira voltamos a encontrá-la sob esta designação.

A identificação pelo nome atribuído a este instrumento deixa de estar confinada ao circuito de executantes/à sua comunidade de prática - violeiros, cantadeiras e versejadores -, e passa a ser usada por um maior leque de indivíduos fora desse núcleo: nomeadamente folcloristas, cronistas e também jornalistas, historiadores e poetas/ensaístas.

Além das serenatas futricas e encontros de boémios, nas romarias e festas religiosas era comum encontrá-la, como os casos: da Festa do Espírito Santo em Santo António dos Olivais, Santo Amaro, (Lages), Senhor da Serra (Semide, Miranda do Corvo), São João da Figueira da Foz, Nossa Senhora da Encarnação (Buarcos), Santa Comba (Quinta dos Melros), arraiais de São João, São Martinho do Bispo e Fala (margem esquerda do Mondego), Rainha Santa Isabel, e até à beira-rio (Mondego) em encontros de fim de tarde.

A viola toeira marcou presença tanto no domínio plebeu como nos salões e teatros. Quer os mais clássicos repertórios como as melodias mais populares nela se tocaram.

Quanto ao alcance público da sua feitura/produção destacam-se versões patentes no Museu Nacional Machado de Castro (oficina dos Brunos) e no Museu da Música (Lisboa, Estação de Metropolitano do Alto dos Moinhos, ver exemplares de José Bruno e António Augusto dos Santos).

A publicação do método de Manuel da Paixão Ribeiro no ano de 1789, onde o cordofone é associado a um repertório de salão que remete para a fidalgia e burguesia (modinhas e minuetos), e o seu fabrico na oficina dos irmãos Brunos, no Paço do Conde, nas décadas de 1850 e 1860 dão-lhe ecos de uma preocupação e exigência no que concerne ao seu contexto, estudo e fabrico.

Também no apogeu do seu destaque no seio da recepção musical (entre os executantes) por volta de 1960, salientam-se entre essa exigência e foco na credibilidade de execução/produção continuadores como os construtores/executantes  António Augusto dos Santos e  Raul Simões. Este último, que acompanhava a cantadeira Estela Abrantes revelando notável mestria na execução dos rasgados, alternados com “pancadas” de tampo. Raul Simões é referenciado, por quem conviveu com ele na sua oficina no bairro de Santana, não só pelo seu papel na  construção de violas como na mestria com que percutia e ''rasgava'' o instrumento.

Actualmente, há músicos que retomam o som e musicalidade deste instrumento. Na recolha de entrevista no âmbito deste trabalho (História Oral, 29 de Abril de 2013) feita ao músico Amadeu Magalhães ele expressa algumas das características individuais das várias violas que toca, reflectindo que há uma proximidade entre a toeira e braguesa no modo de as executar.

 

Notas

Fotografias de Violas construídas por Raul Simões.

Vídeos de execução de viola toeira por Raul Simões e viola da terra e toeira por Rafael Carvalho e Amadeu Magalhães.

Bibliografia usada na pesquisa:  Nova Arte da Viola, 1789, Manuel da Paixão Ribeiro, Música Popular Portuguesa de Armando Leça, Instrumentos Populares Portugueses de Ernesto Veiga de Oliveira, Elementos para a abordagem da Tocata Tradicional Mondeguina, Blogue Guitarra de Coimbra, de António Manuel Nunes.

Tampo em pinho, ilhargas e costas em pau rosa

Tampo em pinho, ilhargas e costas em pau rosa

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Gramofone

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Gramofone

Com a invenção do gramofone por Emil Berliner no ano de 1888  e a concorrência de outro formato: os discos de goma-laca, o fonógrafo inventado por Thomas Edison entra em declínio.


O circuito de comercialização de  cilindros foi diminuindo e o dos discos aumentando. No início, não porque o fonograma (o disco) fosse um meio  com melhor "qualidade" que o cilindro, mas especialmente porque o fonograma/disco suplantava as dificuldades técnicas da reprodutibilidade das gravações e  das dificuldades do cilindro enquanto produto.


O disco possibilitava ainda a prensagem como técnica de reprodução em massa, além de que o cilindro não permitia selos fonográficos, não tinha espaço para capas e dois cilindros com a mesma música do mesmo músico não eram exactamente semelhantes, na medida em que a sua reprodução exigia várias gravações por parte dos músicos. Era consideravelmente limitado o número de cópias que podiam ser feitas a partir de um cilindro.


Em 1912, a Edison Records (editora de Edison) passou a comercializar discos e aparelhos que tocavam esses discos.


O gramofone, do alemão Emil Berliner, e o disco de 78 rpm transformaram-se à época no padrão do mercado mundial, que só seria suplantado  com a invenção das gravações eléctricas em 1925, às quais Edison não adere até Junho de 1927, quando já era tarde e a grande depressão provocava a falência da sua companhia discográfica  (Edison Records) em Outubro de 1929.


Em contraste com o cilindro de Thomas Edison, o gramofone incluía um disco giratório coberto com cera, goma laca, vinil, cobre, entre outros, onde eram, através de uma agulha, gravadas vibrações de um som emitido e afunilado numa corneta, interligada a uma membrana, que sustentava a agulha. 


Com a emissão do som, o ar movimentava-se vibrando essa espécie de 'membrana laminada' que por sua vez fazia a agulha riscar em forma de ondas a superfície do disco que ia girando.

Ao girar o disco  de forma inversa já riscado com outro tipo de agulha em contacto, esta lia-o e transmitia as vibrações para a membrana referida. As vibrações, amplificadas pela corneta, emitiam o som.

 

Som gravado durante recolha de entrevista a Nuno Siqueira acerca da sua Colecção. Toca Ercília Costa no gramofone.

Caixa com agulhas, Velharias, Jardim da Estrela, Lisboa

Gramofone, Antero Santos, Velharias no Jardim da Estrela, cidade de Lisboa

Gramofone, Antero Santos, Velharias no Jardim da Estrela, cidade de Lisboa

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Fonógrafo

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Fonógrafo

O fonógrafo é um aparelho que foi criado  no ano de 1877 por invenção de Thomas Edison. Tinha como objectivo principal  a gravação e reprodução de sons através de um cilindro. Foi o primeiro aparelho capaz de gravar e de reproduzir sons. 

Antes do fonógrafo, houve um conjunto de invenções que tentaram cumprir a gravação de forma mecânica usando para tal as vibrações sonoras. O caso do  vibroscópio inventado por Thomas Young, que foi o primeiro a traduzir as vibrações sonoras sob representação gráfica analógica utilizando, para o efeito, como meio um cilindro, ou do fonoautógrafo inventado por Leon Scott, o qual utilizava já um sistema semelhante ao que viria mais tarde a ser utilizado pelo fonógrafo de Edison: um cone acústico  para captar o som e fazer vibrar um diafragma localizado no final do cone. Sob a vibração do diafragma uma agulha gravava sinais num cilindro que representavam as ondas sonoras que se propagavam no ar. Na realidade, eram  aparelhos criados em que a principal preocupação era a de  executar representações gráficas das ondas sonoras, de modo a possibilitar estudos de acústica, sem  pretensão de  reproduzirem o som gravado para quaisquer fins comerciais.

Ao contrário destas e outras tentativas, o fonógrafo assume ainda a capacidade de também reproduzir os sons que gravava, incitando a novas leituras e possibilidades, como a hipótese de comercialização dos sons.
Só com a informação descritiva de Charles Cros do parleofone é que a preocupação com a gravação e a reprodução do som gravado no mesmo aparelho começa a ganhar força e é suplantada por T.Edison na medida em que, apesar do alerta de C.Cros este nunca chegou a conceber as suas ideias.


Os impactos da invenção do fonógrafo na História da Música são notórios. O aparelho anunciado por T. Edison no final do ano de 1877  foi apresentado ao público e assumiu-se ao longo das décadas seguintes e até hoje como um feito notável nos finais do século XIX.


O aparelho que congregava um cilindro com pequenos sulcos era revestido por uma folha de estanho. Uma ponta aguda era pressionada contra este cilindro e na ponta oposta estava um diafragma (uma membrana circular, cujas vibrações convertiam sons em impulsos mecânicos e vice-versa) acoplado a um bocal de grande dimensão em forma de cone. O cilindro era girado manualmente e, à medida que o operador  falava para esse  bocal, a voz fazia o diafragma vibrar, o que permitia a ponta aguda criar um sulco parecido na superfície do cilindro. Quando a gravação estava completa, a ponta era substituída por uma agulha e o cilindro era girado no sentido contrário: a máquina desta vez reproduzia as palavras gravadas e o cone amplificava o som.


O aparelho foi patenteado em 1878 e apresentou, apesar de tudo, dificuldades no início da sua comercialização. Houve pouco interesse da parte de músicos e editores e T. Edison chegou a recusar a utilização da sua invenção  para fins de entretenimento, acabando por se dar prioridade à lâmpada incandescente.


Só quando Charles Tainter e Alexander Graham Bell, já no ano de 1886, aperfeiçoam a invenção de Edison, criando o cilindro removível (uma vez que até então o meio usado na gravação encontrava-se fixo ao aparelho) e mudando a sua composição para papelão coberto com cera, é que T.Edison resolve voltar a trabalhar na sua criação inventando um cilindro feito inteiramente à base de cera (resolvendo o problema da fragilidade do cilindro que rachava devido à dilatação diferente dos materiais em resposta ao calor).


Duas empresas  foram formadas para explorar o cilindro e, no final da década, a comercialização deste e outros aparelhos e de cilindros virgens e gravados com música ou palavra falada começou a dar lucros significativos nos Estados Unidos da América.

 

Aparelho registado durante recolha de entrevista com Nuno Siqueira acerca da sua Colecção.

Aparelho registado durante recolha de entrevista com Nuno Siqueira acerca da sua Colecção.

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Pianola

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Pianola

A pianola é na verdade um piano que possui dispositivo para executar automaticamente a música, por meio de pedais e alavancas manuais. O mecanismo original, patenteado em 1897 pelo engenheiro americano Edwin S. Votey, era instalado diante do teclado e consistia num rolo de papel perfurado com a notação da peça que se pretendia executar, accionado pelos pedais. Cada perfuração baixava uma tecla e impulsionava o respectivo martelo, o que substituía as mãos. Mais tarde o mecanismo foi incorporado ao instrumento, que passou a possibilitar uma considerável variação de dinâmica e andamento.

Foram várias as obras e estudos que este instrumento inspirou, veja-se a Toccata de Hindemith, por exemplo, composta no ano de 1926.

Vários foram os músicos que escreveram peças sem cuidado, dadas as limitações impostas pelo tamanho da mão do executante.

Este instrumento musical também é conhecido como piano mecânico.

 Contudo, o sucesso que a pianola atingiu no início do século XX não foi mantido nas décadas que se seguiram e a sua projecção entre a recepção musical acabou por ser efémera.

A partir dos anos de 1990 os pianos mecânicos assumem grande notoriedade e a sua funcionalidade, à época, é um dos principais factores para a sua popularidade entre a recepção: estes permitiam a utilização dos dados armazenados numa disquete de computador e usando-os conseguiam  gravar e reproduzir com fidelidade uma execução em 'tempo real'.

Nota: Demonstração do funcionamento deste instrumento 

Fotografia: Rolo de papel perfurado com ''Fado da Granja'' de António Menano, que toca na pianola nesta demonstração

História Oral. 2014. Mural Sonoro. Nuno Siqueira.

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Guitarras de Coimbra e Lisboa, breves notas

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Guitarras de Coimbra e Lisboa, breves notas

Página de Facebook conferida à obra de Raul Simões (Guitarra de Coimbra construída por Raul Simões.

Página de Facebook conferida à obra de Raul Simões (Guitarra de Coimbra construída por Raul Simões.

imagem (Guitarra de Coimbra construída por Fernando Meireles)

imagem (Guitarra de Coimbra sem o fundo construída por Óscar Cardoso)

imagem (Guitarra de Coimbra sem o fundo construída por Óscar Cardoso)

O instrumento que hoje chamamos guitarra portuguesa assumiu, até ao século XIX, por toda a Europa nomes como: cistre (França), cetra e cetera (Itália e Córsega), Cítara (Portugal e Espanha), Cittern (Ilhas Britânicas), cister e cithern (Alemanha e Países Baixos).

A afinação nominal, ainda hoje usada na guitarra, mantém características das cítaras do Renascimento (as mesmas relações intervalares).

A guitarra apresenta-se hoje em dois modelos diferentes. A de Lisboa (mais aguda) e a de Coimbra (mais grave). A diferença tímbrica de ambas é notória e tal facto deve-se não só às diferenças da sua construção como da sua execução, além da diferença, já mencionada, de tessitura (mais aguda/mais grave).

A afinação nominal é então, do agudo para o grave, a seguinte: si (3), lá (3), mi (3), si (2), lá (2) , ré (2) no caso da Guitarra de Lisboa e lá (3), sol (3), ré (3), lá (2), sol (2), dó (2) no caso da Guitarra de Coimbra.

Curiosidade: Entre as mais variadas perspectivas, e teses, acerca de Guitarreiros em Coimbra difundidas nos meios de comunicação, mas também académicos, não consta a obra de Raul Simões, um dos primeiros guitarreiros de Coimbra e construtor de Artur Paredes.

Raul Simões tinha por profissão marceneiro, dedicando-se à construção e reparação de instrumentos de cordas na oficina da sua residência, cita na Rua Dr. Felipe Simões, nº 9, Bairro de Santana. Para António Nunes, Raul Simões tem sido referenciado como o último grande violeiro de Coimbra, “elogio que também enuncia um lamento sobre práticas artesanais em vias de desaparecimento no tecido urbano de Coimbra pela década de 1970”. Armando Simões, na sua obra A Guitarra. Bosquejo histórico descreve com pormenor a morfologia da antiga guitarra de Coimbra (toeira), não evidenciando “o papel desempenhado por Raul Simões nem individualizando o novo modelo de guitarra, que se implantou decisivamente na Academia de Coimbra na década de 1950” (Manuel Nunes). Nesta obra, publicada em 1974, o autor refere: “Raul Simões – actualidade – é o único guitarreiro existente em Coimbra. Não começou pela arte, mas fez-se um bom guitarreiro como construtor e restaurador de instrumentos de corda, inclusivamente, instrumentos de arco” (Simões, 1974:130). Na obra “No rasto de Edmundo de Bettencourt. Uma voz para a modernidade”, publicada em 1999, António Nunes refere o papel de Raul Simões na reforma da Guitarra Toeira na década de 1920, precisando que “quando Joaquim Grácio toma contacto com esta realidade, as linhas de força reformadoras do instrumento já estavam basilarmente enunciadas por Artur Paredes e Raul Simões”. Após o estudo sobre a vida, obra e legado de Bettencourt, António Nunes e José dos Santos Paulo deram continuidade a recolhas sobre outros importantes artistas da cidade de Coimbra. Na obra Flávio Rodrigues da Silva. Fragmentos para uma guitarra reproduziram uma imagem da guitarra associada à oficina de Raul Simões e uma ficha técnica com detalhes de construção. As guitarras de Raul Simões estão ainda associadas a executantes como Flávio Rodrigues da Silva, Peres de Vasconcelos, Afonso de Sousa, António Carvalhal e Artur Paredes, entre outros. A guitarra toeira de Coimbra da década de 1920, com a qual Artur Paredes fez gravações para a voz de Edmundo Bettencourt (1927), actualmente exposta no Museu Académico, representa um instrumento fundante e revolucionário, mediante o qual Artur Paredes instaurou pioneiramente o ADN da Guitarra de Coimbra, e foi com ela que Afonso de Sousa gravou as suas próprias peças instrumentais em 1929. Em 1953 Petrónio Ricciulli comprou uma guitarra de Coimbra de 22 trastos a Raul Simões, instrumento que inicialmente fora uma encomenda feita por Artur Paredes, episódio que poderá justificar a ruptura entre Raul Simões e Artur Paredes.
Nos finais da década de 1950, Raul Simões gravou para a Alvorada duas faixas com a cantadeira conimbricense Estrela Abrantes (EP Alvorada, 60.133, 1959); Lado 1 Grupo de Silvares, com os temas: “Que Diacho” e “Farrapeira”. Lado 2 Raul Simões (viola toeira) e Estrela Abrantes (voz), temas: “Estalado” e “Vira de Coimbra”. Como singular executante da arte do toque popular da Viola Toeira, Raul Simões recebeu na sua oficina Ernesto Veiga de Oliveira em 1965, que fixou breves apontamentos de afinação da viola e de exemplificação do toque. Raul Simões interpreta trechos do “Estalado” e do “Vira”, utilizando notável toque misto à base de ponteio, rasgado e percussão. Os originais das gravações estão arquivados no Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa, no arquivo sonoro que serviu de base ao livro Instrumentos Musicais Populares Portugueses. Em 2001, o Prof. Domingos Morais orientou a digitalização destas recolhas, acessíveis online: http://alfarrabio.di.uminho.pt/arqevo/arqetnoevo.html. Num artigo do Jornal de Coimbra, “Raul Simões, o último tocador de viola toeira”, Manuel Dias, salienta: “Raul Simões faleceu levando consigo um património imaterial de Coimbra Popular, da Coimbra dos Futricas, ficando-nos a grata recordação do seu talento”. Raul Simões faleceu a 4 de Novembro de 1981 na freguesia dos Anjos, em Lisboa.

Notas:

A GUITARRA DE COIMBRA (2019, RTP2), um filme de Soraia Simões

Um olhar sobre a Guitarra de Coimbra realizado por Soraia Simões [RTP]

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Sanfona

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Sanfona

(sanfona de Fernando Meireles, fotografada em Coimbra durante recolha de entrevista com o construtor e músico)

(sanfona de Fernando Meireles, fotografada em Coimbra durante recolha de entrevista com o construtor e músico)

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A sanfona pertence à família dos cordofones. Parecida, do ponto de vista sonoro, com um violino com bordões produz um som usado ritmicamente por meio de uma corda apoiada numa ponte móvel (a mosca), e pela fricção das cordas através de uma roda com resina, por via de uma manivela, e a sua melodia é criada através de um teclado.

O som produzido por este instrumento assemelha-se a um cruzamento entre um violino, por ser de corda friccionada e possibilitar melodia, e uma gaita-de-fole, por ter bordões, por intermédio de outras cordas que apenas reproduzem uma nota pedal (ou seja uma nota continuada).

Alguns textos de mestres organeiros afirmam que a sanfona surgiu no século XI, d.C., no norte da Península Ibérica. Embora alguns investigadores na área de especialização em História Medieval reapontem o seu ‘surgimento geográfico’ para o Norte de África.

A sua forma mais arcaica conhecida é o organistro (também conhecido pela designação em latim, organistrum), um instrumento de grande dimensão em corpo de guitarra, que continha apenas uma corda de melodia e que cobria uma oitava diatónica, e dois bordões sem a ponta móvel ainda.

Este instrumento, devido ao seu tamanho, exigia ser tocado por duas pessoas por duas fases em simultâneo: em que uma friccionava as cordas e a outra tocava a melodia pretendida. Este acto consistia em puxar para cima barras de madeira ao longo da escala que, com pinos a meio, encurtavam a corda de modo a obterem diferentes notas. As melodias tocadas eram lentas devido ao esforço associado à tentativa da sua execução.

Com a introdução do órgão, caiu em desuso nos locais de culto, no século XII. A sanfona passa então a ser usada pela nobreza, trovadores, jograis e pelo povo. Com o passar do tempo, mendigos, cegos e vagabundos usam-na para tocar nas ruas e em feiras. No final do século XIX o instrumento entra em decadência, tendo quase desaparecido totalmente. Em Portugal perdurou até princípios do séc. XX, extinguindo-se.

(Fernando Meireles à conversa com Soraia Simões no âmbito deste projecto, categoria: História Oral, fotos de António Freire) Fernando Meireles em execução de 'Bailinho da Madeira' com Sanfona

(Fernando Meireles à conversa com Soraia Simões no âmbito deste projecto, categoria: História Oral, fotos de António Freire)
Fernando Meireles em execução de 'Bailinho da Madeira' com Sanfona

Em 1966, Ernesto Veiga de Oliveira escrevia: «Entre nós, da sanfona queda rara lembrança, e já apenas como instrumento de feira, cada vez mais raro, ao serviço de mendigos e cegos que, sem a saberem tocar, a envelheceram e desacreditaram; e é neste aspecto final que a memória dela se fixou (…)». Fernando Meireles (músico do grupo Realejo, construtor de instrumentos e artesão) pesquisou sobre este instrumento durante muito tempo e dedicou-lhe horas de trabalho, fê-lo renascer e valorizou-o de novo.

O instrumento que no século XIX desaparecera do universo musical português passou a fazer parte do quotidiano de Fernando Meireles Pinto, com um labor de critérios impares, recuperou, reconstruindo-o a partir de diversas fontes, nomeadamente das figuras de presépio dos séc. XVII e XVIII, da autoria do escultor Machado de Castro. Na 62ª recolha de entrevista realizada no âmbito deste trabalho, o músico-construtor, que ao fim de cerca de duas décadas permanece num dos corredores da Associação Académica de Coimbra com a sua oficina-Atelier, relembrou não só o seu percurso como o tempo da sua aproximação à sanfona e as emoções experimentadas ao longo de todo o seu percurso de descoberta e reconstrução do instrumento.

Com anos de trabalho consagrado à feitura de instrumentos, e encomendas várias de músicos como Pedro Caldeira Cabral ou Julio Pereira, as sanfonas, concertina, viola braguesa, bandolim e cavaquinhos tocados no grupo do qual faz parte – Realejo – sairam todos da sua oficina. Fernando Meireles tem o seu trabalho reconhecido em vários pontos do mundo, como a Casa Real Espanhola onde se encontra uma guitarra por si construída, o seu trabalho de recuperação da sanfona foi inequivocamente elogiado por colectores, destaco aqui o médico-psiquiatra de Coimbra Louzã Henriques, que tem dedicado mais de três décadas da sua vida ao coleccionismo e pesquisa de instrumentos tradicionais.

 

Vídeo em baixo: Recolha, adaptacão e arranjos de Janita Salomé
Vozes de Vitorino e Janita Salomé
Sanfona por Carlos Guerreiro

adenda: Carlos Guerreiro (entrevista, September 20, 2013, História Oral), construtor e músico (um dos mentores do colectivo Gaiteiros de Lisboa) construiria, igualmente, uma sanfona procurando (re) introduzir este instrumento, à semelhança de Fernando Meireles, noutros campos das música e cultura populares.

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Alguns instrumentos em contexto de grupos migratórios e sua classificação, construtores e executantes

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Alguns instrumentos em contexto de grupos migratórios e sua classificação, construtores e executantes

A forma com que determinado instrumento é construído tem em atenção algumas limitações anatómicas e fisiológicas do indivíduo.

Os materiais usados para conceber alguns instrumentos têm em conta razões de ordem acústica e prática, como por exemplo a forma e tamanho da mão do executante.

Os instrumentos classificam-se em algumas categorias e sub-categorias.

No meu trabalho de recolha para o Arquivo Mural Sonoro tenho efectuado um levantamento e registado alguns construtores de instrumentos tradicionais com ligações às migrações e diásporas a operar em Portugal.

Nessas recolhas musicais e de entrevistas vão estando instrumentos pertencentes a estas categorias:

idiofones – instrumento em que o som gerado resulta do corpo do instrumento sem estar submetido a uma tensão. Exemplos: o Balafon do Kimi Djabaté, o "tigelafone" da Maria João Magno, os "dununs" construídos e tocados pelo Kula, os tambores construídos através de materiais reciclados diversos do Filipe Henda, nomeadamente para a Orquestra 7, em Almada, ou a timbila de que fala num dos depoimentos transcritos efectuados para o Mural Sonoro a Historiadora moçambicana Julieta Massimbe.

membranofones – em que o som é gerado através de uma membrana esticada (como o caso dos adufes ou pandeiretas tocados, entre outros músicos, por Né Ladeiras)

cordofones – instrumento em que o som se produz através de uma corda tensa (como o caso do cavaquinho de Cabo Verde, de que fala o construtor mindelense Luís Baptista, ou o português com afinações várias de que falam João Pratas ou, em depoimento transcrito motivado pela baixa qualidade da gravação, Júlio Pereira e outros instrumentos de cordas com ligações a outras partes do mundo, mas que existem, se tocam e constroem em Portugal como a korá explicada por Braima Galissá ou Kula para o Arquivo, sem esquecer as guitarras de Lisboa e de Coimbra ou outros instrumentos de cordas)

aerofones – em que o som do instrumento é gerado pela vibração de uma massa de ar criada no instrumento (como alguns dos instrumentos de sopro construídos pelo Oleiro João Sousa ou as várias flautas construídas e tocadas por Nuno Pereira, Rão Kyao ou Carlos Guerreiro de que também se falam nas entrevistas). Os aerofones, com a chegada e repercussão dos instrumentos electrónicos deram origem a uma nova classificação ou categoria: os electrofones – instrumentos em que o som é gerado a partir da intensidade de um campo electromagnético.

(João Sousa – Oleiro construtor de instrumentos em barro em 56ª recolha de entrevista)

(João Sousa – Oleiro construtor de instrumentos em barro em 56ª recolha de entrevista)

(João Sousa – Oleiro construtor de instrumentos em barro em 56ª recolha de entrevista)

(João Sousa – Oleiro construtor de instrumentos em barro em 56ª recolha de entrevista)

(Kula – Músico e Construtor em 47ª recolha de entrevista)

(Kula – Músico e Construtor em 47ª recolha de entrevista)

(Kula – Músico e Construtor em 47ª recolha de entrevista)

(Kula – Músico e Construtor em 47ª recolha de entrevista)

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(Filipe Henda – percussionista, formador e construtor em 22ª recolha de entrevista)

(Filipe Henda – percussionista, formador e construtor em 22ª recolha de entrevista)

(à conversa com Kimi Djabaté – executante e construtor de balafons – em 14ª recolha de entrevista)

(à conversa com Kimi Djabaté – executante e construtor de balafons – em 14ª recolha de entrevista)

(à conversa com Maria João Magno em 54ª recolha de entrevista. Fotografia de Sessão Mural Sonoro no Museu da Música em 2013, sob o tema: Música Popular, Ensino e Experimentação)

(à conversa com Maria João Magno em 54ª recolha de entrevista. Fotografia de Sessão Mural Sonoro no Museu da Música em 2013, sob o tema: Música Popular, Ensino e Experimentação)

(à conversa com Nuno Pereira em 43ª recolha)

(à conversa com Nuno Pereira em 43ª recolha)

Das categorias de instrumentos aqui descritas a dos idiofones é a que apresenta um número mais significativo de instrumentos conhecidos da grande maioria das pessoas e classificam-se de acordo com a forma como ‘vibram’ ou como são ‘gerados em vibração’ e podem ser:

idiofones de percussão: sinos, tubos, placas, bambu, metal, vidro e têm nomes como xilofones, metalofones. Exemplo: o hanpan tocado por Kabeção Rodrigues.

idiofones percutidos: em que a sonoridade é transmitida quando a mão, baqueta ou outro objecto análogo toca/bate na superfície do instrumento: Exemplo: os dununs e djembés tocados por Kula ou o sabar tocado por Nataniel Melo.

idiofones percussivos: quando o som é proveniente do objecto com que se bate.

idiofones de concussão: quando o som da vibração resulta do choque entre dois objectos semelhantes. Exemplo: o peitoque tocado por Sebastião Antunes numa das recolhas ou as castanholas usadas por Né Ladeiras.

idiofones de agitação: quando o recipiente contém sementes ou grânulos que na agitação produzem som. Exemplo: caxixi usado por Ruca Rebordão ou Quiné Teles e Nataniel Melo, maracas ou sistro).

idiofones de raspagem quando funcionam através de um corpo que vibra sobre uma superfície irregular que é ‘raspada’. Exemplo: reco-reco

idiofones beliscados: quando o som se produz através da flexão de uma lâmina. Exemplo: o berimbau também tocado por Ruca Rebordão e falado em entrevista.

idiofones friccionados: quando o som é gerado por fricção do corpo em vibração. Exemplo: violino de pregos.

A categoria dos membranofones é dividida em: tambores, tambores de fricção (como o caso da sarronca) e mirlitão (como as flautas de enuco ou Kazoos).

Já os cordofones são por norma assim classificados mas sub-classificam-se de acordo com o posicionamento das cordas relativamente ao corpo do instrumento, podem ser: liras – quando as cordas estão esticadas entre a caixa de ressonância e a armação, cordofones tipo alaúde – quando as cordas paralelas são esticadas ao longo do braço e se prendem no lado extremo oposto do braço, como o caso das guitarras, cordofones friccionados com arco – como é o caso das violas de gamba ou outras da família do violino, cordofones tipo cítara – quando as cordas se encontram esticadas ao longo do comprimento do instrumento e paralelamente a este como o caso da trombeta marina, cordofones de teclado da família das cítaras como o clavicórdio, cravo ou piano.

Os aerofones assumem seis grupos distintos: aerofones de palheta (acordeão, órgão de boca ou harmónica de boca, saxofone, clarinete, oboé, fagote), aerofones de bocal (trompete, trompa, trombone, etc), aerofones de aresta (são da família das flautas como flauta transversal, flauta de pã ou de apito – bísel), órgão (sendo um instrumento mais complexo e híbrido é quase um instrumento à parte, tanto por conter tubos com embocadura de bisel como por ser munido de um ou mais teclados), aerofones livres nos quais o som se produz através do ar em contacto com um corpo de um instrumento, em que o que faz o corpo vibrar é o ar e não o corpo em si mesmo (exemplo: pião musical).


Quanto à voz, por se tratar de um instrumento humano que não é construído é um caso, embora se insira nesta classificação, complexo já que desempenha igualmente funções extra-musicais, como a comunicação oral.


As características tecnológicas, sociais, europeias e extra-europeias, etnográficas e organeiras dos instrumentos situam-nos pelo valor em si mesmo e não no espaço. A retórica que realça o imaginário de ”pertença geográfica” de um instrumento faz cada vez menos sentido até pelas alterações e desterritorializações de que eles têm sido alvo ao longo dos séculos.

Fontes usadas na pesquisa: HENRIQUE Luís, Fundação Calouste Gulbenkian, Instrumentos Musicais, recolhas de entrevistas a vários construtores, estudiosos e executantes de instrumentos musicais em contexto migratório para Mural Snoro.

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‘Tigelafone’ por Maria João Magno

‘Tigelafone’ por Maria João Magno

por Maria João Magno [1]    

Maria João Magno (exemplificação de som de tigelafone). Ouvir entrevista cedida a Soraia Simões aqui

Maria João Magno (exemplificação de som de tigelafone). Ouvir entrevista cedida a Soraia Simões aqui

História

Tudo começou pela decisão de casar. A construção do lar, que passa pela aquisição de diversos objectos, de entre os quais, loiça. Depois da pesquisa, decidimos adquirir a mais bonita e funcional. Para casa trouxemos pouca coisa – abominamos «tralhas» – que comprámos na entretanto fechada Casa alegre. No meio de pouca coisa vinham três tigelas de tamanhos diferentes e seis iguais, as mais pequenas. Tiveram interesse para nós porque são brancas, condizentes com inúmeras cores de toalhas e guardanapos, e vão ao forno, o que as torna multifuncionais. O pormenor de irem ao forno fez com que o seu lugar oficial fosse a cozinha. Lá habitaram, até ao dia em que, a tigela maior estava sobre a mesa da sala, ao serviço de uma grande salada, e o talher lhe bateu sem intenção. O som despertou-me completamente. Estávamos em 2004.

Dei início à investigação. Uma espécie de encontros secretos com uma tigela e a outra e mais a outra e a descoberta de que tinha encontrado um instrumento musical, se juntasse as três tigelas. Dei-lhe um nome: tigelafone.

Batia nas tigelas com o que tinha à mão – colheres de pau – experimentava diferentes colheres em diferentes sítios das tigelas e ouvia um sem número de timbres, ataques e ressonâncias, sempre afinados: lá2, mi3 e sol3. Experimentei os cabos das colheres na vertical, na horizontal, uma colher, duas, mais colheres e quando as esgotei fui ao encontro dos espetos de madeira. Comecei por tocar com um em cada mão e descobri que era preciso mais volume de som. Juntei espetos, fixei-os com um elástico e fiz dois maços, um para cada mão. O timbre é bastante diferente daquele que se obtém com as colheres.

 

Pairava-me na mente como iria passar do som à música. Como poderia fazer música apenas com três notas? Percebi que o facto de ter um intervalo de sétima enriquece a matéria-prima e não ter a terceira do acorde permite-me decidir sobre o modo (maior ou menor, pelo menos). A quinta é o elemento de estabilidade harmónica, dá jeito.

Rapidamente entendi que teria de apostar na diversidade tímbrica de cada tigela e rítmica da música para fazer música com três sons (notas) percutidos (as).

Inicialmente compus Da Mulher, em Abril de 2004. Tinha feito trabalho de pesquisa para a Universidade sobre canções de embalar, tema que me fascina. Nasceu-me o texto, a música e logo a partitura como registo que ajuda a organizar as ideias. O tigelafone já tinha assumido a importância que lhe dou hoje, pelo que não o tratei como acompanhador da voz, mas sim como parte integrante da mesma por vezes e extensão, por outras. Tal como a mãe e o filho. Tal como a mulher que deseja que a criança durma, porque é preciso fazer outras coisas em casa.

As composições sucederam-se umas às outras. Após um contacto que estabeleci com a empresa que fabrica as tigelas recebi dez, iguais duas a duas, mas todas diferentes em termos sonoros. Este problema obrigou-me a escrever, dentro das tigelas, a referência das notas que produzem. Por exemplo, sib2+ e sib2-, em duas tigelas, semelhantes no tamanho e à vista, mas não na afinação. Actualmente ainda investigo as tigelas que recebi, juntamente com outros exemplares que adquiri quando visitei a fábrica.

A escrita musical é adaptada ao instrumento e é por isso que nas partituras desenho o tigelafone que utilizo em cada música.

 

(debate, coordenação: Soraia Simões Música Popular, Ensino e Experimentação | Museu da Música)

Conceito

O termo tigelafone surgiu de forma espontânea, devido à necessidade de fazer referência, em partitura musical, ao nome do instrumento para o qual estava a escrever música. Pretendia não me esquecer que aquelas notas musicais são específicas das tigelas com as quais andava a fazer experiências sonoras. Tigela = tigela e fone = som. O som das tigelas.

Mais tarde, tigelafone passou a ser um Projecto e, presentemente, o termo engloba dois aspectos:

1) Primeiro define um instrumento musical que se enquadra na categoria dos idiofones (classificação de Hornbostel e Sachs). Nesta categoria de instrumentos musicais «o som é produzido pelo próprio corpo do instrumento, feito de materiais elásticos naturalmente sonoros, sem estarem submetidos a tensão.» [Luís Henrique, Instrumentos Musicais, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1988 - p 23].

À semelhança do xilofone, ou do metalofone, o tigelafone consiste num conjunto, ou colecção de corpos vibrantes – neste caso tigelas de cerâmica – que agrupados geram determinada organização sonora, organização essa que se constitui como a base melódica e harmónica da música para tigelafone.

2) O segundo aspecto do termo está associado à ideia de marca registada, na medida em que tigelafone é, desde 2009, uma marca registada em Portugal.

[1]  para citar este texto: Magno, Maria João* «Tigelafone», Plataforma Mural Sonoro, https://www.muralsonoro.com/recepcao, 25 de Fevereiro de 2015.

*Estudou no Conservatório de Música e licenciou-se em Ciências Musicais pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (1991-1995), onde fez também a Pós-licenciatura no Ramo de Formação Educacional, em Ciências Musicais (2001-2003).

Compositora e intérprete em Gestos, um espectáculo de sua autoria, que integra voz, piano, instrumentos musicais construídos a partir de materiais reutilizáveis e o Tigelafone (2001-2006). Participou em diversas gravações como música.

Recentemente Maria João integrou a equipa da Divisão de Educação Artística, na Direcção Geral do Ministério da Educação e Ciência – Lisboa. Actualmente lecciona disciplinas da Música, pesquisa na área do Tigelafone e continua a compor e a actuar em recitais/espectáculos musicais.

‘El Sistema’ de Orquestras Juvenis de Venezuela, por Francesco Valente

‘El Sistema’ de Orquestras Juvenis de Venezuela, por Francesco Valente

por Francesco Valente [1]

A literatura do ‘multiculturalismo’ sobre a educação geral e em particular musical é muito rica, e é muitas vezes centrada na questão do ensino da música numa perspectiva ‘multicultural’ e de integração, sendo caracterizada pela implementação da música ocidental, e sobre a necessidade de estudar vários tipos de música. Um dos acontecimentos do século XX, do ponto de vista social, económico e cultural mais significativos na Venezuela, foi a criação e o desenvolvimento de El Sistema de Orquestras Infantis e Juvenis (“El Sistema”), cujo mentor foi José António Abreu. Um instrumento revolucionário para combater a pobreza, onde a música é utilizada como instrumento de coesão dos distintos grupos sociais, promovendo as classes mais pobres: dos quase 300.000 músicos integrantes a maioria são de bairros pobres, que frequentemente tocam instrumentos doados, emprestados, normalmente entre os participantes temos crianças e jovens, alguns com problemas ou handicap. Na metade de 2007 o pais estava contando com 135 orquestras e 75 coros integrados no Sistema, que contava com mais de mil colaboradores para assegurar seu funcionamento e sua coordenação.

‘El Sistema’ além da instrução musical específica, que utiliza métodos inovadores, desenvolve seminários sobre a construção e reparação de instrumentos musicais, e outras actividades variadas com meninos a partir dos dois anos de idade. ‘El Sistema’ começou por volta de 1975, e seu fundador foi, ironia da sorte um doutorado em economia petroleira. Foi adoptado depois pelo governo de Chavez como seu “novo programa social do governo bolivariano”, com um certo oportunismo político por querer adoptar e identificar-se num dos programas mais originais e de êxito que foi ensaiado no pais para combater a pobreza. No entanto, para a surpresa de muitos, para o orgulho da região, e para o deslumbramento de personagens como Cláudio Abbado, Plácido Domingo, Ratlle o Daniel Barenboim, Venezuela oferece ao mundo hoje um exemplo de como se pode reduzir a pobreza por meio da arte.

‘El Sistema’ leva já 33 anos produzindo bons músicos e exportando um modelo de gestão cultural: para o grande público, a personagem mais famosa é Gustavo Dudamel, Director Musical da Orquestra Sinfónica Juvenil Simón Bolívar de Venezuela, que com 27 anos de idade, conta com um curriculum invejável, tendo ja dirigido varias orquestras pelo mundo fora. Mas parte da explicação do sucesso deste projecto se deve ao seu fundador Jose Antonio Abreu, que alem de ser musico, é economista: sua obra atravessou nove legislaturas, entre golpes de estados e crises do petróleo, e se espalhou pelo mundo fora atravessando continentes, e representando um modelo de ensino e de abordagem pedagógica.

Um exemplo disto é a Orquestra Geração, que representa este programa inovador aqui em Portugal, gratuito para as crianças, e que foi concebido principalmente com base no próprio modelo das Orquestras Sinfónicas Infantis e Juvenis de Venezuela. Contando na coordenação pedagógica e artística com dois músicos venezuelanos aqui residentes e ainda o apoio de vários formadores do ‘El Sistema’, que se têm deslocado a Portugal por ocasião dos estágios de Verão da Orquestra, o projecto enquadra cerca de 80 professores, na sua maioria jovens músicos recém formados (a quem é ministrada formação na metodologia do sistema) e que aqui encontraram a sua primeira oportunidade de trabalho. A Orquestra Geração já conta no seu currículo com várias apresentações públicas em Lisboa e arredores.

Para quem queira saber mais aconselho os seguintes vídeos:

[1] para citar este artigo: *Valente, Francesco «El sistema de orquestras juvenis de Venezuela», Plataforma Mural Sonoro em 17 de Novembro de 2012 https://www.muralsonoro.com/recepcao.

*Músico e investigador em etnomusicologia

Fotografia de capa: autoria de Gustavo Dudamel, tirada numa favela de Caracas.

Pandeireta com soalhas

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Pandeireta com soalhas

(fotos de Soraia Simões, colecção Museu da Música)

(fotos de Soraia Simões, colecção Museu da Música)

A Pandeireta é um instrumento musical (que permanece desde os tempos romanos) de percussão semelhante ao pandeiro brasileiro mas menor. Usado em músicas tradicionais de vários países europeus como, entre outros, Espanha, Rússia ou Portugal.

No seu formato mais conhecido a pandeireta é constituída por um aro circular (geralmente de madeira) cujo centro é coberto por uma camada de pele. É constituído ainda por um conjunto de soalhas metálicas, agregadas aos pares.

As pandeiretas aparecem em vários formatos e formas apresentando entre si várias diferenças de:

Formas – Os aros podem ser circulares, semi-circulares, rectangulares, triangulares e até geometricamente irregulares.
Materiais – Os materiais dos aros podem variar entre madeira e plástico e a camada que cobre o aro pode ser de pele ou de plástico.
Tamanho – podem ter desde diâmetros de 13cm até 28cm e algumas chegam a atingir 30-40cm de diâmetro, sendo essas chamadas pandeiros.
Soalhas – podem incluir desde 2 até 12 pares de soalhas.

 

Vídeo em baixo e explicação de Jonás Gimeno

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Cavaquinho em regiões de Portugal e Cavaquinho em Cabo Verde

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Cavaquinho em regiões de Portugal e Cavaquinho em Cabo Verde

Cavaquinhos de Raul Simões

Cavaquinhos de Raul Simões

Afinações, cordas e palhetas

Notas extra:

O cavaquinho de origem portuguesa é o integrante  mais agudo da família das violas europeias compostas de tampos achatados.

Transmitido em Espanha, levado para o norte de Portugal por executantes oriundos de Biscaia (hoje País Basco), foi na região do Rio Minho (Braga) que se notabilizou sendo comummente chamado de braguinha.

Em Portugal, é possível identificá-lo também como machimbo, machim, machete ou marchete, braguinho e cavaco.

No Minho encontramo-lo em práticas coreográficas e músicas tradicionais.

Em Lisboa, o cavaquinho em conjunto com bandolins, violas e guitarras, nas designadas tunas (não necessariamente em contexto universitário). De instrumento rudimentar dos camponeses, em que o braço e a caixa eram uma só peça (escala rasa), ganhou um melhoramento que ampliou a sua projecção sonora.

O espelho (ou escala), uma madeira de maior densidade situada sobre o braço e que avança por cima da caixa até a proximidade da boca. Tudo aponta para que tenha sido igualmente em Lisboa que a palheta passou a ser usada. Até então, no Minho, o cavaquinho  era tocado num rasgo, com os dedos polegar e indicador da mão direita.

Congrega afinações várias sendo  a mais conhecida Ré-Sol-Si-Ré. Em Portugal ainda encontramos:

•Ré-Sol-Si-Mi – usada em Coimbra

•Sol-Ré-Mi-Lá – chamada afinação para “malhão e vira na moda velha”

•Sol-Dó-Mi-Lá – afinação usada na região de Barcelos

•Ré-Lá-Si-Mi – considerada por muitos como a mais versátil harmonicamente

São usadas também afinações em que a corda mais aguda é a quarta e não a primeira.

No Brasil, por norma a afinação, é Ré-Sol-Si-Ré , mas existem executantes que usam a  Ré-Sol-Si-Mi.

A afinação em quintas como no bandolim, Sol-Ré-Lá-Mi, modifica acentuadamente o timbre do instrumento, mas tem um resultado em acompanhamento que funciona bem no samba.

As cordas que um dia foram de tripa, hoje são de aço e as palhetas que antes usavam casco de tartaruga, hoje são feitas de variados compostos plásticos.

Notas: Foto de capa e restantes de Cavaquinhos construídos por Raul Simões (1891-1981) em Coimbra.

Demonstrações de dois dos mais reconhecidos músicos e  tocadores de cordofones vários: Amadeu Magalhães  e Pedro Caldeira Cabral (''Minho'') numa apresentação na cidade de Coimbra. Também na cidade de Coimbra o construtor Fernando Meireles gravado para o Arquivo Mural Sonoro e um dos intervenientes, com Óscar Cardoso, numa das Sessões do Ciclo Conversas em Volta da Guitarra Portuguesa  com o Tema: Guitarras de Coimbra e de Lisboa. Sua construção, técnicas e difusão, se tem dedicado à feitura de cavaquinhos, foi até o primeiro instrumento que fez como construtor enquanto vivia numa República na cidade de Coimbra, explicando na recolha de entrevista efectuada para o Arquivo Mural Sonoro o porquê de ter decidido começar por este instrumento.

No vídeo abaixo o músico e construtor cabo-verdiano, Luís Baptista, na sua oficina no Mindelo (São Vicente)

Raul Simões e o neto Fernando em 1955

Raul Simões e o neto Fernando em 1955

pormenor de cavaquinho construído por Raul Simões

pormenor de cavaquinho construído por Raul Simões

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OqueStrada: uma Lisboa cantada sobre e para todas as pessoas que vivem nesta cidade hoje,  por Caeli Gobbato

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OqueStrada: uma Lisboa cantada sobre e para todas as pessoas que vivem nesta cidade hoje, por Caeli Gobbato

 

*por Caeli Gobbato

OqueStrada: projeto musical que orquestra a estrada no encalço de todos vocês e desenha o seu mapa de fronteiras musicais numa saga de enredo, fuga, amor, mistério e ação.

“Fernando Pessoa veio dizer ao povo português uma coisa fundamental, marcando bem, que o português é plural e é na sua pluralidade que ele se tem que afirmar”

Segundo Bernal, ''de início sabia-se que a civilização grega tinha raízes na cultura egípcia, semita e várias outras meridionais e orientais, mas no decorrer do século XIX ela foi remodelada como uma cultura “ariana”, na qual foram ocultas ou eliminadas de maneira ativa suas raízes semitas e africanas. Como os próprios escritores gregos reconheciam abertamente o passado híbrido de sua cultura, os filólogos europeus contraíram o hábito ideológico de passar por cima dessas passagens embaraçosas, sem as comentar, em prol da pureza ática”

Falar do OqueStrada é falar do Portugal de hoje, de uma leitura inclusiva e reflexiva sobre Lisboa e suas margens, sobre, principalmente, quem vive aqui. Este trabalho privilegia o olhar carinhoso dado pelo grupo às pessoas. Porque entendemos o tamanho do país à medida que olhamos de perto e percebemos quem é que o faz.

Pretendo refletir sobre questionamentos que encontrei presentes neste álbum e na vida do grupo, sobre conceitos como identidade, cultura nacional, omissões e adaptações da história portuguesa, espaço urbano e a sua construção e periferias, cultura popular e cultura de massa/indústria cultural. Escolha esta por perceber aqui um importante eixo que articula a arte com princípios da democracia, da expressão e síntese cultural de um povo. 

Línguas, identidades 

“Com OqueStrada as línguas falam-se à portuguesa e o que se não sabe inventa-se”*

O OqueStrada canta, em português, diversas línguas que estabeleceram forte  presença/relação ao longo do tempo em Portugal. Quando digo “em português”, sublinho a questão, sempre presente mas em crescente progresso, das identidades múltiplas que formam Lisboa. 

Miranda, para além de cantar o fado na noite lisboeta, cantou canções crioulas de Cabo Verde na mesma noite lisboeta, cresceu com a sonoridade brasileira de um português cantado e falado como outra língua. Pablo é francês e cresceu entre portugueses. A língua francesa foi afirmação da boa educação portuguesa em gerações anteriores de um país cuja capital abriga mais portugueses que a cidade do Porto. Já a língua cigana está na infância de um dos primeiros músicos, de viola, que cresceu em Almada, convivendo com este povo que desde sempre cultivou o hábito de caminhar pelo mundo. 

O espanhol está ali pela eterna questão ibérica, relação de fronteira, língua que o falante do português julga saber antes de experimentar, o que a proximidade de estruturas permite. E o inglês é a língua da ascenção, é cada vez mais uma segunda língua obrigatória para a comunicação intercultural, embora tenha particular peso o passado histórico onde Portugal mantém uma relação de subordinação com a Inglaterra. Tais línguas estarem aqui juntas em voz portuguesa carrega algumas questões que pretendo explorar. 

A vontade de que Lisboa possua e mantenha uma imagem padrão ou uma resistência em relação à crescente heterogenização da sua população construiu uma espécie de política de negação que procura disfarçar o fato de que há portugueses que não se enquadram no padrão imaginário da cor “branca” da pele, que falam a língua que também tem o desejo irreal de ser imutável e alimentam a ilusão de que estes poderiam ser, de certa forma, “visíveis” e rapidamente classificáveis. Existe um enorme medo de ser classificado como inferior, jogando para baixo do tapete relações de troca riquíssima, encontros culturais que ajudaram a fazer o que é Portugal. O historiador António Borges Coelho comenta sobre sua saudável curiosidade ainda na época de aluno: “A primeira grande inquietação que tive como aluno de História foi explicar como é que estando os muçulmanos como cultura dominante na península Ibérica durante tantos séculos não tenham ficado quaisquer vestígios na História portuguesa”ˡ. Porquê esconder  autores, poetas e filófosos simplesmente por pertencerem a um passado muçulmano? 

Hoje há também uma forte tendência a classificar a cultura como nacional e estrangeira presente em território nacional, como se houvesse forma possível de encerrar a cultura, imobilizá-la e impedir que contatos frequentes produzam qualquer interferência. Por mais que um número crescente de pessoas de origem em diversos continentes esteja optando viver em Lisboa (principalmente oriundos dos países de língua oficial portuguesa), e falemos agora de uma geração nascida e criada em Portugal, prevalece a insistência em ignorar a diversidade cultural como parte da identidade portuguesa. Estas questões se ligam com a formação de um ideal do que seria a identidade cultural portuguesa que presta homenagem e obedece às lógicas neo-colonialistas e imperialistas que formatam a cultura europeia como superior e intocável perante as outras. Edward Said em «Cultura e Imperialismo» trata da importância da cultura e da produção cultural no processo imperial que se iniciou no século XVI e salienta que este processo não acabou com as independências das antigas colónias, pois “ assim como nenhum de nós está fora ou além da geografia, da mesma forma nenhum de nós está totalmente ausente da luta pela geografia (…) [que] não se restringe a soldados e canhões, abrangendo também ideias, formas, imagens e representações”². E esta herança imaterial não se desvanece de todo e se transforma muito lentamente. Esta forma “imperial” de pensar atravessou mares, fixou raízes durante quase quatro séculos, sendo que, no início de século passado, “a Europa detinha um total aproximado de 85% do mundo, na forma de colónias, protetorados, dependências, domínios e commowealths”². Este número assustador explica um pouco o fato desta ideia ter sido tão expandida e aceite, pois o início da nossa globalização, onde o mundo estava quase que completamente submetido a apenas uma forma de interação, exaltou ideias que privilegiam uns e relegam a subordinação e inferiorização outros que estão sob a etiqueta de “menos avançados” ou, simplesmente, inferiores.

Como muitas destas nações ainda “reinam” na organização económica mundial, a ideia continua muito próxima do que foi. A questão de Portugal ser muito mais frágil em poder político e económico ajuda a estabelecer um caminho de insegurança e a alimentar um dilema que é a procura de uma identidade própria e bem delineada. Mesmo que rejeitar o caráter misto e de constante mudança da cultura fosse possível, acredito que a pior forma de alcançar este objetivo (ou uma ideia próxima dele) é não olhar verdadeiramente para o povo, para o cotidiano das cidades, como se processa a realidade urbana, a interação entre nacionais, imigrantes, emigrantes retornados, turistas. 

Estaremos caminhando para trás se não exercitarmos a capacidade de refletir sobre que tipos de representação estamos produzindo para nós e para quem nos rodeia, formando assim a imagem do nosso país; refletir sobre a relação do caminhante com a cidade, as disposições sociais, como são ofertados os bens culturais públicos, o espaço e os serviços públicos e para quem. 

A grande dificuldade está nesta herança ideológica que prefere a ilusão de forjar um presente que defenda ideias e preconceitos de um passado que sempre trabalhou para mascarar seus “feitos”. Tanto a época colonial como o Estado Novo de Salazar vendiam ilusões para acalmar o povo, manipulando e distorcendo informações. Portugal colonial não se cansava de professar seu altruísmo, o fato de estarem levando a civilização e melhores condições de vida para instalarem enfim o progresso, da mesma forma que o governo ditatorial de Salazar pregava o oásis de paz que era Portugal sob o seu comando.

Portugal ser hoje um país não muito influente no cenário europeu parece ainda mais um fator desestruturante nessa busca identitária, pois persiste em privilegiar países Inglaterra e França e menosprezar os que, vindos outrora de fora, hoje constituem povo português, menosprezando assim o que o forma como país e elogiando o que está para além dos seus limites. 

O que OqueStrada alcança com o seu trabalho polivalente é um olhar despido desta ilusão reacionária, um olhar que passeia pelo que forma Lisboa hoje, e o faz em ritmos e sonoridades múltiplas, olha e dialoga numa espécie de reconhecimento de terreno próprio, às claras, andando por distritos e freguesias, falando e ouvindo quem aqui vive, perguntando pelo país como quem pergunta por cada pessoa que nele vive.

A RUA

“A Piajio está diretamente ligada à criação artística em espaços públicos (artes de rua) e assim gosta de explorar o imaginário e heranças sentimentais de cada cidade, de cada região, de criar dinâmicas em diferentes bairros, de se debruçar sobre espaços arquitetônicos e o seu contexto urbano, para, aliada à vontade de contar histórias de pessoas e dos espaços onde elas habitam, contribuir para difundir as artes do espetáculo no tecido urbano”*

A trajetória do projecto nasce do amor pela rua e da vontade de “requalificar a rua como palco preponderante de uma sociedade contemporânea”. Tanto Pablo quanto Miranda antes de se encontrarem já exercitavam o perceber e sentir o público, estabelecendo uma relação efetiva no circo, teatro, caravanas culturais. O que em si já carrega um grão libertador, visto que as artes de rua e principalmente o circo trabalham o poder do riso, que para Bakhtin, foi o que sempre fez frente ao poder opressor da Igreja e do Estado, usando o riso para desconstruir e repensar, criticar mais abertamente (sempre presente na figura do bobo da corte que está mais próximo do bufão do que do clown). E o riso é também figura indispensável nas festas populares que juntam o bem comer e as bebidas que afrouxam e aliviam o espírito, está próximo da cultura popular enquanto expressão de liberdade das práticas culturais essenciais.

A rua sempre foi o palco da cultura popular, que constrói-se na história das relações entre grupo sociais e por isso é heterogénea e dialética, mas está num lugar subordinado. Este me parece um dos pontos de subversão do Oquestrada, quando mergulham no imaginário popular a fim de emergir com preciosidades para fazer música, oferecem esse caráter protagonista à expressão cultural do povo que os circunda e que está presente na infância de cada um deles, é experiência inscrita ao longo dos anos. Eles partilham a consciência do valor da cultura popular como concepção de mundo e do seu valor estético, juntando diferentes ritmos e falas para de tal combinação nascer uma ideia de coletivo liberta e inclusiva.

Na música Se esta rua fosse minha percebemos este caráter nesta junção de ditos e saberes populares, quadras de João Gomes e LJ Barbosa recitadas pelas ruas, ao lado de poesia anónima e por isso pertencente à multidão, de valor e temperamento eterno. A noção de responsabilidadesocial que permeia a história do grupo aqui acende: afinal, de quem é a cidade? A música inicia com uma suposição, Se esta rua fosse minha, como quem discretamente sugere a possibilidade de reivindicar o direito à cidade. O direito à cidade é o direito de participar na construção do espaço urbano, para que este evolua sendo sensível à necessidade dos que nele habitam. Vimos que quem constrói, intervém e faz a manutenção do espaço urbano, obedece às leis do lucro, embora quem o financie seja a população. David Harvey fala sobre a difusão de um pensamento atual por um mundo melhor, mas salienta que o centro deste discurso está fundamentalmente no direito à propriedade privada e ao lucro, preocupações que privilegiam a boa saúde do sistema capitalista e não a real qualidade de vida.

Esta lógica perpassa as indústrias culturais, que almejam o fenómeno de venda e para tal investem na propaganda e na sobredivulgação, tornando-se opressora e, muitas vezes ligada às correntes ideológicas da elite detentora do poder, jogando muito bem com o consumo. A ideia da propaganda e da sociedade de consumo está diretamente ligada aos ideais neoliberais que, a exemplo norte-americano, está sempre envolta em uma aura falsa de liberdade de escolha. Qual é a escolha de quem nasceu com os mesmos canais de televisão que promovem a mesma noção do feminino ideal, de interação social, de moda e nas rádios ouve músicas que coincidem também com esses mesmo nos temas e arranjos? Pois sentir-se incluído também passa por uma identificação com o que supostamente os outros também se identificam.

FADO

“ Pela minha parte não posso considerar o fado senão como síntese, estilizada por séculos de lenta evolução, de todas as influências musicais que afetaram o povo de Lisboa”³

O fado está presente na música de OqueStrada porque está presente na vida dos portugueses, nasceu pelos portos desse país costeiro, veio chegando em Portugal com os que daqui saíram e para cá voltaram, misturados nas misturas dos navios, visitando terras, ouvindo cantigas, sentindo e transformando, fazendo desses diálogos musicais vadios o cantar de muitos que por aqui viviam, pois, ao forjarem-no, encontraram-se: mulheres e homens que cantam porque só assim sabem viver, foram no seu dia-a-dia de trabalho e boémia colando o fado ao país. A criatividade pulsante do fado estava nas ruas, nunca foi de todo tristeza, pois como diz Mário Anacleto, ligado à palavra moira (destino) está, claro, a dor, o sofrer, mas também está a palavra hubris (força interior para vencer resistências, fogosidade, ímpeto), que me parece mais próxima da saga pela qual passou e passa. Quando o OqueStrada diz que não é fado, apesar de também o ser, quer dizer que não quer o título vazio e efémero de “estar na moda”, pois uma das consequências desta busca aflita pela identidade portuguesa foi eleger uma música que a suportasse, e, como já vimos, com o grande intuito de encontrar forma de representar-se e ser rentável, em tempos que uma das “funções” da cultura local é ser exportada. Por isso, depois da inclusão de Portugal na União Europeia, começou uma corrida ao fado, como se houvesse um refrescar de memória e lembrássemos o que é ser português. E a indústria cultural apostou nisso. Mas quando entra o fator lucro, percebemos logo a fabricação de cantores-produto que não necessariamente estavam ou estiveram ligados ao fado, mas que enquadram-se como figuras típicas. Este esvaziamento de sentido parece acontecer pela insistência em negar a diversidade e estabelecer um padrão. O mesmo se pode colocar em relação às cidades-museus, que, sendo, como o fado, património nacional incontestável, não se percebe muito bem qual é o seu papel no quotidiano da vida urbana e quem ganha mais com isso. Não é linear, o fado conta muito sobre a história cultural do país, mas foi se aprisionando nesta caixa- expositora standart e começou a desgastar-se e perder o rumo, que está no quanto faz sentido emocional e expressa uma necessidade coletiva. Sinto que este norte vem sendo recuperado por todos estes trabalho contemporâneos que bebem do fado e o transformam, relêem, misturam e o tecem de um colorido mais vivo. Parece que quando o OqueStrada relembra que fado não é só tristeza, é vida boémia de convívio e descobertas, tira-o da caixa, dá vida e ajuda os grandes fadistas a serem ouvidos e apreciados com os ouvidos e o coração de hoje. 

A sensação é de termos pulado parte importante, por estarmos superando e retomando origens do fado. O que Miranda aponta com relação ao passado ditatorial do fado, uma das bandeiras de Salazar, é que, como outras ditaduras pelo mundo, um ditador investe em propaganda, em cultura manipulada para divulgar e exaltar o seu trabalho. Pensando assim, o fado foi tão vítima quanto o próprio país, pois, antes enxovalhado por pertencer a um universo notívago e duvidoso do ponto de vista católico e de extrema-direita, agora é chamado a depor, confessar e passar a trabalhar para o país, servir ao regime. Porque o povo precisa estar contente, precisa entender o que o ditador quer que entenda, e, uma grande ajuda é aliar-se ao que já é popular por mérito próprio. (Depois dos fenómenos da modinha e do lundum, como primeiras manifestações do que se pode chamar de música urbana, e o fado, rico e inovador pelas misturas e diversidade, foi também sucesso popular logo em seguida. As primeiras notícias do fado vêm com relatos do século XVIII, mas é reconhecido como tal já no século XIX). 

Margens, Periferia 

“A Piajio associação está sedeada em Almada, cidade que faz fronteira entre Lisboa e o sul do país, estimula-nos esta realidade de fronteira entre economias, entre gerações, entre amador e profissional, entre culturas como terreno de dramaturgias e suporte essencial de um espetáculo.

Harvey nos fala sobre o processo urbano que, em nome dos lucros que beneficiam a elite e os bancos, organizam o espaço urbano de forma a expulsar gradualmente aqueles que não são capazes de pagar os altos preços dos centros urbanos, para uma periferia metropolitana que circundam os limites da cidade. Desta realidade consegue OqueStrada extrair a mais-valia que só podia estar onde está a maioria da população da grande Lisboa: a riqueza de mundos que se encontram, gerações atuais que, ao sair da casa dos pais em áreas geográficas privilegiadas, já não possuem dinheiro suficiente para continuar aí; pessoas que há algum tempo seriam consideradas de classe média, mas cada vez menos capaz de suportar grandes despesas; trabalhadores imigrantes de várias nacionalidades praticamente sem poder económico que foram desalojados de suas palhotas e afastados para as margens; e os filhos destes que já aí nasceram, ou mesmos os que chegam agora, mas só aí conseguem preços possíveis. Um caldeirão cultural sem dúvida criativamente fértil, com suas histórias de passados tão diversos, seus contos, “causos” e canções, seus sotaques e mundos. 

São estas pessoas hoje que recheiam e constituem a grande Lisboa. Mas têm estas pessoas o direito à cidade de que falamos? 

Não é de se admirar que não tenham quando todo o processo de urbanização foi construído para dar suporte ao capital excedente do sistema e produzir mais dinheiro em nome do mesmo, enquanto crescem os endividamentos e a cada ano vemos surgir maior número de novos milionários e a qualidade de vida e o poder de compra do povo diminuir. O resultado é o alargamento da distância entre classes em que uma das consequências é a criação de nichos fortificados, condomínios auto-suficientes que não dependem dos serviços públicos enquanto a alguns quilómetros de distância há bairros inteiros em condições precárias de infra-estruturas e de relação com o centro. Na construção da cidade (que os direitos humanos não lembram de reivindicar como tal), percebemos que, afinal, todo o processo de urbanização dos últimos anos não tem contribuído para o bem-estar humano, foi é fundamental para a sobrevivência do capitalismo. 

E qual é a importância de OqueStrada e das expressões artísticas inclusivas para este quadro urbano?

A resposta cruza-se com o objetivo social da arte que espera atingir o máximo de pessoas possível sem temer público ou selecioná-lo, espera entrar em comunhão com o povo pela via do sensível, da festa, da celebração, do riso. Quando ouço questões que se aproximam das minhas ou, se ainda não formulei alguma, que dialogue com a minha vida, cultura, história, condição, é imediata a atenção. Que o toque seja mínimo, provocará vontade de questionar, de refletir, de olhar em volta com mais cuidado. E isto é o início da mudança. Tascabeat, o sonho português é alegre, é vivíssimo, porque acende a vontade de cantar por um mundo melhor, para o melhor do mundo, convida as pessoas à saírem do estigma aprisionante e improdutivo do pessimismo inerte e saudarem a capacidade que todos têm de vislumbrar transformações sociais e iniciarem-na na sua casa, no seu bairro, freguesias e conselhos, pelo mundo a fora.

Referências biliográficas

Coelho, António Borges, Entrevista à Biblioteca Municipal de Murça. 29/07/2009: http://bmmurca.blogspot.com/2009/03/entrevista-antonio-borges-coelho.html: 

Said, Edward W., Cultura e Imperialismo. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1993.

Anacleto, Mário, Fado - Itinerários de uma cultura viva. Lisboa: Ed. Mill Books, 2008.

Bakhtin, Mikhail, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François 

Rabelais. São Paulo: Hucitec/ UnB, 1999.

Harvey, David, The right to the city. 14/05/2010: http://www.newleftreview.org/?view=2740

Tinhorão, José Ramos, As origens da canção urbana. Lisboa: Ed. Caminho, 1997.

 

Letras citadas:

Eu e o meu país

De distrito em Distrito, de Freguesia em Freguesia E 

quando os teus braços chegam aos meus,

Nós somos só um, somos um só, somos só um

Eu e o meu país

Ouvi dizer que me amavas, adoravas, entendias

Ouvi dizer que me querias, mas...

E se à noite me sorris, de dia pouco me falas

E é tanta rotunda que já nem sei chegar aqui

Neste silêncio, neste pantanal

Sou turista acidental

Neste anúncio, neste postal, 

Sou turista acidental

Mas e tu, tu, oh, tu, o meu país, mas e tu, diz-me

Onde ficas tu neste postal?

Se esta rua fosse 

 Se esta rua, se esta rua, se esta rua fosse minha

 eu mandava, eu mandava, eu mandava ladrilhar

 com pedrinhas de rubi para ao meu amor passar

 ai se esta rua, se esta rua, se esta rua fosse minha

 eu mandava ladrilhar com pedrinhas de rubi 

 só para ao meu amor passar

 Ai lá porque és feia tem calma não te faltam seduções

 Mais vale ser linda de alma do que linda de feições

 Mais vale ser linda de alma do que linda de feições

 Ai o amor, o amor, o amor é como lua

 ora cresce ora mingua, é

 Ai o amor é como lua

 ora cresce, ora cresce, ora mingua

 Que bom ser pequenino 

 Ter pai, mãe e ter avó

 Ter esperança no destino

 E ter quem gosta de nós, e ter quem gosta de nós,

 E ter quem gosta de nós,

 Ai é tão bom ser pequenino

 Se esta rua, se esta rua, se esta rua fosse minha

 eu mandava ladrilhar

 com pedrinhas de rubi para ao meu amor passar

 se esta rua fosse minha

 eu mandava ladrilhar

 só para ao meu amor passar

 só para tu e tu e tu tu tu tu passar

*para citar este artigo: Gobbato, Caeli, «OqueStrada: uma Lisboa cantada sobre e para todas as pessoas que vivem nesta cidade hoje», Plataforma Mural Sonoro, https://www.muralsonoro.com/recepcao.

Fotografia usada na capa do texto tirada por Soraia Simões na margem sul.

 

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''Lusofonia''? Não é o desígnio mas o que se faz com o desígnio, breve opinião

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''Lusofonia''? Não é o desígnio mas o que se faz com o desígnio, breve opinião

por Soraia Simões de Andrade [1]

Não é o desígnio, mas o que se faz com o desígnio

O paradigma de uma comunidade lusófona activou ao longo dos anos o decurso de uma construção e representação de «identidade», que ainda hoje carrega algumas retóricas que procuram legitimar uma argumentação condizente com aquilo que se tenciona evidenciar.

Tempo e espaço assumiram notável expressividade enquanto directrizes discursivas acerca das ideias de «lusofonia» ou de «comunidade lusófona».

Mesmo que tentemos fugir a essa associação, o tempo/memória pode apoiar ou condicionar a maioria da argumentação que tende a legitimar uma patente «historicidade» no enfoque lusófono. 

Há uns dias numa conversa (gravada para o meu trabalho) com um músico cabo-verdiano ele atentava, à sua maneira, sobre esta inscrição discursiva sugerida por uma memória historicista em tempos de colonização entre Portugal e as outrora colónias. O certo é que me revejo na sua forma de pensar o assunto.

Há nos discursos culturais e académicos uma retórica cada vez mais comum. Apoiados por um «lado positivo» dessa memória ou desse tempo evidenciam ideias de «miscigenação cultural», «multiculturalismo» e «pluralidade» que beneficiam a abertura no campo artístico em particular. Ora, os discursos que celebram as ideias de «lusofonia» ou  de «comunidade lusófona» estão, em larga medida, ancorados no tempo, que por sua vez consente um conjunto de ideias  fundido nas mudanças operadas na actualidade (de cruzamento e partilha de experiências) que lhe imprimem, ao mesmo tempo, conotações de ruptura com a representação imperialista do passado.

Porém, creio ser na segunda directriz – o espaço –, que uma parte do discurso contemporâneo culturalista e/ou académico pós-colonial ou pós-independência mais se materializou e foi ganhando corpo/presença social.


As referências geográficas e culturais da comunidade a que se pretende aludir tem em conta uma relação comum e transversal a vários destes discursos – tanto por referência à língua, como meio de partilha, como à referência de uma história comum. As definições de uma aparente unidade tendo em conta a dispersão territorial e continental dos vários espaços que preenchem a geografia da chamada «comunidade lusófona», as suas especificidades culturais, sociais, linguísticas, políticas, anula-se  pela construção da directriz espacial, a partir da qual se imagina a ideia de uma «comunidade lusófona com uma língua semelhante».

A retórica que tem realçado um imaginário de pertença (s) e identidade (s) próprias fica afinal carregada por discursos que resgatam «uma história semelhante» e «uma língua partilhada». Ora, tudo isto tem contribuido para justificar mitos de acessibilidade a uma linha de entendimento (im) posta por um «ideal lusófono» pouco plural ou, se preferirmos, «inclusiva».

Estudar e abordar práticas musicas e/ou culturais distintas tem de permitir evidentemente que várias expressões e linguagens culturais, de quadrantes e contextos diversos, se conheçam relacionando-se, mas isso não se consegue, parece-me, anulando-as por via de uma convivência (quase) unilateral em espaços comuns. Tampouco reforçando ideias e verbalizações tributárias acerca daquilo que constitui a memória histórica e colonial afundadas numa realidade imperialista que se deveria ultrapassar.  A começar pelo discurso.

Não podemos esquecer que a representação discursiva e literária desta ideia de comunidade reproduz os mesmos circuitos efectuados pelos espaços que enformavam a geografia imperial portuguesa.

[1]Republicado no Jornal do Algarve e portal Buala.

*Nota: Fotografia de Capa de registos efectuados em Angola* entre 1968/1970 por Daniel Gouveia cedidos para trabalhos desenvolvidos no Mural Sonoro acerca de experiências musicais e culturais transatlânticas.

*Mangando, concelho de Marimba, distrito de Angola, 1 de Junho de 1969.

 

 

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