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Recepção Musical 1

Cavaquinho em regiões de Portugal e Cavaquinho em Cabo Verde

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Cavaquinho em regiões de Portugal e Cavaquinho em Cabo Verde

Cavaquinhos de Raul Simões

Cavaquinhos de Raul Simões

Afinações, cordas e palhetas

Notas extra:

O cavaquinho de origem portuguesa é o integrante  mais agudo da família das violas europeias compostas de tampos achatados.

Transmitido em Espanha, levado para o norte de Portugal por executantes oriundos de Biscaia (hoje País Basco), foi na região do Rio Minho (Braga) que se notabilizou sendo comummente chamado de braguinha.

Em Portugal, é possível identificá-lo também como machimbo, machim, machete ou marchete, braguinho e cavaco.

No Minho encontramo-lo em práticas coreográficas e músicas tradicionais.

Em Lisboa, o cavaquinho em conjunto com bandolins, violas e guitarras, nas designadas tunas (não necessariamente em contexto universitário). De instrumento rudimentar dos camponeses, em que o braço e a caixa eram uma só peça (escala rasa), ganhou um melhoramento que ampliou a sua projecção sonora.

O espelho (ou escala), uma madeira de maior densidade situada sobre o braço e que avança por cima da caixa até a proximidade da boca. Tudo aponta para que tenha sido igualmente em Lisboa que a palheta passou a ser usada. Até então, no Minho, o cavaquinho  era tocado num rasgo, com os dedos polegar e indicador da mão direita.

Congrega afinações várias sendo  a mais conhecida Ré-Sol-Si-Ré. Em Portugal ainda encontramos:

•Ré-Sol-Si-Mi – usada em Coimbra

•Sol-Ré-Mi-Lá – chamada afinação para “malhão e vira na moda velha”

•Sol-Dó-Mi-Lá – afinação usada na região de Barcelos

•Ré-Lá-Si-Mi – considerada por muitos como a mais versátil harmonicamente

São usadas também afinações em que a corda mais aguda é a quarta e não a primeira.

No Brasil, por norma a afinação, é Ré-Sol-Si-Ré , mas existem executantes que usam a  Ré-Sol-Si-Mi.

A afinação em quintas como no bandolim, Sol-Ré-Lá-Mi, modifica acentuadamente o timbre do instrumento, mas tem um resultado em acompanhamento que funciona bem no samba.

As cordas que um dia foram de tripa, hoje são de aço e as palhetas que antes usavam casco de tartaruga, hoje são feitas de variados compostos plásticos.

Notas: Foto de capa e restantes de Cavaquinhos construídos por Raul Simões (1891-1981) em Coimbra.

Demonstrações de dois dos mais reconhecidos músicos e  tocadores de cordofones vários: Amadeu Magalhães  e Pedro Caldeira Cabral (''Minho'') numa apresentação na cidade de Coimbra. Também na cidade de Coimbra o construtor Fernando Meireles gravado para o Arquivo Mural Sonoro e um dos intervenientes, com Óscar Cardoso, numa das Sessões do Ciclo Conversas em Volta da Guitarra Portuguesa  com o Tema: Guitarras de Coimbra e de Lisboa. Sua construção, técnicas e difusão, se tem dedicado à feitura de cavaquinhos, foi até o primeiro instrumento que fez como construtor enquanto vivia numa República na cidade de Coimbra, explicando na recolha de entrevista efectuada para o Arquivo Mural Sonoro o porquê de ter decidido começar por este instrumento.

No vídeo abaixo o músico e construtor cabo-verdiano, Luís Baptista, na sua oficina no Mindelo (São Vicente)

Raul Simões e o neto Fernando em 1955

Raul Simões e o neto Fernando em 1955

pormenor de cavaquinho construído por Raul Simões

pormenor de cavaquinho construído por Raul Simões

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Né Ladeiras em Discurso Directo

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Né Ladeiras em Discurso Directo

Né Ladeiras (foto de Lauren Maganete)para citar esta entrevista: Né Ladeiras em Discurso Directo, entrevista de Soraia Simões, Plataforma Mural Sonoro em 20 de Agosto de 2012

Né Ladeiras (foto de Lauren Maganete)

para citar esta entrevista: Né Ladeiras em Discurso Directo, entrevista de Soraia Simões, Plataforma Mural Sonoro em 20 de Agosto de 2012

Né Ladeiras, Fonograma: 'Traz-os-Montes'

 

BI: Maria de Nazaré de Azevedo Sobral Ladeiras, nascida na cidade do Porto. A 10 de Agosto de 1959.

(Soraia Smões) Na tua casa sempre contactaste de modo activo com música. A tua mãe cantava, recordo-me de uma conversa que tivemos no ano passado em que te lembravas dela como sendo uma ‘menina da rádio’. O teu caminho ou contacto, presumo, que inicie, neste âmago, desde que te conheces...

( Né Ladeiras) O meu início musical dá-se desde que nasci. Fortes genes familiares, tendências vindas de muitas gerações, convívio tertuliano fomentado pelo avô materno, cantorias ouvidas na barriga da mãe. A música a fazer parte como fazia do quotidiano dos adultos, adolescentes e crianças só podia transformar-se como numa segunda pele.

 

E a sua prática. O querer aprender ou viver a fazer isso mesmo?

 

O salto primeiro dá-se logo após o 25 de Abril. Quando 4 amigos se juntam com uma paixão comum: a música latino-americana, com maior incidência para o Chile. Um ano antes, deu-se o golpe de estado, que salientou a arte da intervenção de nomes como Violeta Parra e Victor Jara. Já sobejamente cantados, por grupos que se tornaram a voz dos oprimidos destes idos anos 70: Quillapayun, Intti-Illimani, e que se estendia por um continente solidário num coro de vozes como a de Mercedes Sosa, Pablo Milanes, Silvio Rodrigues, Atahualpa Yupanqui.

Assim, partíamos para cada campanha com a mensagem pronta a saír das violas, flautas e vozes, porque era preciso avisar mais gente que um novo país floria. O que acontece é que ao tomar contacto com as populações, dei-me conta – apesar de já o saber pelo trabalho inestimável de Michel Giacometti, Fernando Lopes-Graça, Jorge Dias – da riqueza da música cantada no trabalho, no amor, nas manifestações pagãs e religiosas por esse país fora. A ligação foi instantânea e em mim ficou, para sempre, a raíz profunda que alimentou o tronco principal do meu destino musical.

Entretanto, surgiu a hipótese de integrares um grupo, que acabou por assumir uma certa expressividade no contexto da música popular em Portugal.

Exacto. Depois veio a oportunidade de integrar os Trovante, em 1979. Que iniciavam uma nova era entre o ‘tradicional’ e as composições de originais com influências musicais até então inexploradas. Na verdade, sentia-me com vontade de experimentar outras sonoridades à da raíz que cuidava. A maquete de ‘Baile no Bosque’ foi assim construída, vivenciando o prazer da descoberta.

E no início da década de 1980, integras outro grupo –  Banda do Casaco – que marcou um tempo e de que ainda hoje nos lembramos. Nos cruzamentos que fez, no atentar diferente sobre recolhas e cancioneiros, no modo diferente também de compor, de como fizeram essa ligação entre o contexto urbano e as expressões musicais de carácter tradicional e culturais de ambiente rural em alguns dos casos. Para quem olha, volvidos uns anos, parece que estavas, de algum modo, entre um conjunto de outros autores que faziam parte de uma certa ‘revolução’ operada nas músicas populares do nosso país…

Em 1980, recebo o convite para fazer parte da Banda do Casaco, que estava a preparar o Jardim da Celeste. Foi uma abertura total quanto aos horizontes, que me eram desconhecidos ainda. Já admirava muitíssimo a ousadia de vanguarda, que apresentavam nos seus trabalhos discográficos. Era uma dimensão muito acima das minhas expectativas e ver-me no meio deles, observar a sua forma de criar, arranjar e produzir foi a grande aprendizagem que me daria asas para o futuro. Devo à Banda do Casaco a minha forma de estar em constante movimento, sem acomodações estéticas e fórmulas etiquetadas. Aprendi que a música não precisa de rótulos. Aprendi que se pode ter uma personalidade única desde que se siga a intuição artística e não se pese outro tipo de lixo para ficar num lugar cativo.

No meio de tudo isto, eu continuava a ter as minhas posições e credos, que provinham de uma formação de esquerda, mas que nunca me impediu de ouvir com isenção as opiniões de outros.

Muito curioso, é que uma parte do meio conotava a Banda do Casaco com a direita e uma outra com a extrema esquerda! (risos)

Eu percebi, que ser-se independente, sem ‘rabos de palha’ e assumindo que se esteve lá, no PREC, no verão quente, nas manifestações, reinvindicando a terra, o pão, a educação, fazer parte de um grupo por convicção, e um dia chegar à conclusão, que a revolução tem de passar primeiro por cada um de nós, e depois para as massas, não nos tira em nada o direito de prosseguir na luta, mesmo que de outra forma.

Tenho muito presente, pessoas que conheci e que sei terem sido as melhores que este mundo deu: Álvaro Cunhal, Dias Lourenço, Pires Jorge, Paulo Quintela. Custa-me a crer, que da minha geração algo se tenha perdido. Nunca vi tanta promiscuidade ser fomentada por quem viveu e esteve lá. Falo obviamente das ‘valsas’ e ‘foxtrots políticos’ de elementos, que sem vergonha alguma, actuaram mal e com igual desfaçatez se venderam ao poder mais obscuro deste país.

Para mim ficou registada, igualmente, a estatura humana de Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa. Não é preciso estar do outro lado da barricada para saber da integridade, que rege estes memoráveis da história portuguesa. O que é preciso é seguir-lhes o exemplo, no melhor que uma personalidade com carácter possui.

Mas, o que fica são as memórias, sem rugas, dos conselhos, desabafos, ideias, atitudes claras, posturas coerentes, irreverência a par com o humor, que as pessoas inteligentes nos agraciam e que com um sorriso nos fazem pensar.

E tinhas ‘personagens’ que eram assim…

O José Afonso era assim. O Adriano Correia de Oliveira, o Ary dos Santos.E para nosso bem, a permanência de pessoas como o Luís Cília, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Fausto, Vitorino, Paulo de Carvalho, Simone de Oliveira (estou a falar das minhas referências como é obvio), têm dado a sua arte de formas diferentes, claro, mas com uma extraordinária dignidade que os faz serem verdadeiros. Admiro muito quem assim é.

Falemos um pouco do teu legado discográfico.

A minha discografia resume-se nos álbuns a solo: a Alhur (1982) (EP, Valentim de Carvalho), Sonho Azul (1984) (Álbum, Valentim de Carvalho), Corsária (1989) (Álbum, Schiu!/Transmédia), Traz-os Montes (1994) (Álbum, EMI-Valentim de Carvalho), Todo Este Céu (1997) (Álbum, Sony), Da Minha Voz (2001) (Álbum, Zona Música), Anamar, Né Ladeiras, Pilar – Ao Vivo (2002).

E tens as compilações e colaborações com outros músicos, que te convidaram.

Exacto. Espanta Espíritos (1995) com o tema “Estrela do mar” (CD, Dínamo), A Cantar Xabarin (1996) com o tema “Viva a música!” (CD, Boa), A Voz & Guitarra (1997) com os temas “La Molinera” e “As Asas” (2CD, Farol).O Canções de Amigo,  (1999) (CD, Sony) - Participações Especiais ainda com Heróis do Mar- Amor (EP), Sétima Legião - Volta ao Mundo (CD, Sexto Sentido), Corvos - No Canto do Olho, Depois do Mar sem Fim (CD, Medo), com Brigada Victor Jara Eito (1977) (Álbum, Mundo Novo) e Tamborileiro  (1978) (Álbum, Mundo Novo). Com a Banda do Casaco – No Jardim da Celeste (1981) (Álbum, Valentim de Carvalho) e Também Eu (1982) (Álbum, Valentim de Carvalho).

E ainda tiveste os singles. 


Sim. Os singles com Trovante - Tocar a Reunir (1979) (SP) e Ana & Suas Irmãs - Nono Andar (1988) (SP,Transmédia).Depois destes 9 anos de recolhimento, chamemos-lhe assim, denoto que as editoras estão a perder cada vez mais o poder, que tinham e que as fazia serem caprichosas quanto à individualidade dos artistas que compunham os seus “catálogos”.

Lembro-me perfeitamente que em 1982,quando estava a preparar a gravação de Alhur, bati o pé porque queria convidar os Heróis do Mar. Um dos responsáveis da editora perguntou-me com um ar com um ar muito surpreendido. “Mas, tu queres esses miúdos de plástico!?” Não são de plástico. Têm um projecto fantástico, eu gosto e é com eles ou não é com ninguém. Como se (ou) viu foi a melhor escolha que podia ter feito. A produção do Ricardo Camacho fez toda a diferença na direcção que este EP pedia e que eu pretendia que tomasse.

Depois deste episódio abordaram-me para eu começar a compôr e ser “uma Rita Lee portuguesa”! Levantei-me da cadeirinha das reuniões, com vontade de bater em quem teve essa brilhante ideia.

Não posso esquecer, que em 1984, a Valentim de Carvalho, teve a infeliz ideia de querer mudar o meu nome porque, segundo o produtor do Sonho Azul, Né Ladeiras, não era um bom nome para uma cantora e muito menos quando esta chegasse aos 40 anos (risos).

Mandei-os à fava, claro, não permiti tal pouca vergonha e as minhas relações com essas pessoas acabaram por se radicalizar num grande corte que ainda hoje permanece. Detesto o ‘Sonho Azul’ em tudo. Da capa ao conteúdo. Com excepção, que em muito me honra, da colaboração dos músicos fantásticos que nele participaram. Agradeço a cada um deles o que deram de genial a uma produção tão escoriada: António Emiliano, Mário Laginha, Tomás Pimentel, Edgar Caramelo, Caínha, Ricardo Camacho, Paulo Pedro Gonçalves, TóZé Almeida e Tó Pinheiro da Silva como técnico de som.

Por aqui se vê, o poder que detinham e como asfixiavam quem queria ser como era. Por isso o meu contentamento vai no sentido de hoje em dia quase não serem precisas para nada.

Mas, o que sentes que mudou efectivamente na indústria fonográfica?

Felizmente começou a existir um circuito alternativo de editoras mais pequenas que humanizaram as relações com os seus artistas. E a quem leva um grande não, sobre o seu projecto, há sempre a hipótese de recorrer às novas tecnologias para fazer ouvir a sua música. Isso é fantástico! Nestes casos, e se houver uma boa distribuidora, o artista detém o controle sobre o seu trabalho em todos as valências. Para isso também é preciso ter jeito! Ser além de artista, manager e homem/mulher de negócios. Nem todos são bafejados com esse ‘dom’.

No meu caso, terei sempre de precisar de uma editora com a mente aberta e acessível para me ouvir e respeitar as minhas ideias. Quando me contratam já sabem o “produto” que sou, logo não vão querer que eu seja outra coisa!

Há uma curiosidade que tenho. E sobre a qual nunca tinhamos conversado ou reflectido antes. Aquele disco de 1999, em que o Paulo de Carvalho convida mulheres a escrever para ele. A tua letra é talvez das mais expressivas que ele interpretou. Além, de não entender porque não se encontra à venda em discotecas um disco como o Mátria. A forma como é executado à época. As raízes que ali se patenteiam…

Adoro colaborar em outros ‘hemisférios musicais’. O meu nomadismo impele-me a experimentar outras formas em projectos diversos e linguagens diferentes.

Quando o Paulo de Carvalho me convidou para fazer uma letra para o seu álbum Mátria eu tremi. Eu? Porquê eu? O que posso dizer? Escrever para o Paulo de Carvalho? O meu ícone vocal? Não! (risos) Mas algumas conversas depois – e o Paulinho é uma pessoa encantadora, que defende muitíssimo bem os seus pontos de vista – lá me sosseguei a um canto e comecei a escrever.

Consegues reproduzir aquela letra?

Era assim:

Mukaji Lakanji*

Quiá lezó ngoma samí unguía tetembuca

Azan unguiá macumã riála kewala

Lezo olopi inça cafioto

Lezo ajeunsá inça liégi

Nabá fuki unguiá inça ofangê

UnguÍ duílo bogê

Quiá mabu mukutu otombô

Nafun incê muchima quiana diege caxí

Quiá azan lungo nabá menha

Quiá azan izô nabá sufí

Azan Maiála

Risne angorossi

Lunketo rongol o azan lakangi

Nabá laakangi azan unguí angomi

Unguí incé rongol o nabá bassê

Azan dodun

Infô unguiá tafusi

Unguiá curá ilaó caindé

Nabá quiá abadá nakejó abokum

Bambolassi samí moila maku

Lunketo rongol o azan lakangi

Nabá lakangi azan unguí angomi

Unguiá cafioto azan samí ezala

Unguiá riál a azan naquelê

Unguiá unketa mukí azan akodi

Nabá unketo rongol o azan gitiça

Mucossi bambelô abassá

Inkice azan noió nabá ricungo.

*dialecto Kiribum-Kassangé dos negros bantos levados para o Brasil

Quando o Paulo viu a letra ligou-me. “Tem de ser em português, Né!”

Em português? Mas eu pensava que pudesse ser uma mulher a transmitir o sentimento em dialecto, disse-lhe.” As letras são todas em português”, disse-me ele.

Olhando para a lista de convidadas, era óbvio que eu destoava com esta intenção que, por melhor que fosse, não cabia ali. Reescrevi-a e assim ficou o sentimento de todas as mulheres,independentemente dos dialectos do mundo.

‘Mulher é Vida’ foi musicada por Paulo de Carvalho e Ivan Lins e foi o single de lançamento do álbum belíssimo que é Mátria.

A transnacionalização, as viagens, foram transversais nos momentos que acompanhei do teu percurso musical.

Tenho várias pontes para o mundo. Aliás voo sobre elas! Os meus afectos artísticos englobam Médio Oriente, Tribos Celtas, cantos de Lamas e Mongóis, Vozes Búlgaras, Ragas Indianas, Fonéticas Nórdicas, Sons da Terra Aborígene e como não podia deixar de ser, África e Brasil.

A irmandade que aprofundei, com os aromas rítmicos e musicais brasileiros, fez-me participar com as Mawaca tanto em disco como em estúdio, com Chico César desde a Expo98 e que se prolongou num album de originais, o meu último de 2001, que contou com a participação do mítico Ney Matogrosso, para além de canjinhas espontâneas sempre que me deslocava lá. Conheci muita gente boa e profissional.

Depois há toda uma afectividade musical repartida pelo continente africano devido à criação extraordinária e produção de nomes que significam muito para mim e dos quais destaco: Ruy Mingas que cantava como ninguém o ‘Poema da Farra’ e ‘Monangambé’; Filipe Mukenga, que entre um reportório de originais fabuloso adaptou o tema tradicional angolano Humbiumbi (muito divulgado por Djavan), que o internacionalizou; Eduardo Nascimento com a sua voz de ouro eternizando o que de melhor se fazia em festivais da canção; Bonga divulgador das cores sonoras angolanas pelo mundo ; o imensoTito Paris, que amo de paixão, e que tocou todos os instrumentos na faixa Sinhô (Da MInha Voz, 2001), Lura, Nancy Vieira, Ferro Gaita, de Cabo Verde; Kimi Djabaté, Tabanka Djaz da Guiné-Bissau; Stewart Sukuma a celebrar 30 anos de carreira cheia de talento, meu cantor de eleição moçambicano.

A lista é mais vasta, mas por aqui me ligo a uma parte de mim, que me faz ser um elemento do ‘mundo lusófono’.

E tens sido uma ‘mulher de causas’?

Ser mulher de causas está na ordem do meu dia-a-dia. Sempre assim fui e continuarei. Nem há como explicar porque o sou. Fui educada assim. Não posso fingir que não vejo, não viro as costas a assuntos que me tocam profundamente. Ser-se artista é principalmente isso. Ter espírito missionário e procurar conteúdos que sejam partilhados com o objectivo de chamar a atenção de mais e mais pessoas. Fazê-las pensar. Ser-se artista, é disponibilizar as ferramentas que nascem connosco, para o bem dos outros. A casa com piscina não me interessa para nada. Tudo isto é emprestado e ninguém leva nada para o outro lado. O que vai e o que fica são uma série de acções, que ficarão gravadas em cada pessoa, que se dispôs a ouvir aquele que tinha algo para dizer.

E a música? O que é para alguém com o teu legado?

A música é diversão, que toma consciência do lado justo da vida. Se for só “pra-pular”, mastigar e deitar fora não me interessa e nem perco tempo com isso. Daí que seja muito selectiva nas minhas escolhas quanto a co-autorias, parcerias, músicos e produtores, e ao que consumo enquanto ouvinte. O ruido dos léxicos e modas batidas – escrever em inglês, por exemplo, moda muito provinciana de alguns músicos portugueses vai directo para o lixo. Claro que escuto músicas anglo-saxónicas, mas sei o que me interessa. Nada de Beyoncés, Rihannas, e quejandos. Quem possui essência e verdade no que faz prende-me a atenção. Ser honesto neste “negócio” é fundamental para haver respeito.

E agora andas a percorrer rotas e destinos que outrora pisaste, outros pela primeira vez possivelmente, com o teu novo espectáculo…

Sim. E pela estrada retomo o meu caminho com dois tipos de espectáculos: “Céu da Boca” e “À Flor da Pele”.

O primeiro formato é composto por 5 músicos e inclui essencialmente o reportório das minhas raízes transmontanas assim como outros cantares que gravei sob as influências dos cantares tradicionais da Beira Baixa e Beira Alta. É um espectáculo muito vivo, suado, e bem constituído (risos). Mostra não sermos aquele povo traçado pelo xaile e de pensamento encurvado. A fusão com outras perspectivas musicais estão muito presentes nos arranjos e execução. Pedaleiras no bouzouki e no baixo, pois claro. Ambiências xamãnicas porque não? A cumplicidade é muita, porque gosto imenso desta geração de músicos sem fronteiras.

O segundo é totalmente acústico, com dois músicos multi-instrumentistas em palco (cordas e percussão), e viaja pelas canções que me fizeram crescer. Digamos que é sobre uma parte da minha vida e que inclui José Afonso e Fausto (também presentes em Céu da Boca) Victor Jara, Sérgio Godinho e José Mário Branco, Sétima Legião, Dead Can Dance, Rui Veloso, Banda do Casaco, Chico César. Enfim, compositores que faço questão de cantar por todas as razões apontadas atrás. Uma vez mais, os arranjos e execução instrumental, remetem-nos para horizontes onde tudo se recria e renasce.


Né Ladeiras em conversa com Soraia Simões Perspectivas e Reflexões no campo

 

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Romi Anauel em discurso directo

Romi Anauel em discurso directo

Romi Anauel, nasceu em Angola em 1972 e veio para Portugal aos dois anos de idade. Foi a voz feminina escolhida do grupo Terrakota. Agora vive em Barcelona e tem um disco novo (Phoenix) a sair no final do mês de Junho do ano presente.

(Soraia Simões) E pertences a uma tribo, não é assim Romi? Há, memórias que tendem a perdurar, lembras como foi quando vieste para Portugal?

 

(Romi Anauel) Nasci em Angola e pertenco a uma tribo que são os massai, mas que em Angola tem outro nome. Em Angola chamam-se Kuanhamas e é uma tribo que vem do Nilo.

Vim para Portugal, quando tinha dois anos, por causa da guerra. Os meus pais quiseram fugir para Portugal.

Desde muito nova, 12/13 anos, que gosto de  ouvir muita música. Os meus pais acabaram por achar que me deviam meter numa escola de música.

Recordas o que ouvias em miúda?

Sim, recordo. Primeiro a que me era imposto pelos media. Pela rádio e televisão sobretudo.

 Em casa ouvíamos muita música angolana. A minha mãe era uma interessada e apaixonada por música feita em Portugal, como o fado, ou as músicas mais tradicionais.

Nessa altura, não era o que eu mais gostava. Mas, fui crescendo e a música e abertura começam a entrar no meu universo.

Tinha sonhos de olhos abertos. Era e continuo a ser uma grande sonhadora.

Aos doze anos, via-me já num palco, fazendo grandes concertos, com grandes encenações.

E os teus pais tinham mesmo de te meter numa escola de música…

Sim (risos)

Ouvias alguns músicos do teu país, porque os teus pais ouviam em casa. E começaste, nessa abertura maior, à medida que te foste apercebendo dessa ‘riqueza’, a escutar para ti mesma, sem imposição, alguns deles? Houve, ainda hoje há, nomes de forte popularidade entre nós. N’gola ritmos, Ruy Mingas, Eduardo Nascimento, Bonga…

Sem dúvida. Teta Lando, Bonga, Duo Ouro Negro, Quim zé, Ruy Mingas. Sim sim.

E desde cedo me chamaram à atenção vozes como as de Caetano veloso, no Brasil, da Maria João, em Portugal,  coisas que as crianças não entendem muito bem. Mas, que não sabendo explicar porque gostava, ouvia e gostava bastante. Num plano internacional, adorava e adoro o Prince.

Mas, sabes que, ainda hoje penso que quem me envolveu com  isto, com o que faço hoje em dia, foram simplesmente as minhas projecções mentais em criança (com uns 12, 13 anos). Posso provar que isso funciona.

As tuas projecções, são os teus sonhos em criança?

Sim. De certeza! Nem imaginas como sonhava. Via-me a cantar e a dançar.

Tive algumas aulas de noção musical,  mas que não acrescentaram ao nível do que já era nato em mim.

A música surgiu muito naturalmente. Fiz o 12º e fui para Lisboa com 18 anos.

Comecei, em Lisboa,  a trabalhar em Hotelaria e com o tempo fui conhecendo pessoas.

Fiz dança, formei-me em teatro, onde também criei, com um conjunto de outras pessoas, uma companhia. Era a companhia multi-étnica do Tiago Justino.

E depois tiveste o teu primeiro grupo musical.

Logo a seguir, sim. Com umas amigas fizemos a primeira ‘bandinha’ à capela. Eramos quatro.

E em paralelo ao que considerava, na altura, ser um ‘brincar de bandinha com amigas’, formei-me em Biodança e ainda formei uma banda de covers. Mas, tocámos muito pouco aqui, pois não gostava muito de repetir músicas, não me sentia confortável a fazer versões de canções que não eram originais.

Entretanto, quis formar um grupo só com vozes femininas, todas de origem africana. Eramos sete, mas senti que não houve muita vontade de trabalhar.

E começa a tua aventura com o grupo Terrakota.

Exacto. Um grande amigo, que considero um ‘artista completo’, formou uma banda só para me fazer feliz, pois reparou que eu tinha muita vontade de cantar e ter uma banda.

E depois o Francesco Valente, que já havia pertencido a quase todos os meus pequenos projectos, acabou também por me chamar para  iniciar em Terrakota. O grupo estava mesmo no seu início e  procuravam uma voz.

E levas, levam na verdade todos, performances incomuns para os vossos espectáculos ao vivo…

Sim. O teatro e a dança foram fundamentais, para o meu desenvolvimento como artista e performer. Foram uma grande base. Deram-me uma grande noção do que é estar em palco.

E o que se seguiu?

Com Terrakota estive desde o início. E foi onde me senti livre de criar, na medida em que é um projecto muito aberto a todos os elementos, mas por outro lado, era muito difícil, já que todos tinhamos personalidades muito fortes. Isso sentiu-se nos primeiros álbuns. O exagero das influências que cada um tinha.

E eu era um, dos poucos elementos, que vinha de uma atmosfera que não o hardrock. Um estilo que nunca consegui entender.

O ‘exagero das influências’ era/é evidente em Terrakota, mas se calhar foram ‘pioneiros’ nisso, nessa convivialidade cultural, não? Ou tem que existir uma certa harmonia de grupo e ali deixaste de o sentir? 

Sim, sem dúvida. O exagero também era muito espontâneo e marcou muito esta banda.Mas, nos últimos álbuns, todos fizeram um esforço para aprimorar, conter e ordenar um pouco mais a nossa musicalidade.

Mas, fomos, sem dúvida,  pioneiros nesse assalto à fusão de culturas, que representa no fundo um pouco de cada um de nós, de cada ser na natureza.

Já nada é totalmente puro, como sabemos, mas  uma fusão de conhecimentos, crenças hábitos.

Atenta-se, no teu percurso, esse ‘modo de pensar’, os teus rochedos referenciais também.

Também o considero, sim. As minhas influências, baseiam-se muito no soul, no funk, bem como toda a música de raíz/tradicional. Adoro. A música popular brasileira, a bossa nova, o afro-beattambém.

Sente-se, nestes últimos temas que trabalhaste, um apreço pelo ‘universo do povo de Fela Kuti’. Dos ‘yoruba’ e do ‘highlife’. Nos ritmos específicos  que procuras, sobretudo. É a tua ‘arma de arremesso’, o teu lado de ‘manifesto social’, numa realidade diferente daquela em que assentava a mensagem do povo da Rep da Kalakuta, para a música? 

Sim.Adoro highlife, é um bom sinal que o sintas neste tema que escutámos.

Fela kuti é um grande exemplo. Para mim, a música tem também que ser usada como uma mensagem, que lhe esteja associada. É onde poderei dar meu contributo a esta sociedade.

Sinto que a nossa sociedade, nos está espremendo cada vez mais. Quase não nos podemos expressar como cidadãos de um modo natural. Não vou usar a música para ‘decorar’. Tento que sirva de passagem para um plano mais consciente. Não  que  ache que consiga mudar efectivamente, mas sinto que posso ser um grão dentro do cosmos a incendiar outros grãos que incendiarão outros. É uma forma de protesto. Como ser humano que vive num estado ‘in-natural’ do que se poderia chamar ser humano.

É assaz curioso entender, que preservas a reunião cultural abrangente que já se via e escutava em Terrakota com os outros integrantes de algum modo,  através dos instrumentos que entram agora no teu novo repertório.

Sim. Eu adoro os intrumentos de raíz.  O ’ violino africano’, a ‘kora’, o ‘tama’ (ou ‘talking drum’), o ‘ferro’ e a ‘gaita’ de Cabo Verde, o ‘violino da música balcanica’, a ‘guitarra portuguesa’. Adoro Carlos paredes. Mas, gosto muito de outros, como a ‘guitarra flamenca’, ‘o alaude’,  o ‘Sitar’, o ‘violino ethiope’, que é dos que mais me encanta.

E estás em Barcelona agora. Quiseste sair de Portugal?

A minha vinda para Barcelona, teve que ver com isso mesmo. No início, queria simplesmente sair de Portugal. Meti isto na cabeça. Sentia que precisava experienciar outras coisas, respirar outros ares. E aqui reencontrei- me com o Alberto Perez, que é um músico que tinha conhecido anos antes. Tinhamos comentado, na altura, que poderiamos fazer algo juntos para o meu projecto a solo. Contactei-o, e mesmo no dia a seguir começamos a trabalhar.

Em princípio queria muito criar uma banda mais calma, onde se ouvisse a minha voz com calma e profundidade. Tenho até dois fados meus! Mas, rapidamente, durante uma conversa percebemos que não fazia muito sentido. Já que tinha deixado Terrakota, o que deveria criar era um estilo mais ‘contemporâneo’ mesmo que com as raízes africanas.

Foram surgindo os temas. Baseamo-nos nas influências tradicionais africanas e  demos-lhe um ‘toque mais sofisticado’. O dialecto que ouves nessa música, por exemplo, é o kimbundo e um trecho deyoruba.

Temos outro tema ‘dub’, que me chama a atenção. Canto para soldados. A  banda que me acompanha aqui chama-se ‘Soldiers of Rá’ e o nome do tema também. soldiers of rá dont give yourself to this un-natural man, a letra está baseada no discurso do Charlie Chaplin, no seu famoso filme, O Grande Ditador. É um tema de que gosto muito.Faz-me ‘pele de galinha’.Chamo a esse tema a ponte entre os dois mundos.

E criaste aí já uns conhecimentos que te ajudam no desenvolvimento do teu trabalho…

Sim (risos). No início apresentei a Alberto Perez e Raul Del Moral (que juntamente comigo formamos a  base deste projecto) 4 /5 temas meus, os quais já tinha começado a trabalhar.

O Alberto e o Raul são muito criativos. Complementámo-nos muito bem.

Eles são muito exigentes comigo.Tenho aprendido muitas coisas com eles, coisas que me irão fazer crescer concerteza a nível musical.

A minha prestação neste projecto, tem uma função completamente diferente, com uma nova abordagem na vocalização. Bem diferente do que eu tinha desenvolvido com Terrakota.

As letras são todas minhas. As músicas são nossas. Trabalhámos conjuntamente em cada uma delas.Os dois também cantam, para além de tocarem, são os meus back vocals.

Ah, e o Alberto, que vem do flamenco, canta noutro tema que se chama ‘Ojo Por Ojo’. Digo-te mesmo:Wow, como canta este rapaz!

Há também outro tema de que gosto muito. Chama-se ‘Let the money goes’, no qual há uma passagem dedicada ao ser mulher. Que é aqui vista, além do papel social, que também tem, como a chave de toda a criação. Como uma espécie de ‘deusa co-criadora’, ligada às esferas mais elevadas da criaçao, sempre sunstentada pelo amor.

Tens o álbum já pronto, com dez faixas. Consegues explicá-lo um pouco.

Este disco sairá completo no final de Junho.Está quase pronto.

Entretanto, vão estar disponíveis algumas músicas, para escutar muito em breve. Na web.

É, como dizes, um álbum que tem 10 temas e que viaja por géneros diversos. Do ‘deep funky’ aos sons, que referias, do ‘highlife’, passando pelo ‘dub’.

É muito ‘jazzístico’ também. Não aponto apenas para o ‘afrobeat’, porque não quero ser pretensiosa. É que acho o ‘afrobeat’  bastante especifico e nós, de facto, viajamos por outras atmosferas musicais.

Usamos outros elementos no disco também, como sopros, percussões.

Saxofone, Trombone, Trompete, nos sopros, cajon do flamenco, tímbilas e batás de Cuba, nas percussões, mas também bateria, baixo, guitarra e teclas.

© Romi Anauel em conversa com Soraia Simões, Perspectivas e Reflexões no campo

crédito foto: Isa Egea

para citar esta entrevista: Entrevista de Soraia Simões a Romi Ananuel, Plataforma Mural Sonoro em 17 de Maio de 2012.

OqueStrada: uma Lisboa cantada sobre e para todas as pessoas que vivem nesta cidade hoje,  por Caeli Gobbato

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OqueStrada: uma Lisboa cantada sobre e para todas as pessoas que vivem nesta cidade hoje, por Caeli Gobbato

 

*por Caeli Gobbato

OqueStrada: projeto musical que orquestra a estrada no encalço de todos vocês e desenha o seu mapa de fronteiras musicais numa saga de enredo, fuga, amor, mistério e ação.

“Fernando Pessoa veio dizer ao povo português uma coisa fundamental, marcando bem, que o português é plural e é na sua pluralidade que ele se tem que afirmar”

Segundo Bernal, ''de início sabia-se que a civilização grega tinha raízes na cultura egípcia, semita e várias outras meridionais e orientais, mas no decorrer do século XIX ela foi remodelada como uma cultura “ariana”, na qual foram ocultas ou eliminadas de maneira ativa suas raízes semitas e africanas. Como os próprios escritores gregos reconheciam abertamente o passado híbrido de sua cultura, os filólogos europeus contraíram o hábito ideológico de passar por cima dessas passagens embaraçosas, sem as comentar, em prol da pureza ática”

Falar do OqueStrada é falar do Portugal de hoje, de uma leitura inclusiva e reflexiva sobre Lisboa e suas margens, sobre, principalmente, quem vive aqui. Este trabalho privilegia o olhar carinhoso dado pelo grupo às pessoas. Porque entendemos o tamanho do país à medida que olhamos de perto e percebemos quem é que o faz.

Pretendo refletir sobre questionamentos que encontrei presentes neste álbum e na vida do grupo, sobre conceitos como identidade, cultura nacional, omissões e adaptações da história portuguesa, espaço urbano e a sua construção e periferias, cultura popular e cultura de massa/indústria cultural. Escolha esta por perceber aqui um importante eixo que articula a arte com princípios da democracia, da expressão e síntese cultural de um povo. 

Línguas, identidades 

“Com OqueStrada as línguas falam-se à portuguesa e o que se não sabe inventa-se”*

O OqueStrada canta, em português, diversas línguas que estabeleceram forte  presença/relação ao longo do tempo em Portugal. Quando digo “em português”, sublinho a questão, sempre presente mas em crescente progresso, das identidades múltiplas que formam Lisboa. 

Miranda, para além de cantar o fado na noite lisboeta, cantou canções crioulas de Cabo Verde na mesma noite lisboeta, cresceu com a sonoridade brasileira de um português cantado e falado como outra língua. Pablo é francês e cresceu entre portugueses. A língua francesa foi afirmação da boa educação portuguesa em gerações anteriores de um país cuja capital abriga mais portugueses que a cidade do Porto. Já a língua cigana está na infância de um dos primeiros músicos, de viola, que cresceu em Almada, convivendo com este povo que desde sempre cultivou o hábito de caminhar pelo mundo. 

O espanhol está ali pela eterna questão ibérica, relação de fronteira, língua que o falante do português julga saber antes de experimentar, o que a proximidade de estruturas permite. E o inglês é a língua da ascenção, é cada vez mais uma segunda língua obrigatória para a comunicação intercultural, embora tenha particular peso o passado histórico onde Portugal mantém uma relação de subordinação com a Inglaterra. Tais línguas estarem aqui juntas em voz portuguesa carrega algumas questões que pretendo explorar. 

A vontade de que Lisboa possua e mantenha uma imagem padrão ou uma resistência em relação à crescente heterogenização da sua população construiu uma espécie de política de negação que procura disfarçar o fato de que há portugueses que não se enquadram no padrão imaginário da cor “branca” da pele, que falam a língua que também tem o desejo irreal de ser imutável e alimentam a ilusão de que estes poderiam ser, de certa forma, “visíveis” e rapidamente classificáveis. Existe um enorme medo de ser classificado como inferior, jogando para baixo do tapete relações de troca riquíssima, encontros culturais que ajudaram a fazer o que é Portugal. O historiador António Borges Coelho comenta sobre sua saudável curiosidade ainda na época de aluno: “A primeira grande inquietação que tive como aluno de História foi explicar como é que estando os muçulmanos como cultura dominante na península Ibérica durante tantos séculos não tenham ficado quaisquer vestígios na História portuguesa”ˡ. Porquê esconder  autores, poetas e filófosos simplesmente por pertencerem a um passado muçulmano? 

Hoje há também uma forte tendência a classificar a cultura como nacional e estrangeira presente em território nacional, como se houvesse forma possível de encerrar a cultura, imobilizá-la e impedir que contatos frequentes produzam qualquer interferência. Por mais que um número crescente de pessoas de origem em diversos continentes esteja optando viver em Lisboa (principalmente oriundos dos países de língua oficial portuguesa), e falemos agora de uma geração nascida e criada em Portugal, prevalece a insistência em ignorar a diversidade cultural como parte da identidade portuguesa. Estas questões se ligam com a formação de um ideal do que seria a identidade cultural portuguesa que presta homenagem e obedece às lógicas neo-colonialistas e imperialistas que formatam a cultura europeia como superior e intocável perante as outras. Edward Said em «Cultura e Imperialismo» trata da importância da cultura e da produção cultural no processo imperial que se iniciou no século XVI e salienta que este processo não acabou com as independências das antigas colónias, pois “ assim como nenhum de nós está fora ou além da geografia, da mesma forma nenhum de nós está totalmente ausente da luta pela geografia (…) [que] não se restringe a soldados e canhões, abrangendo também ideias, formas, imagens e representações”². E esta herança imaterial não se desvanece de todo e se transforma muito lentamente. Esta forma “imperial” de pensar atravessou mares, fixou raízes durante quase quatro séculos, sendo que, no início de século passado, “a Europa detinha um total aproximado de 85% do mundo, na forma de colónias, protetorados, dependências, domínios e commowealths”². Este número assustador explica um pouco o fato desta ideia ter sido tão expandida e aceite, pois o início da nossa globalização, onde o mundo estava quase que completamente submetido a apenas uma forma de interação, exaltou ideias que privilegiam uns e relegam a subordinação e inferiorização outros que estão sob a etiqueta de “menos avançados” ou, simplesmente, inferiores.

Como muitas destas nações ainda “reinam” na organização económica mundial, a ideia continua muito próxima do que foi. A questão de Portugal ser muito mais frágil em poder político e económico ajuda a estabelecer um caminho de insegurança e a alimentar um dilema que é a procura de uma identidade própria e bem delineada. Mesmo que rejeitar o caráter misto e de constante mudança da cultura fosse possível, acredito que a pior forma de alcançar este objetivo (ou uma ideia próxima dele) é não olhar verdadeiramente para o povo, para o cotidiano das cidades, como se processa a realidade urbana, a interação entre nacionais, imigrantes, emigrantes retornados, turistas. 

Estaremos caminhando para trás se não exercitarmos a capacidade de refletir sobre que tipos de representação estamos produzindo para nós e para quem nos rodeia, formando assim a imagem do nosso país; refletir sobre a relação do caminhante com a cidade, as disposições sociais, como são ofertados os bens culturais públicos, o espaço e os serviços públicos e para quem. 

A grande dificuldade está nesta herança ideológica que prefere a ilusão de forjar um presente que defenda ideias e preconceitos de um passado que sempre trabalhou para mascarar seus “feitos”. Tanto a época colonial como o Estado Novo de Salazar vendiam ilusões para acalmar o povo, manipulando e distorcendo informações. Portugal colonial não se cansava de professar seu altruísmo, o fato de estarem levando a civilização e melhores condições de vida para instalarem enfim o progresso, da mesma forma que o governo ditatorial de Salazar pregava o oásis de paz que era Portugal sob o seu comando.

Portugal ser hoje um país não muito influente no cenário europeu parece ainda mais um fator desestruturante nessa busca identitária, pois persiste em privilegiar países Inglaterra e França e menosprezar os que, vindos outrora de fora, hoje constituem povo português, menosprezando assim o que o forma como país e elogiando o que está para além dos seus limites. 

O que OqueStrada alcança com o seu trabalho polivalente é um olhar despido desta ilusão reacionária, um olhar que passeia pelo que forma Lisboa hoje, e o faz em ritmos e sonoridades múltiplas, olha e dialoga numa espécie de reconhecimento de terreno próprio, às claras, andando por distritos e freguesias, falando e ouvindo quem aqui vive, perguntando pelo país como quem pergunta por cada pessoa que nele vive.

A RUA

“A Piajio está diretamente ligada à criação artística em espaços públicos (artes de rua) e assim gosta de explorar o imaginário e heranças sentimentais de cada cidade, de cada região, de criar dinâmicas em diferentes bairros, de se debruçar sobre espaços arquitetônicos e o seu contexto urbano, para, aliada à vontade de contar histórias de pessoas e dos espaços onde elas habitam, contribuir para difundir as artes do espetáculo no tecido urbano”*

A trajetória do projecto nasce do amor pela rua e da vontade de “requalificar a rua como palco preponderante de uma sociedade contemporânea”. Tanto Pablo quanto Miranda antes de se encontrarem já exercitavam o perceber e sentir o público, estabelecendo uma relação efetiva no circo, teatro, caravanas culturais. O que em si já carrega um grão libertador, visto que as artes de rua e principalmente o circo trabalham o poder do riso, que para Bakhtin, foi o que sempre fez frente ao poder opressor da Igreja e do Estado, usando o riso para desconstruir e repensar, criticar mais abertamente (sempre presente na figura do bobo da corte que está mais próximo do bufão do que do clown). E o riso é também figura indispensável nas festas populares que juntam o bem comer e as bebidas que afrouxam e aliviam o espírito, está próximo da cultura popular enquanto expressão de liberdade das práticas culturais essenciais.

A rua sempre foi o palco da cultura popular, que constrói-se na história das relações entre grupo sociais e por isso é heterogénea e dialética, mas está num lugar subordinado. Este me parece um dos pontos de subversão do Oquestrada, quando mergulham no imaginário popular a fim de emergir com preciosidades para fazer música, oferecem esse caráter protagonista à expressão cultural do povo que os circunda e que está presente na infância de cada um deles, é experiência inscrita ao longo dos anos. Eles partilham a consciência do valor da cultura popular como concepção de mundo e do seu valor estético, juntando diferentes ritmos e falas para de tal combinação nascer uma ideia de coletivo liberta e inclusiva.

Na música Se esta rua fosse minha percebemos este caráter nesta junção de ditos e saberes populares, quadras de João Gomes e LJ Barbosa recitadas pelas ruas, ao lado de poesia anónima e por isso pertencente à multidão, de valor e temperamento eterno. A noção de responsabilidadesocial que permeia a história do grupo aqui acende: afinal, de quem é a cidade? A música inicia com uma suposição, Se esta rua fosse minha, como quem discretamente sugere a possibilidade de reivindicar o direito à cidade. O direito à cidade é o direito de participar na construção do espaço urbano, para que este evolua sendo sensível à necessidade dos que nele habitam. Vimos que quem constrói, intervém e faz a manutenção do espaço urbano, obedece às leis do lucro, embora quem o financie seja a população. David Harvey fala sobre a difusão de um pensamento atual por um mundo melhor, mas salienta que o centro deste discurso está fundamentalmente no direito à propriedade privada e ao lucro, preocupações que privilegiam a boa saúde do sistema capitalista e não a real qualidade de vida.

Esta lógica perpassa as indústrias culturais, que almejam o fenómeno de venda e para tal investem na propaganda e na sobredivulgação, tornando-se opressora e, muitas vezes ligada às correntes ideológicas da elite detentora do poder, jogando muito bem com o consumo. A ideia da propaganda e da sociedade de consumo está diretamente ligada aos ideais neoliberais que, a exemplo norte-americano, está sempre envolta em uma aura falsa de liberdade de escolha. Qual é a escolha de quem nasceu com os mesmos canais de televisão que promovem a mesma noção do feminino ideal, de interação social, de moda e nas rádios ouve músicas que coincidem também com esses mesmo nos temas e arranjos? Pois sentir-se incluído também passa por uma identificação com o que supostamente os outros também se identificam.

FADO

“ Pela minha parte não posso considerar o fado senão como síntese, estilizada por séculos de lenta evolução, de todas as influências musicais que afetaram o povo de Lisboa”³

O fado está presente na música de OqueStrada porque está presente na vida dos portugueses, nasceu pelos portos desse país costeiro, veio chegando em Portugal com os que daqui saíram e para cá voltaram, misturados nas misturas dos navios, visitando terras, ouvindo cantigas, sentindo e transformando, fazendo desses diálogos musicais vadios o cantar de muitos que por aqui viviam, pois, ao forjarem-no, encontraram-se: mulheres e homens que cantam porque só assim sabem viver, foram no seu dia-a-dia de trabalho e boémia colando o fado ao país. A criatividade pulsante do fado estava nas ruas, nunca foi de todo tristeza, pois como diz Mário Anacleto, ligado à palavra moira (destino) está, claro, a dor, o sofrer, mas também está a palavra hubris (força interior para vencer resistências, fogosidade, ímpeto), que me parece mais próxima da saga pela qual passou e passa. Quando o OqueStrada diz que não é fado, apesar de também o ser, quer dizer que não quer o título vazio e efémero de “estar na moda”, pois uma das consequências desta busca aflita pela identidade portuguesa foi eleger uma música que a suportasse, e, como já vimos, com o grande intuito de encontrar forma de representar-se e ser rentável, em tempos que uma das “funções” da cultura local é ser exportada. Por isso, depois da inclusão de Portugal na União Europeia, começou uma corrida ao fado, como se houvesse um refrescar de memória e lembrássemos o que é ser português. E a indústria cultural apostou nisso. Mas quando entra o fator lucro, percebemos logo a fabricação de cantores-produto que não necessariamente estavam ou estiveram ligados ao fado, mas que enquadram-se como figuras típicas. Este esvaziamento de sentido parece acontecer pela insistência em negar a diversidade e estabelecer um padrão. O mesmo se pode colocar em relação às cidades-museus, que, sendo, como o fado, património nacional incontestável, não se percebe muito bem qual é o seu papel no quotidiano da vida urbana e quem ganha mais com isso. Não é linear, o fado conta muito sobre a história cultural do país, mas foi se aprisionando nesta caixa- expositora standart e começou a desgastar-se e perder o rumo, que está no quanto faz sentido emocional e expressa uma necessidade coletiva. Sinto que este norte vem sendo recuperado por todos estes trabalho contemporâneos que bebem do fado e o transformam, relêem, misturam e o tecem de um colorido mais vivo. Parece que quando o OqueStrada relembra que fado não é só tristeza, é vida boémia de convívio e descobertas, tira-o da caixa, dá vida e ajuda os grandes fadistas a serem ouvidos e apreciados com os ouvidos e o coração de hoje. 

A sensação é de termos pulado parte importante, por estarmos superando e retomando origens do fado. O que Miranda aponta com relação ao passado ditatorial do fado, uma das bandeiras de Salazar, é que, como outras ditaduras pelo mundo, um ditador investe em propaganda, em cultura manipulada para divulgar e exaltar o seu trabalho. Pensando assim, o fado foi tão vítima quanto o próprio país, pois, antes enxovalhado por pertencer a um universo notívago e duvidoso do ponto de vista católico e de extrema-direita, agora é chamado a depor, confessar e passar a trabalhar para o país, servir ao regime. Porque o povo precisa estar contente, precisa entender o que o ditador quer que entenda, e, uma grande ajuda é aliar-se ao que já é popular por mérito próprio. (Depois dos fenómenos da modinha e do lundum, como primeiras manifestações do que se pode chamar de música urbana, e o fado, rico e inovador pelas misturas e diversidade, foi também sucesso popular logo em seguida. As primeiras notícias do fado vêm com relatos do século XVIII, mas é reconhecido como tal já no século XIX). 

Margens, Periferia 

“A Piajio associação está sedeada em Almada, cidade que faz fronteira entre Lisboa e o sul do país, estimula-nos esta realidade de fronteira entre economias, entre gerações, entre amador e profissional, entre culturas como terreno de dramaturgias e suporte essencial de um espetáculo.

Harvey nos fala sobre o processo urbano que, em nome dos lucros que beneficiam a elite e os bancos, organizam o espaço urbano de forma a expulsar gradualmente aqueles que não são capazes de pagar os altos preços dos centros urbanos, para uma periferia metropolitana que circundam os limites da cidade. Desta realidade consegue OqueStrada extrair a mais-valia que só podia estar onde está a maioria da população da grande Lisboa: a riqueza de mundos que se encontram, gerações atuais que, ao sair da casa dos pais em áreas geográficas privilegiadas, já não possuem dinheiro suficiente para continuar aí; pessoas que há algum tempo seriam consideradas de classe média, mas cada vez menos capaz de suportar grandes despesas; trabalhadores imigrantes de várias nacionalidades praticamente sem poder económico que foram desalojados de suas palhotas e afastados para as margens; e os filhos destes que já aí nasceram, ou mesmos os que chegam agora, mas só aí conseguem preços possíveis. Um caldeirão cultural sem dúvida criativamente fértil, com suas histórias de passados tão diversos, seus contos, “causos” e canções, seus sotaques e mundos. 

São estas pessoas hoje que recheiam e constituem a grande Lisboa. Mas têm estas pessoas o direito à cidade de que falamos? 

Não é de se admirar que não tenham quando todo o processo de urbanização foi construído para dar suporte ao capital excedente do sistema e produzir mais dinheiro em nome do mesmo, enquanto crescem os endividamentos e a cada ano vemos surgir maior número de novos milionários e a qualidade de vida e o poder de compra do povo diminuir. O resultado é o alargamento da distância entre classes em que uma das consequências é a criação de nichos fortificados, condomínios auto-suficientes que não dependem dos serviços públicos enquanto a alguns quilómetros de distância há bairros inteiros em condições precárias de infra-estruturas e de relação com o centro. Na construção da cidade (que os direitos humanos não lembram de reivindicar como tal), percebemos que, afinal, todo o processo de urbanização dos últimos anos não tem contribuído para o bem-estar humano, foi é fundamental para a sobrevivência do capitalismo. 

E qual é a importância de OqueStrada e das expressões artísticas inclusivas para este quadro urbano?

A resposta cruza-se com o objetivo social da arte que espera atingir o máximo de pessoas possível sem temer público ou selecioná-lo, espera entrar em comunhão com o povo pela via do sensível, da festa, da celebração, do riso. Quando ouço questões que se aproximam das minhas ou, se ainda não formulei alguma, que dialogue com a minha vida, cultura, história, condição, é imediata a atenção. Que o toque seja mínimo, provocará vontade de questionar, de refletir, de olhar em volta com mais cuidado. E isto é o início da mudança. Tascabeat, o sonho português é alegre, é vivíssimo, porque acende a vontade de cantar por um mundo melhor, para o melhor do mundo, convida as pessoas à saírem do estigma aprisionante e improdutivo do pessimismo inerte e saudarem a capacidade que todos têm de vislumbrar transformações sociais e iniciarem-na na sua casa, no seu bairro, freguesias e conselhos, pelo mundo a fora.

Referências biliográficas

Coelho, António Borges, Entrevista à Biblioteca Municipal de Murça. 29/07/2009: http://bmmurca.blogspot.com/2009/03/entrevista-antonio-borges-coelho.html: 

Said, Edward W., Cultura e Imperialismo. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1993.

Anacleto, Mário, Fado - Itinerários de uma cultura viva. Lisboa: Ed. Mill Books, 2008.

Bakhtin, Mikhail, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François 

Rabelais. São Paulo: Hucitec/ UnB, 1999.

Harvey, David, The right to the city. 14/05/2010: http://www.newleftreview.org/?view=2740

Tinhorão, José Ramos, As origens da canção urbana. Lisboa: Ed. Caminho, 1997.

 

Letras citadas:

Eu e o meu país

De distrito em Distrito, de Freguesia em Freguesia E 

quando os teus braços chegam aos meus,

Nós somos só um, somos um só, somos só um

Eu e o meu país

Ouvi dizer que me amavas, adoravas, entendias

Ouvi dizer que me querias, mas...

E se à noite me sorris, de dia pouco me falas

E é tanta rotunda que já nem sei chegar aqui

Neste silêncio, neste pantanal

Sou turista acidental

Neste anúncio, neste postal, 

Sou turista acidental

Mas e tu, tu, oh, tu, o meu país, mas e tu, diz-me

Onde ficas tu neste postal?

Se esta rua fosse 

 Se esta rua, se esta rua, se esta rua fosse minha

 eu mandava, eu mandava, eu mandava ladrilhar

 com pedrinhas de rubi para ao meu amor passar

 ai se esta rua, se esta rua, se esta rua fosse minha

 eu mandava ladrilhar com pedrinhas de rubi 

 só para ao meu amor passar

 Ai lá porque és feia tem calma não te faltam seduções

 Mais vale ser linda de alma do que linda de feições

 Mais vale ser linda de alma do que linda de feições

 Ai o amor, o amor, o amor é como lua

 ora cresce ora mingua, é

 Ai o amor é como lua

 ora cresce, ora cresce, ora mingua

 Que bom ser pequenino 

 Ter pai, mãe e ter avó

 Ter esperança no destino

 E ter quem gosta de nós, e ter quem gosta de nós,

 E ter quem gosta de nós,

 Ai é tão bom ser pequenino

 Se esta rua, se esta rua, se esta rua fosse minha

 eu mandava ladrilhar

 com pedrinhas de rubi para ao meu amor passar

 se esta rua fosse minha

 eu mandava ladrilhar

 só para ao meu amor passar

 só para tu e tu e tu tu tu tu passar

*para citar este artigo: Gobbato, Caeli, «OqueStrada: uma Lisboa cantada sobre e para todas as pessoas que vivem nesta cidade hoje», Plataforma Mural Sonoro, https://www.muralsonoro.com/recepcao.

Fotografia usada na capa do texto tirada por Soraia Simões na margem sul.

 

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''Lusofonia''? Não é o desígnio mas o que se faz com o desígnio, breve opinião

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''Lusofonia''? Não é o desígnio mas o que se faz com o desígnio, breve opinião

por Soraia Simões de Andrade [1]

Não é o desígnio, mas o que se faz com o desígnio

O paradigma de uma comunidade lusófona activou ao longo dos anos o decurso de uma construção e representação de «identidade», que ainda hoje carrega algumas retóricas que procuram legitimar uma argumentação condizente com aquilo que se tenciona evidenciar.

Tempo e espaço assumiram notável expressividade enquanto directrizes discursivas acerca das ideias de «lusofonia» ou de «comunidade lusófona».

Mesmo que tentemos fugir a essa associação, o tempo/memória pode apoiar ou condicionar a maioria da argumentação que tende a legitimar uma patente «historicidade» no enfoque lusófono. 

Há uns dias numa conversa (gravada para o meu trabalho) com um músico cabo-verdiano ele atentava, à sua maneira, sobre esta inscrição discursiva sugerida por uma memória historicista em tempos de colonização entre Portugal e as outrora colónias. O certo é que me revejo na sua forma de pensar o assunto.

Há nos discursos culturais e académicos uma retórica cada vez mais comum. Apoiados por um «lado positivo» dessa memória ou desse tempo evidenciam ideias de «miscigenação cultural», «multiculturalismo» e «pluralidade» que beneficiam a abertura no campo artístico em particular. Ora, os discursos que celebram as ideias de «lusofonia» ou  de «comunidade lusófona» estão, em larga medida, ancorados no tempo, que por sua vez consente um conjunto de ideias  fundido nas mudanças operadas na actualidade (de cruzamento e partilha de experiências) que lhe imprimem, ao mesmo tempo, conotações de ruptura com a representação imperialista do passado.

Porém, creio ser na segunda directriz – o espaço –, que uma parte do discurso contemporâneo culturalista e/ou académico pós-colonial ou pós-independência mais se materializou e foi ganhando corpo/presença social.


As referências geográficas e culturais da comunidade a que se pretende aludir tem em conta uma relação comum e transversal a vários destes discursos – tanto por referência à língua, como meio de partilha, como à referência de uma história comum. As definições de uma aparente unidade tendo em conta a dispersão territorial e continental dos vários espaços que preenchem a geografia da chamada «comunidade lusófona», as suas especificidades culturais, sociais, linguísticas, políticas, anula-se  pela construção da directriz espacial, a partir da qual se imagina a ideia de uma «comunidade lusófona com uma língua semelhante».

A retórica que tem realçado um imaginário de pertença (s) e identidade (s) próprias fica afinal carregada por discursos que resgatam «uma história semelhante» e «uma língua partilhada». Ora, tudo isto tem contribuido para justificar mitos de acessibilidade a uma linha de entendimento (im) posta por um «ideal lusófono» pouco plural ou, se preferirmos, «inclusiva».

Estudar e abordar práticas musicas e/ou culturais distintas tem de permitir evidentemente que várias expressões e linguagens culturais, de quadrantes e contextos diversos, se conheçam relacionando-se, mas isso não se consegue, parece-me, anulando-as por via de uma convivência (quase) unilateral em espaços comuns. Tampouco reforçando ideias e verbalizações tributárias acerca daquilo que constitui a memória histórica e colonial afundadas numa realidade imperialista que se deveria ultrapassar.  A começar pelo discurso.

Não podemos esquecer que a representação discursiva e literária desta ideia de comunidade reproduz os mesmos circuitos efectuados pelos espaços que enformavam a geografia imperial portuguesa.

[1]Republicado no Jornal do Algarve e portal Buala.

*Nota: Fotografia de Capa de registos efectuados em Angola* entre 1968/1970 por Daniel Gouveia cedidos para trabalhos desenvolvidos no Mural Sonoro acerca de experiências musicais e culturais transatlânticas.

*Mangando, concelho de Marimba, distrito de Angola, 1 de Junho de 1969.

 

 

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