[1] por Soraia Simões de Andrade
Raposa, é a mais recente média-metragem de Leonor Noivo, uma das fundadoras da produtora Terratreme, protagonizada por Patrícia Guerreiro.
Trata-se de uma obra, com co-argumentação de ambas, que cruza ficção com realidade.
Este filme documental relata-nos a relação de amizade de duas mulheres, uma realizadora e uma actriz, Marta (interpretada por Patrícia Guerreiro) atravessada por um distúrbio de comportamento alimentar comum: uma anorexia nervosa. Mas, até que ponto estão dispostas a dar de si, das suas histórias pessoais, à personagem criada?
O quotidiano de quem vive com um distúrbio de comportamento alimentar, posso testemunhá-lo (estive internada dos vinte e quatro aos vinte e nove anos com vinte e oito quilos na Psiquiatria Mulheres dos Hospitais da Universidade de Coimbra), no caso uma anorexia/ortorexia nervosa(s), passa, como o filme nos demonstra, por um conjunto de rituais, recusas de encontrar a vontade de sair dos mesmos, medições e contagens: de passos, de comida, de relações e de frustrações, como diz a actriz a um dado momento tudo é contável num corpo em luta e a única amiga, esguia, capaz de se camuflar? A Raposa.
Esta média-metragem é tão perturbadora como clarividente, fiel ao sentimento de uma grande parte das angústias de quem convive ou conviveu com um distúrbio semelhante. É sobretudo bem escrita. O argumento, apesar das sombras constantes e da tristeza quase latente, é desassombrado e corajoso.
Marta descreve-nos como essa constante busca de uma essência, um qualquer nirvana possível do corpo atingir, o qual concentra memórias e hábitos dos quais já não se consegue livrar, é uma procura de um corpo em combate: «como se estivesse sempre a representar e quando surge algo inesperado que não consigo controlar há um descontrolo da personagem», diz a um determinado momento.
A relação com o corpo é aqui apresentada e representada como uma relação de poder: autorizar o corpo a ter prazer, punir o corpo, maltratá-lo. A dado momento percebe-se que é o único modo de sentir controlo sobre algo, já que não se consegue controlar mais nada, que se controle o que se consegue, o nosso corpo, porque isso será certamente, como fica afirmado ao longo da narrativa, uma forma de segurança e poder. Quiçá porque é difícil ter/aprender de/a lidar com o exterior, apesar de ser aquilo que mais se quer: «lidar com o mundo» que nos rodeia, afirma.
Os quadros, filmados em ambiente rural, em casa da actriz, na Serra da Gardunha intensificam o monólogo: existencialista, poético, desconcertante.
Uma nota positiva ainda para a relação equilibrada entre os silêncios e as falas.
O filme pode ser também encarado como um contributo para derrubar uma ideia bastante desenquadrada propalada por alguns meios de informação, que associaram ao longo dos anos este distúrbio ao universo da estética. Uma narrativa comum, deveras inscrita, porém frívola, ignorante, pouco corresponde à realidade vivida por quem carrega o fardo de (con)viver todos os dias com algo tantas vezes terminante.
Raposa (Reynard) já recebeu a menção especial do júri, presidido pela artista visual Sharon Lockhart, no Prémio Georges de Beauregard International, assim como uma menção especial no prémio Marselha Esperança, atribuído por um júri de estagiários da École de la Deuxième Chance.
Aguarda-se ainda para este ano a estreia nas salas portuguesas.
[1] Opinião para Esquerda.Net