Na preparação do debate de 16 de Março de 2013 no Museu Nacional da Música, com o tema «Viver a Música a Partir da Periferia (?)» [0], lembrei que a ideia de cultura como reflexo de uma sociedade «livre de conflito», forma de poder dependente da sociedade mas promovida pelo estado, que não sendo semelhante à ideia de civilização fosse humana e responsável, sugerida por Eagleton [2], é assaz útil na compreensão da prática cultural no geral, em alguns domínios musicais em particular (caso do rap entre 1986 e 1994 - assinalando este último a altura de edição da colectânea Rapública [3]), dos seus actos de associação ou sociabilização e do poder e afirmação colectivo e individual a partir da periferia. As entrevistas [5] realizadas permitiram compreender que a sua visão acerca da abordagem sobre a vida cultural nos subúrbios e o impacto socio-artístico dos seus protagonistas no universo tanto académico como jornalístico na década de 80 e no início da década de noventa foi quase nulo. No caso da «periferia» entendida exclusivamente como noção territorial, o registo destas memórias apontou que o interesse principal residiu, neste período, no tráfico de drogas e violência. Por outro lado, as críticas acerca da escassa representação dominante de que elas foram alvo ao longo do século XX são duras [1].
Vários projectos sociais e culturais nas periferias, que foram aos poucos sendo transmitidos fizeram com que aumentasse a ressonância sobre esses temas nos meios comunicacionais mais generalistas. A situação, ao passar nesses media, é reveladora de tensões tanto em torno do lugar conferido à periferia e às suas práticas culturais e/ou musicais, como da questão da visibilidade mediática e multiplicidade de discursos e compreensões da dinâmica da vida social, bem como da evolução dos seus processos de criação, organização e produção sonora e musical ainda sem os apoios da indústria, especialmente a de publicação de conteúdos (jornais, rádios, revistas), como no caso do rap, que aconteceriam mais à frente [4] .
A valorização da produção cultural da periferia passou a arranjar esquemas que expressassem a defesa da sua ‘singularidade’, ‘autenticidade’ atribuindo-lhe nichos específicos de circulação e mesmo de preservação.
Se por um lado, o seu surgimento no cenário de visibilidade popular mediática foi uma prática nova, que ganhou espaço social, com implicações nos seus critérios de legitimação discursiva no que diz respeito às suas manifestações culturais e musicais, por outro a mesma inclusão nesse circuito mediático, de grande popularidade, converteu o mesmo movimento e posterior aceitação em mecanismo de legitimação da força da sua actuação e do romper de uma série de cânones a respeito de ‘géneros’ e/ou ‘práticas periféricas’.
A sistemática hierarquização das práticas e «produtos culturais», o seu papel e dependência de uma cidade de Lisboa em redefinição e da sociedade foram alguns dos pontos chave fundamentais para se discutir o tema Viver a Música a Partir da ”Periferia (?)”, seja em que território for. A «periferia» aqui assumiu uma noção não exclusivamente territorial. Falou-se dela numa perspectiva de vivência nas margens de uma indústria cultural e da sua redefinição constante e dos aspectos sociais, políticos e económicos que enformaram a produção de 4 sujeitos, intervenientes neste tema, em épocas distintas, o que os aproximou nesses processos e o que os distinguiu.
[0] SIMÕES, Soraia coord., intervenções: SANTOS, Nuno (Chullage), MIRANDA, Marta, BRANCO, José Mário, PINHO, António Avelar, Museu Nacional da Música, 2013.
[1] SIMÕES, Soraia, RAPortugal: territórios e poder no Portugal urbano pós 25 de Abril (1986 – 1994), Seminário: História das Ideias Políticas Contemporâneas, domínio de especialização: História Contemporânea, Mestrado, 2015, public. online em Mural Sonoro, Janeiro, 2016.
[2] EAGLETON, Terry, A Ideia de Cultura, edição UNESP, 2005.
[3] Edições discográficas iniciais: Portukkkal é um Erro, rapper: General D, Etiqueta: EMI, ano: 1994. RAPública, Colectânea editada no ano de 1994 pela Sony Music, que congrega temas de Black Company, Funky D, Zona Dread, Boss AC, Family, Líderes da Nova Mensagem, New Tribe assinalando na indústria fonográfica o primeiro registo discográfico neste domínio e o único registo até hoje, com a chancela editorial, de alguns dos seus intervenientes/grupos.
[4] A introdução de elementos sonoros e tecnológicos e alguma maquinaria em bairros como o da Amadora, Miratejo ou Cova da Moura na segunda metade dos anos 80 e iníco dos anos 90 por grupos e actores que começavam a ter expressão no «movimento hip-hop» como, entre outros, Black Company, Family ou Boss AC. Casos como o da introdução da QY10. Inspirados especialmente em modelos anglo-americanos, numa identificação e processo de mimetização com grupos que surgiram na década de 80 nas periferias de Nova Iorque e ganharam, mais tarde, alcance mundial a partir do seu ingresso na indústria musical, de gravação e edição discográfica nos EUA.
[5] Fontes orais História Oral/Recolha de memórias centrais: Entrevista 1: Makkas (nome real: Paulo Jorge Morais, ex integrante do grupo Black Company). Entrevista 2: General D (nome real: Sérgio Matsinhe, primeiro rapper com expressão mediática a gravar. Afecto ao Movimento Política XXI e imagem da SOS Racismo na sua apresentação). Entrevista 3: Bambino (nome real: Madwylson Pina, integrante com Black Company da colectânea editada em 1994 pela Sony Music RAPública).
História Oral/Recolha de outras memórias usadas: Entrevista 4: Francisco Rebelo (baixista e produtor, mentor, com Tiago Santos, do grupo Cool Hipnoise). Entrevista 5: José Mário Branco, Entrevista 6: António Avelar Pinho, Entrevista 7: Tozé Brito, Entrevista 8: Chullage, Entrevista 9: Marta Miranda.
Vídeo-Mote de uma das Sessões Mural Sonoro no Museu da Música no ano de 2013