por Soraia Simões [*]
O fado de Coimbra não é de direita nem de esquerda: é um depósito cultural, é um produto que tem a sua época e se justifica em determinado contexto coimbrão, José Afonso (25 de Novembro de 1981, Jornal Se7e)
Muito para além de quem se situava à esquerda ou à direita a Canção de Coimbra a partir da sua ‘nova fase’ no ano de 1978 foi progredindo quer no tempo como nas suas variantes. Como acontece a grande parte das práticas de cariz local, apesar das novas influências que apareceram, houve características que se mantiveram dando sentido à manifestação cultural e musical viva que é, exposta também no seu ressurgimento e aparecimento de 'novos' letristas, poetas e executantes que atribuíram à canção um novo fôlego.
Coimbra menina e moça
Rouxinol de Bernardim
Não há terra como a nossa
Não há no mundo outra assim
Coimbra é de Portugal
Como a flor é do jardim
Como a estrela é do céu
Como a saudade é de mim
(Coimbra Menina e Moça, Fausto Frazão)
A cabra da velha torre
Meu amor chama por mim
Quando um estudante morre
Os sinos tocam assim
Ó quem me dera abraçar-te
Junto ao peito, assim, assim
Passar a morte e levar-te
Bem abraçadinha a mim
(A Cabra da Velha Torre)
Ainda que a maioria das práticas musicais na cultura popular reclamem invariavelmente até si noções de ancestralidade e tradição, tantas vezes reforçando a sua componente de preservação, afirmando a partir daí a sua suposta ‘identidade’’, a realidade é que elas são mutáveis e como tal as retóricas que evidenciam esse imaginário de pertença e preservação são na sua franca maioria discursos públicos do foro promocional ou jornalístico.
Se observarmos, como exemplo, os textos que acompanham os fonogramas gravados na década de 60 neste domínio musical e cultural, nomeadamente os textos de Manuel Alegre e Artur Jorge Marinha no primeiro e segundo fonograma de Adriano Correia de Oliveira, notaremos que há já um pensamento contrário e uma reflexão crítica no que respeito dizia a esse passado romantizado e inscrito na história musical coimbrã, papel assumido sobretudo pelos meios de difusão dominantes.
A tradição pela tradição sem questionamento, a arte pela arte e o desapego e desvalorização a um foco que não estivesse ancorado na denúncia das fragilidades sociais que os atingia à época tornaram-se aspectos elucidados claramente em alguns dos seus textos, mas também das suas mensagens públicas (sejam orais ou escritas). Exemplo: O que tem havido sempre, através das gerações que passam por Coimbra, é a necessidade de cantar, e de exprimir cantando, os sentimentos próprios da juventude. Mas esses sentimentos são condicionados pelas circunstâncias históricas e sociais de cada geração (…) versa Manuel Alegre numa das partes do seu texto.
No segundo EP de Adriano Correia de Oliveira no tema ‘’Balada do Estudante’’ (depois ‘’Capa Negra Rosa Negra’’) de Manuel Alegre (as duas primeiras quadras) e António Aleixo (a terceira estrofe, apesar de algumas alterações) percebe-se de imediato o foco na situação que então se vivia no seio académico e cultural coimbrão:
Capa Negra rosa negra
Rosa negra sem roseira
Abre-te bem nos meus ombros
Como ao vento uma bandeira
Eu sou livre como as aves
E passo a vida a cantar
Coração que nasceu livre
Não se pode acorrentar
Quem canta por conta sua
Canta sempre com razão
Mais vale ser pardal na rua
Que rouxinol na prisão
Adriano Correia de Oliveira, figura ímpar da história musical coimbrã, envolveu-se como estudante universitário de forma activa na vida académica (cívica, política e cultural) da AAC (Associação Académica de Coimbra). No ano de 1960 ficaria associado ao Grupo Universitário de Danças Regionais da AAC, no ano de 1961 seria subscritor do manifesto ‘’Protesto’’, que por sua vez fora atacado pela direita por altura da publicação de ‘’Carta a Uma Jovem Portuguesa’’ da autoria de Artur Jorge Mourinha de Campos numa das edições da revista Via Latina, no ano de 1964 Adriano integrava ainda o CITAC (Iniciação Teatral da Academia de Coimbra), no ano de 1965 foi mencionado pelo Conselho de Repúblicas para a Assembleia Geral da AAC (a substituta), mas seria sem sombra de dúvida a inscrição e militância no Partido Comunista Português no ano de 1964 que mais firmava a sua veemente oposição ao regime do Estado Novo. Tal actividade refectir-se-ia de modo natural no seu desempenho como intérprete e no cunho contestário que imprimiu e que ficaria para sempre ligado à história da Canção de Coimbra.
Acompanhado por António Portugal e Rui Pato, Adriano Correia de Oliveira gravaria, entre outros, estes quatro marcos no chamado ‘’Canto de Intervenção’’ associado à cidade do Mondego: ‘’Trova do Vento que Passa’’, ‘’ Pensamento’’, ‘’Capa Negra Rosa Negra’’ e ‘’Trova do Amor Lusíada’’, temas que compunham o EP Trova do Vento Que Passa.
Neste EP, decisivo na afirmação de Adriano C. de Oliveira no âmbito da Canção de Coimbra, ‘’Capa Negra Rosa Negra’’ deixa cair a quadra de António Aleixo e aparece como segunda estrofe uma nova quadra de Manuel Alegre: Abre-te bem nos meus ombros/Vira costas à saudade/ Capa negra rosa negra/ Bandeira de liberdade. Além de, como anteriormente referido, serem gravadas duas canções de explicita impressão política: ‘Pensamento’’ e ‘’Trova do Vento que Passa’’.
Pergunto ao Vento que passa
Notícias do meu país
E o vento cala desgraça
O vento nada me diz.
Mas há sempre uma candeia
Dentro da própria desgraça
Há sempre alguém que semeia
Canções no vento que passa.
Mesmo no tempo mais triste
Em tempo de servidão
Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não!
Trova do Vento que Passa (Manuel Alegre/António Portugal, Adriano C.de Oliveira)
Meu Pensamento
Partiu no Vento
Podem prendê-lo
Matá-lo não.
Meu pensamento
Quebrou amarras
Partiu no vento
Deixa guitarras.
Meu pensamento
Por onde passas
Estátua de vento
Em cada praça.
Foi à conquista
Do novo mundo
Foi vagabundo
Contrabandista
Foi marinheiro
Maltês ganhão
Foi prisioneiro
Mas servo não.
E os reis mandaram
Fazer muralhas
Tecer as malhas
De negras leis.
Homens morreram
Chamas ao vento
Por ti morreram
Meu pensamento.
Pensamento (Manuel Alegre/António Portugal, Adriano C. de Oliveira)
A permeabilidade da Canção de Coimbra para os temas mais reaccionários contribuiu para que segmentos mais progressistas da vida académica ligados à guitarra e à canção depreendessem na Canção de Coimbra uma ‘’arma de natureza política’’ e a Canção de Coimbra passa a ser uma das partes fundamentais do combate associativo e da luta estudantil.
O designado de ‘’Movimento das Trovas e Baladas’’ sustentar-se-ia de um discurso político-ideológico pensado e estruturado. A poesia de Artur José Marinha, José Carlos Vasconcelos, Manuel Alegre e a interpretação e postura de Adriano Correia de Oliveira deram origem a um novo capítulo na história musical da Canção de Coimbra, enquanto António Portugal (co-fundador do ‘’Movimento das Trovas’’ e com trabalho gravado entre 1956 e 1958 com o grupo Coimbra Quintet) também se afirmava, distanciando-se da figura do segundo guitarra de A.Pinho Brojo.
A dimensão da Guitarra de Coimbra especialmente a partir destes acontecimentos passa a ter um impacto notável a um nível transnacional. Aspecto que desvendarei um pouco mais numa terceira parte destas considerações neste Portal e que fazem parte do trabalho maior feito para o Documentário referenciado já na primeira parte destas considerações online.
De salientar que no ano de 1969 Adriano Correia de Oliveira foi mencionado como um dos grandes protagonistas do movimento intervencionista associado à Canção em Coimbra no Programa Zip-Zip , inclusive por Luiz Goes que esteve presente, um programa onde muitos criticaram a ausência de José Afonso, que não marcaria a sua presença devido a uma imposição da sua não comparência, sob pena de represálias, dirigida ao programa em questão pela PIDE.
A crise académica de 1969 (a partir de Abril) seria mais profunda, como relata o Historiador e Cultor da Canção de Coimbra Jorge Cravo fundamentalmente no seu livro ‘’A Canção de Coimbra em Tempo de Lutas Estudantis’’, muito por força da falta de abertura de Américo Tomás, então Presidente da República, em dar voz ao Presidente da Direcção Geral da AAC no decorrer de uma cerimónia integrada na inauguração de um novo edifício na Universidade de Coimbra, no Edifício das Matemáticas.
[1] para citar esta opinião: Simões, Soraia «Coimbra: Canção e Guitarra (a figura de Adriano Correia de Oliveira), opinião» Breves Considerações, plataforma Mural Sonoro em 13 de Março de 2014.
Mais em filme A Guitarra de Coimbra, 2019, RTP2 de Soraia Simões e realização de José Ricardo Pinto .
Imagem usada na capa deste texto do livro ''Adriano Correira de Oliveira - Songbook'' de 2012, Chancela: Prime Books